Acórdão nº 461/17.9GABRR.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 04 de Julho de 2019

Magistrado ResponsávelMÁRIO BELO MORGADO
Data da Resolução04 de Julho de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I.

  1. Em Processo Comum Coletivo do Juízo Central Criminal de Almada (Juiz 3), foi condenado o arguido AA, pela autoria, em concurso efetivo: de um crime de violação, p. e p. pelos arts. 164.°, nº 1, alíneas a) e b), e 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 7 anos e 10 meses de prisão; e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86.°, n ° 1, alínea c), da Lei n° 5/2006, de 23/02, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 8 anos e 4 meses de meses de prisão.

  2. Mais foi condenado no pagamento: ao demandante Centro Hospitalar de ..., E.P.E. da quantia total de €530,44 (quinhentos e trinta euros e quarenta e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora calculados desde a data de notificação para contestar o pedido cível até integral pagamento; à demandante BB da quantia de €60.000,00 (sessenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora calculados desde a prolação da presente decisão até integral pagamento.

  3. O arguido/demandado interpôs recurso da decisão, igualmente tendo recorrido de dois despachos interlocutórios, todos julgados improcedentes pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

  4. Novamente inconformado, o arguido recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo, fundamentalmente, na respetiva motivação: - Foi erradamente julgada a matéria de facto: a prova testemunhal e documental produzida mão permitia dar como provados os factos em que se alicerçou a condenação do recorrente; - Houve omissão de diligências probatórias indispensáveis para a descoberta da verdade; - Violaram-se regras processuais e princípios de direito criminal consagrados na Constituição e na lei ordinária.

    - A prolação e notificação do Acórdão recorrido ao mandatário do arguido é nula.

    - Antes da notificação eletrónica do Acórdão do TRL, o recorrente tinha apresentado junto do STJ reclamação contra a não admissão do incidente de recusa da Juíza - Tal Reclamação foi objeto de despacho por parte do STJ, o qual se pronunciou no sentido da sua não admissão.

    - O arguido recorreu desse despacho para o TC, tendo tal recurso sido admitido com efeito suspensivo. Os autos foram remetidos ao TC, tendo sido proferia uma decisão sumária de não admissão, no dia 27 de março de 2019, estando ainda a decorrer o prazo de 10 dias para o arguido apresentar reclamação para a Conferência do Tribunal Constitucional.

    - Até à presente data, não transitou em julgado o incidente de recusa da Senhora Juiza Desembargadora Relatora.

    - É jurisprudência pacífica do STJ a de que o recurso da matéria de facto, ainda que limitado aos vícios previstos nas als. a) a c) do n.º 2 do art.º 410º do CPP, tem que ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta instância, quanto a tal vertente, não é admissível recurso para o STJ, enquanto tribunal de revista; - É também jurisprudência pacífica do STJ a de que apenas oficiosamente este Tribunal conhecerá daqueles vícios do art.º 410º, n.º 2, discordando-se desta jurisprudência.

    - Desde logo, porque da al. b), do n.º 1, do art. 432º do CPP não foi feita constar pelo legislador de 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29/08) o segmento “visando exclusivamente o reexame da matéria de direito”, que fez incluir na alínea imediatamente seguinte, a alínea c).

    - O que só poderá querer significar que o mesmo legislador não pretendeu excluir da previsão do art.º 434º do CPP – no que concerne aos vícios previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 410º – os recursos mencionados naquela al. b), do n.º 1, do art.º 432º; - Os direitos de defesa do arguido têm que poder ser exercidos por este, na esteira do que dispõe a CRP, nomeadamente no n.º 1 do art.º 32.º.

    - A não se entender assim, não se admitindo o presente recurso na parte em que se invocam os vícios previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 410º do CPP, deixa-se aqui expressamente invocada a inconstitucionalidade da interpretação normativa da conjugação dos arts. 400º, “a contrario”, 410º, n.ºs 2 e 3, 432º, n.º 1, b), e 434º do CPP, na redação atual, segundo a qual o recurso interposto pelo arguido do acórdão condenatório proferido pela Relação que confirmou o acórdão condenatório do tribunal coletivo apenas pode ter como fundamento o reexame de matéria de direito, estando-lhe vedado invocar os vícios previstos no n.ºs 2 e 3 do art.º 410º do CPP, tudo por violação de fundamentais garantias de defesa, nomeadamente por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva (art. 20º, n.º 1 da CRP), do procedimento justo e equitativo (art.º 20.º, n.º 4 da CRP) e dos princípios da segurança e da confiança jurídicas.

    - De qualquer modo, ainda que porventura assim não se entenda, os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do CPP que infra vão invocados deverão, pelo menos, e, sendo caso disso, ser oficiosamente apreciados e declarados por este STJ. – O Acórdão recorrido, em violação do principio do in dubio pro reo, reitera a contradição insanável da fundamentação, erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto verificados no Acórdão proferido em primeira instância.

