Acórdão nº 8083/15.2TDLSB.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Setembro de 2019

Magistrado ResponsávelNUNO GONÇALVES
Data da Resolução19 de Setembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, acorda em conferência: I. RELATÓRIO: a) a sentença absolutória: No processo em referência, o juízo local criminal de ..., por sentença de 2 de maio de 2018, julgou improcedendo, por não provada, a acusação deduzida contra os arguidos: - AA; e -BB e, em consequência, absolveu-os: - da prática do crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205°, n° 1 e n° 4 al. a) do C. Penal, de que vinham acusados.

- do pedido civil de indemnização formulado pela demandante.

b) acórdão condenatório: A assistente “CC, Lda.

”, inconformada com a decisão absolutória, recorreu, impugnando a decisão.

O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão datado de 19-02-2019, julgando procedente o recurso, decidiu: - alterar o julgamento em matéria de facto, por enfermar de erro notório na apreciação da prova; - revogar a sentença recorrida, e condenar cada um dos arguidos pela prática do crime de abuso de confiança, p. e p. no art. 205° n° 1 e 4 al. a) do C. Penal na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período sob condição de, nesse período, cada um dos arguidos pagar a quantia de 3.000,00 (três mil euros) à assistente, quantias que logo que, uma vez pagas, se devem abater ao montante da indemnização civil arbitrada; e, - condenar também os demandados a pagar à demandante a quantia de € 9.505,54 (nove mil quinhentos e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos) e juros legais desde a data da notificação para contestar o pedido cível.

c) o recurso: A arguida, inconformada com a reversão da absolvição e a condenação, impugna-a, recorrendo para o STJ.

Remata a sua alegação com as seguintes - CONCLUSÕES: A. Independentemente do disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. e) do Código do Processo Penal, entende a Recorrente que, in casu, pode exercer o seu direito ao recurso relativamente à decisão proferida pelo Douto Tribunal da Relação de Évora.

  1. E, caso venha a ser rejeitado o presente recurso, por se considerar a sua inadmissibilidade nos termos da supra referida norma, desde já se argui, para os devidos e legais efeitos, a inconstitucionalidade da interpretação dada à mesma.

  2. Nesta conformidade, se entende que qualquer interpretação do disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. e) do CPP, que estabeleça a irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação que, inovadoramente, face à absolvição ocorrida em 1.ª Instância, condena os arguidos em pena de prisão não superior a 5 (cinco) anos, é manifestamente inconstitucional por violação do direito ao recurso previsto no art.º 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

    * D. O Tribunal recorrido mal andou em alterar a matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal de 1.ª Instância e, consequentemente, ao condenar a Recorrente pela prática do crime de abuso de confiança p.p. no art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al. a) do Código Penal.

  3. Com efeito, a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância não permite qualquer conclusão quanto à apropriação que faz parte do elemento objectivo do tipo de crime em apreciação nos presentes autos.

  4. Pois, sendo o dinheiro coisa fungível e não estando provado que a sociedade comercial AA, Lda. não dispunha de saldo bancário que lhe permitisse proceder ao pagamento das contribuições e/ou à devolução da quantia entregue pela Assistente, ou que a referida quantia não foi restituída no tempo e sob a forma juridicamente devida, não se pode entender que houve apropriação.

  5. Na verdade, a mera confusão do dinheiro no património da sociedade comercial AA, Lda. ou o seu uso, por si só, não preenchem o requisito “apropriação” do elemento objectivo do tipo de crime “Abuso de Confiança”.

  6. Por tal motivo, o Tribunal recorrido mal andou ao considerar que, in casu, a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância era, por si só, suficiente para se considerar igualmente como provada a factualidade dada como não provada, alterando assim a mesma.

    1. Assim, salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a Recorrente que deve ser considerada como não provada a seguinte factualidade: e) Apropriaram-se, assim, os arguidos da quantia de € 7.860,00 que a Assistente lhes entregou para pagamento por conta do IRC de 2012; f) Agiram os arguidos com intenção de fazer seu o montante de € 7.860,00, integrando tal quantia no património da sociedade que geriam, bem sabendo que tal não lhes pertencia e que actuam contra a vontade e em prejuízo da Assistente; g) Os arguidos actuaram com o objectivo concretizado de se apropriar do dinheiro, integrando-o no património da sociedade que geriam; h) Agiram os arguidos de forma livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e mesmo assim não se coibiram.

  7. E, consequentemente, deverá a Recorrente ser absolvida do crime de abuso de confiança p.p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al. a) do Código Penal.

