Acórdão nº 103/17.2PFPRT.P1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Novembro de 2019

Magistrado ResponsávelLOPES DA MOTA
Data da Resolução14 de Novembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, em conferência, no pleno das secções criminais: I. Relatório 1.

O Ministério Público interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Setembro de 2017, alegando que este se encontra em oposição, relativamente à mesma questão de direito, com o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de 3 de Junho de 2016, proferido no processo n.º 810/15.4PFPRT.P1, que indica como acórdão fundamento[1] nos termos do n.º 2 do artigo 438.º do Código de Processo Penal (CPP).

Apresenta motivação, em que conclui nos seguintes termos (transcrição): «1. Pelo acórdão recorrido proferido por este Tribunal da Relação do Porto, em 27.Set.2017, no âmbito do Recurso Penal n.º 103/17.2PFPRT.P1, da 4ª Secção, foi decidido que o condutor de veículo automóvel em via pública que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue apresenta uma TAS de 1,6567g/l, e que, decorridas 2 horas, ou seja, no período de 12 horas seguintes, apesar de advertido de que estava impedido de o fazer, nos termos do art.º 154.º, n.º 1 do Código da Estrada, vem depois a ser encontrado, de novo, a conduzir com uma taxa de alcoolemia de 1,245g/l, comete dois crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, em concurso real com o crime de desobediência qualificada p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal; 2. Por sua vez, pelo acórdão fundamento deste mesmo Tribunal da Relação do Porto, de 03.Junho.2016, proferido no âmbito do Processo n.º 810/15.4PFPRT.P1, da 1.ª Secção, transitado em julgado, foi decidido que a conduta do arguido que, depois de fiscalizado e detido por agentes policiais por conduzir um veículo automóvel na via pública sob influência do álcool com uma TAS igual ou superior a 1,20g/l e de ter sido advertido de que não podia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, vem depois a fazê-lo ainda com uma TAS igual ou superior a 1,20g/l, comete apenas um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e um crime de desobediência; 3. Verifica-se, assim, oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito, tendo ambos sido proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, na vigência dos art.ºs 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada e 292.º, n.º 1, e 348.º, n.º 2, estes do Código Penal; 4. A questão a resolver no presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é a de se saber se um condutor de veículo automóvel em via pública que, submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue apresenta uma TAS igual ou superior a 1,20g/l e que, no período de 12 horas seguintes, apesar de advertido de que estava impedido de o fazer, nos termos do art.º 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, vem depois a ser encontrado, de novo, a conduzir ainda com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,20g/l, comete apenas o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.º 2, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal, ou, também, em concurso real, um outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez; (...).».

  1. Por acórdão da secção criminal de 26 de Setembro de 2018, foi decidido que o recurso devia prosseguir por se reconhecer a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, em situações de facto substancial e circunstancialmente idênticas, no domínio da mesma legislação.

  2. Cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 442.º do CPP, o Ministério Público, pela Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal, apresentou desenvolvidas alegações, formulando as seguintes conclusões: «1. A problemática relativa ao concurso de crimes, que é das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no artigo 30.º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

  3. O critério determinante do concurso é, assim, o que resulta da consideração dos tipos efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.

  4. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.

  5. Assim, há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções).

  6. Mas não basta atender apenas ao bem jurídico violado, é preciso ainda ter em atenção que o autor e sua conduta são também igualmente constitutivos do tipo objectivo de ilícito, pelo que é preciso verificar se o comportamento global do agente reflecte uma pluralidade de sentidos autónomos de ilicitude típica.

  7. Assim, verifica-se que, enquanto no crime de condução em estado de embriaguez, o bem jurídico protegido consiste na segurança rodoviária e estamos perante um crime de perigo abstracto, no crime de desobediência qualificada o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado e é um crime de dano.

  8. Para além disso, verifica-se que estamos ainda perante a prática de duas acções típicas distintas por parte do agente: no caso do crime de desobediência qualificada a acção típica consiste em, não acatando a ordem que lhe foi dada, conduzir veículos automóveis no período de 12 horas subsequentes a um exame de álcool no sangue com resultado igual ou superior a 1,20 g/l.

  9. Enquanto a acção típica no crime de condução em estado de embriaguez consiste na condução sob o seu efeito, acima dos limites definidos na lei.

  10. Para além disso verifica-se que no caso vertente estamos perante duas condutas autónomas onde ocorre uma óbvia renovação da vontade criminosa do arguido.

  11. A consumação da primeira resolução criminosa cessou quando o agente foi objecto de fiscalização e autuação pela primeira vez, já que com a fiscalização pelos órgãos de polícia criminal terminou qualquer possível continuidade entre os dois actos de condução de veículo em estado de embriaguez, isto independentemente da maior ou menor distância temporal entre eles.

  12. E a nova resolução criminosa verifica-se quando o agente decide conduzir novamente com uma TAS igual ou superior a 1, 2 gr/l e em desobediência a uma ordem dada pela autoridade competente.

  13. Para além disso, a decisão do arguido de conduzir, novamente, apesar de o fazer no período das 12 horas, agindo desta forma em desobediência a uma ordem dada, é independente da resolução criminosa de conduzir em estado de embriaguez. Até porque o arguido pode por exemplo saber que a sua TAS é inferior ao limite legal (porquanto efectuou um teste num aparelho particular) e mesmo assim tomar a decisão de conduzir desobedecendo a uma ordem legítima.

  14. Uma vez que estamos perante uma situação de concurso efectivo entre o crime de desobediência qualificada e o crime de condução em estado de embriaguez não se verifica a ofensa do princípio ne bis in idem.

  15. Concluímos assim que se o condutor de veículo automóvel que se encontrava a conduzir um veículo na via publica como uma TAS igual ou superior a 1,20gl, tendo sido notificado que por esse motivo se encontrava impedido de conduzir pelo período de 12 horas, voltar a conduzir e for novamente submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apresentar resultado positivo, comete, em concurso real, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, previstos e punidos pelo artigo 292.º do Código Penal e um crime de desobediência qualificada, previsto e punido no artigo 154.º, n.º 1, do Código da Estrada e 348.º, n.º 2, do Código Penal.» Propondo que o conflito de jurisprudência seja resolvido no seguinte sentido: «O condutor de um veículo automóvel, na via pública, que submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue apresenta uma TAS igual ou superior a 1,20g/l, que é advertido que não pode conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes e que, não respeitando tal advertência, vem a fazê-lo, com uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l, comete, em concurso real, com o crime de desobediência qualificada, p. e p. nos art.ºs 154.º, n.º 2, do CE e 348.º, n.º 2, do CP, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º do C.P.

    » 4.

    Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 443.º do CPP), cumprindo decidir.

    1. Fundamentação Da oposição de julgados; da questão de direito 5.

    A decisão tomada na secção criminal, no acórdão de 26 de Setembro de 2018, que afirmou a oposição de julgados, não vincula o pleno das secções criminais, pelo há que reexaminar a questão, ainda que sucintamente e usando as considerações do acórdão preliminar, que se perfilham.

  16. O acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27 de Setembro de 2017 e transitou em julgado em 16 de Outubro de 2017.

    O acórdão fundamento, também do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Junho de 2016, proferido no processo n.º 810/15.4PFPRT.P1[2], transitou em julgado a 17 de Junho de 2016.

    O recurso foi interposto pelo Ministério Público no dia 3 de Novembro de 2017, dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, previsto no n.º 1 do artigo 438.º do CPP.

    Estão assim verificados os pressupostos formais do recurso, a que se referem os artigos 437.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, e 438.º, n.º 1, do CPP. O recorrente tem legitimidade, os acórdãos em conflito são de tribunal de Relação, transitaram em julgado, não sendo admissível recurso ordinário do acórdão recorrido, e o recurso para fixação de jurisprudência foi interposto no prazo legal.

    Cumpre, pois, verificar a oposição relevante.

  17. Como se afirma no acórdão de 26 de Setembro de 2018, proferido ao abrigo do artigo 441.º, n.º 1, do CPP, ambos os acórdãos se ocupam da mesma questão de direito, a qual consiste em saber se o condutor de veículo automóvel na via pública que, submetido a exame de...

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