    - Na apreciação e julgamento do caso sub judice, o Tribunal de primeira instância violou garantias processuais do Arguido, porquanto não admitiu os requerimentos probatórios pelo mesmo apresentados e que se destinavam a produzir prova que se reputava essencial à descoberta da verdade e boa decisão da causa, nos termos aduzidos em sede de recursos interpostos em separado, com o que inquinou todo o processo de vício de insuficiência da matéria de facto.

    - A matéria de facto constante da decisão recorrida – ainda que se mantenha inalterada – não preenche o específico tipo do art. 164.º, n.º 1, do Código Penal, nem qualquer outro tipo legal de crime sexual; - Na realidade, inexistiu o constrangimento exigido pelo tipo “violação” e necessário à imputação da prática desse crime ao Arguido, pois este não empregou de violência contra a Assistente, nem lhe fez ameaças, nem teve comportamentos aptos a deixá-la incapaz de lhe resistir, com o intuito de ter sexo com a mesma, sendo certo que tais condutas também não foram provados.

    - O Tribunal a quo nunca poderia ter condenado o Arguido por um crime de violação agravada, já que, em face da prova da instauração do processo de impugnação de paternidade, nem sequer há certeza de estarmos perante uma relação filial, sendo certo que não pode lugar à agravação com base em analogia ou equiparação da relação do Arguido e da Assistente à de pai e filha.

    - Na sua decisão, o Tribunal a quo valorou prova proibida, assente em depoimentos indiretos.

    - Considerando que não foi produzida qualquer prova em sede de audiência de julgamento, quanto ao crime de detenção de arma proibida que foi imputado ao Arguido, este não podia ter sido condenado, tendo o Tribunal a quo incorrido em violação do princípio da imediação, previsto no art. 355.º do CPP.

    - Outrossim, tal condenação também não podia ter acontecido, atendendo ao facto de a apreensão da arma não se encontrar coberta por buscas legais (foi buscada a casa toda, quando a arma do Arguido estava na mesa de cabeceira do quarto do mesmo) e de inexistir qualquer formulário de cadeia de prova tal-qual se impõe, circunstância que não permite aferir se a arma e munições à guarda dos autos são as mesmas que foram apreendidas, o que é particularmente relevante, porquanto o Arguido referiu expressamente que a arma que detinha em casa e que supostamente andou pela GNR e pela Polícia Judiciária em várias perícias, possuía características diferentes daquela. - Devem ser dados como não provados os factos em que se fundam a acusação e os pedidos cíveis deduzidos, com as legais consequências, nomeadamente, a absolvição do Arguido/demandado.

    -A concreta pena em que o Arguido foi condenado é excessiva, excedendo a peticionada pelo Representante do MP nas alegações produzidas.

    - Caso seja entendimento do STJ manter a condenação do arguido pela prática dos crimes que lhe são imputados, deve reduzir-se a pena de forma a permitir a sua suspensão e a submissão do arguido a regime de prova, se assim for entendido.

    5.

    Na Relação, o Exmº Magistrado do Ministério respondeu, pugnando pelo improvimento dos recursos.

  5. O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer, suscitando a questão prévia de irrecorribilidade do Acórdão Recorrido relativamente a todas as questões suscitadas quanto aos crimes de violação agravado e de detenção de arma proibida e pugnando, quanto ao mais, pela improcedência do recurso.

  6. Cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, foi apresentada resposta pelo arguido, defendendo a recorribilidade da decisão recorrida e a procedência do recuso.

  7. Preparado o processo para julgamento, cumpre conhecer, em conferência, segundo a sua precedência lógico-jurídica, das seguintes questões[1]: (a) – Se o Acórdão recorrido é nulo, por ter sido proferido na pendência do incidente de recusa da Senhora Desembargadora Relatora.

    (b) – Rejeição do recurso, relativamente a todas as questões (processuais ou de substância) suscitadas quanto aos crimes de detenção de arma proibida e de violação.

    (c) – Medida e modalidade de execução da pena única.

    E decidindo.

    II.

  8. A matéria de facto fixada pelas instâncias é a seguinte: 1 - No dia 30 de Setembro de 2017, cerca das 21:00 horas, com o intuito de comemorar o 18º aniversário da sua filha BB (nascida no dia .../1999), o arguido levou-a, juntamente com os seus meios-irmãos, CC (nascida em .../2004) e DD (nascido em .../2006), a jantar ao restaurante “...”, sito na Praia ..., no concelho de ....

    2 – Durante o referido jantar o arguido incentivou a sua filha BB a beber vinho, enchendo-lhe o copo várias vezes, tendo ambos consumido ao longo do jantar duas garrafas de vinho branco de 0,75 litros cada, ambas pedidas por iniciativa do arguido.

    3 – No final da refeição a BB estava tonta, tendo ido à casa de banho, cambaleando e...

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