  8. Ao decidir como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto no art.º 204.º do Código Penal.

    Peticiona a revogação do acórdão recorrido.

    d) - resposta da assistente: A assistente apresentou contramotivação, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido, culminando com as seguintes - Conclusões: UM: A decisão constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora é irrecorrível. No caso concreto tem absoluta aplicação a disposição legal prevista na alínea e) do n.º 1 do art. 400º do Código de Processo Penal que prevê a irrecorribilidade da douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, considerando-se a referida irrecorribilidade absolutamente constitucional, nos termos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018 e publicado em Diário da República n.º 238/2018, Série I de 2018-12-11. Assim, o recurso apresentado não poderá ser admitido e apreciado por legal e constitucionalmente inadmissível.

    DOIS: Caso o recurso venha a ser apreciado e julgado, o que só por mera hipótese se equaciona, deverá o Acórdão ser integralmente confirmado porquanto, atenta a verificação do erro notório na apreciação por parte do tribunal de 1ª Instância, a alteração da matéria de facto provada impunha-se uma vez que a matéria de facto provada já continha em si mesma factos que preenchiam uma parte do elemento objectivo do tipo, a saber: a “apropriação”. Devendo manter-se a douta decisão que considerou provado que, os arguidos se apropriaram da quantia de €7.860,00 que a assistente lhes entregou para pagamento por conta do IRC de 2012, ficando este facto constante da alínea a) da matéria não provada eliminado, e passando a constar da matéria de provada com o n.º 7 A), assim como as demais alterações à matéria de facto decididas no douto Acórdão proferido, a saber: os factos constantes da alíneas b) a d) da matéria não provada passam a constar da matéria provada, respectivamente, com os n.ºs 12A, 12B e 12C.

    De qualquer modo, sempre o recurso terá de ser julgado improcedente, mantendo-se a condenação dos Arguidos pela prática do crime de abuso de confiança, p. e p. no art. 205º, n.º 1 e 4 al. a) do C. Penal na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo e condições decididas no douto Acórdão recorrido.

    e) resposta do Ministério Público: O Ministério Público na Relação de Évora apresentou contramotivação, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

    O Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista no processo.

    B - OBJETO DO RECURSO: A recorrente insurge-se contra a alteração do julgamento dos factos, decidida pela Relação, pretendendo reverte-la.

    É, simplesmente, um recurso restrito à impugnação da matéria de facto. Não suscitando questões de direito criminal.

    Como questão previa argui a inconstitucionalidade da norma do art.º 400º n.º 1 al.ª c) do CPP.

    Assim delimitado o objecto do recurso, cumpre desde logo verificar se é admissível.

    C - FUNDAMENTAÇÃO: 1. os factos: Para nos situar, vejamos a factualidade que resultou fixada pela decisão recorrida, (vão em itálico as alterações operadas pela Relação).

    - factos provados -: 1. Os arguidos eram os sócios gerentes da sociedade denominada "AA, Lda", sendo que a arguida Teresa apenas foi gerente até 20 de Maio de 2013, data em que renunciou à gerência; 2. A sociedade "AA, Lda" era gerida por ambos os arguidos e a conta bancária da mesma podia ser movimentada por ambos os arguidos; 3. A actividade da sociedade "AA, Lda" era a prestação de serviços nas áreas de contabilidade e fiscalidade; 4. No âmbito dessa actividade, os arguidos, através da sociedade de ambos, prestaram serviços de contabilidade à Assistente “CC, Lda”; 5. Assim, ao abrigo da avença mensal que a Assistente tinha com a sociedade dos arguidos, a Assistente entregou a 20 de Setembro de 2012, através de transferência bancária efectuada da conta da progenitora do gerente da Assistente, DD, a quantia de € 3.930,00 à sociedade gerida pelos arguidos, para pagamento do 2.º pagamento por conta do IRC do ano de 2012; 6. Na transferência bancária supra referida foram igualmente entregue a quantia devida pela avença mensal (€110.70) e o pagamento da Segurança Social dos trabalhadores (€206,44), sendo que o valor global da transferência bancária foi de € 4.247,14; 7. E entregou, a 7 de Dezembro de 2012, através de transferência bancária efectuada da conta da progenitora do gerente da Assistente, DD, a Assistente a quantia de € 3.930,00 à sociedade gerida pelos arguidos, para pagamento do 3.º pagamento por conta do IRC do ano de 2012; 7 A). Apropriaram-se, assim, os arguidos da quantia de € 7.860,00 que a Assistente lhes entregou para pagamento por conta do imposto do IRC de 2012; Por causa da falta de pagamento do imposto referido, a assistente teve de suportar a coima de €1.645,54.

    8. Na transferência bancária supra referida foram igualmente entregue a quantia devida pela avença mensal e o pagamento da Segurança Social dos trabalhadores, sendo que o valor global da transferência bancária foi de € 4.246,76; 9. Contudo os arguidos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
1 temas prácticos
1 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT