Acórdão nº 3577/17.8T8ALM.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Junho de 2019

Magistrado ResponsávelNUNO PINTO OLIVEIRA
Data da Resolução19 de Junho de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. — RELATÓRIO 1.

AA, residente na Rua de …, n.º …, …, …, BB, residente na Rua …, n.º …, lote …, Quinta …, …, e CC, residente na Rua …, n.º …, …, …, na qualidade de herdeiras da herança indivisa do falecido DD, propuseram acção declarativa sob a forma de processo comum contra EE e FF, ambos residentes na Rua …, n.º …, …, …, pedindo que: I. — fosse declarada a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre o falecido DD e os Réus EE e FF; II. — fossem os Réus condenados à restituição da quantia de €193.718,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano, a contar desde a data de citação dos Réus e até efectivo e integral pagamento.

2.

As Autoras AA, BB e CC alegaram, em síntese, que o falecido DD emprestou aos Réus EE e FF, em meados de 1998, a quantia total de esc: 38.837.000$00 — que corresponde a 193.718,00 euros —; que, como garantia do pagamento os Réus entregaram ao falecido os cheques que as Autoras juntam aos autos; e que os cheques nunca foram apresentados a pagamento em virtude de os Réus não possuírem condições económicas e financeiras para restituírem a quantia emprestada.

Em virtude da relação de amizade que unia o falecido DD e os Réus EE e FF, aquele acordou com estes que a quantia seria paga quando os Réus tivessem disponibilidade económica.

DD, entretanto, faleceu e os Réus, apesar de instados pelas Autoras, nunca procederam ao pagamento da quantia.

3.

Os Réus EE e FF contestaram, alegando, em síntese, que tinham uma relação de negócios com o falecido DD; que recebiam cheques pré-datados de clientes; que, como necessitavam de liquidez, entregavam ao falecido DD os cheques pré-datados dos clientes para que DD lhes entregasse o valor titulado pelos cheques, contra pagamento de uma “comissão”; que o falecido DD apresentava os cheques daqueles clientes a pagamento e ficava com a quantia que cada um dos cheques titulava; que o falecido DD exigia, como garantia, que os Réus lhe entregassem cheques por si emitidos; e que, como que os cheques dos clientes entregues pelos Réus tivesse obtido boa cobrança, os Réus nada deviam.

4.

A 1.ª instância julgou totalmente improcedente a acção e, consequentemente, absolveu os Réus da totalidade do pedido.

5.

Inconformadas, as Autoras AA, BB e CC interpuseram recurso de apelação.

6.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por maioria, concedeu provimento parcial ao recurso e revogou a sentença recorrida, nos seguintes termos: “Nos termos supra expostos, acordam conceder parcial provimento ao recurso e em consequência revogam a sentença recorrida na parte em que julgou totalmente improcedente o pedido de restituição formulado pelas Autoras e condenou estas integralmente em custas, que nessa parte se substitui pelo presente acórdão que julga a acção parcialmente procedente por provada e em consequência condena os RR. a restituírem às Autoras a quantia de £35.100.41 (trinta e cinco mil e cem curos e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento, com custas por Autoras e Réus na proporção de 4/5 para as primeiras e 1/5 para os segundos, mantendo-se a sentença na parte em que declarou a nulidade dos contratos de mútuo e julgou improcedente o pedido de restituição quanto aos valores parcelares correspondentes a 4.600.000$00 (quatro milhões e seiscentos mil escudos) e de 27.200.000$00 (vinte e sete milhões e duzentos mil escudos)”.

7.

Inconformados, Autoras e Réus interpuseram recurso de revista.

8.

As Autoras AA, BB e CC finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões: A. As Recorrentes AA, BB e CC, não se conformando com o segmento decisório do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente o pedido de restituição quanto aos valores parcelares correspondentes a 4.600.000$00 e de 27.200.000$00, vêm interpor recurso parcial da decisão, apenas no que respeita a este segmento, para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos conjugados dos artigos 627.°, n.° 1, 629.°, n.° 1, 631.°, n.° 1, 635.°, n.° 2, 637.°, n.° 1, 638.°, n.° 1, 671.°, n.°s 1 e 3, a contrario, 675.°, n.° 1, e 676.°, n.° 1, todos do CPC, por considerarem que o mesmo padece dos seguintes vícios: i) Violação e errada aplicação da lei de processo, nomeadamente, dos artigos 414.° e 466.°, ambos do CPC, por via da alínea b) do n.° 1 do artigo 674.° do mesmo diploma legal; e, ii) Erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa, por ofensa de disposição que fixe a força de determinado meio de prova, nos termos do n.° 3 do artigo 674.° do CPC.

  1. As declarações de parte, enquanto meio de prova, são um meio frágil, falível, que desde sempre foi alvo de manifestas reservas e críticas por partes dos agentes judiciais, sobretudo, do julgador.

  2. O n.º 3 do artigo 466.º do CPC, que disciplina o regime jurídico das declarações de parte, refere que “[o] tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.

  3. Visando as declarações de parte, na maioria das vezes, fazer prova de factos que beneficiam a parte que se disponibiliza para a sua prestação, é natural que o ponto de vista exposto pelo sujeito processual em apreço, naquelas declarações, seja parcial, interessado e irremediavelmente coincidente com a versão dos factos já exposta nos articulados.

  4. Posto isto, é natural que as referidas declarações devam merecer as maiores reservas em sede de apreciação e valoração da prova pelo Mm.º Juiz que assiste à prestação de declarações.

  5. Comparada com outros meios de prova, nomeadamente, a prova por confissão, feita nos articulados ou por via de depoimento de parte, ou a prova pericial, é irredutível que a prova por declarações de parte é um meio de prova mais frágil, que deverá sempre ser sopesado por outros meios de prova que corroborem a versão dos factos trazida pela parte a juízo, atribuindo-lhe credibilidade.

  6. A melhor doutrina processualista tem vindo a reforçar esta ideia sobre a fragilidade das declarações de parte enquanto meio de prova que, necessariamente, deve ser sempre corroborado por meio de prova mais cabal, nomeadamente, testemunhal, documental, ou outro, que apresente versão dos factos conforme com a da parte que presta declaração.

  7. As Recorrentes são da opinião que a prova por declarações de parte deve ser sempre atendida como um meio de prova complementar, ou seja, como prova subsidiária, necessariamente corroborada por outros meios mais desinteressados e imparciais, que permitam ao Juiz firmar convicções sobre os factos objecto de pleito.

    I. De acordo com o artigo 414.º do CPC “[a] dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”, como tal, se o Douto Tribunal, perante os diferentes meios de prova produzidos em juízo, considerar que subsistem dúvidas sobre a realidade de um facto, a referida dúvida resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

  8. A análise do artigo 414.º do CPC tem particular interesse quando conjugado com a força a atribuir às declarações de parte, nos termos do n.º 3 do artigo 466.º do CPC, na medida em que, sendo este meio de prova parcial e interessado, e havendo dúvidas sobre a realidade de factos abordados naquelas declarações, o Mm.º Juiz deverá resolver a dúvida contra a parte a quem o facto aproveita.

  9. Entendem as Recorrentes que o Douto Tribunal a quo, em sede de decisão sobre a matéria de facto, violou os preceitos incertos nos artigos 414.º e 466.º, ambos do CPC, quando deu como provado, na alínea L, o pagamento dos valores de 4.600.000$00 e 27.200.000$00 com base, tão só, nas declarações de parte da Ré FF.

    L. Se a prova da existência do contrato de mútuo cabia às ora Recorrentes, por outro lado, a prova do seu pagamento, enquanto facto extintivo do direito invocado pelas Recorrentes, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC, cabia aos Réus.

  10. Tendo em conta que a testemunha GG nada sabia sobre o pagamento da quantia reclamada pelas Autoras, então, resulta manifesto que os Doutos Tribunais de primeira e segunda instância deram como provado o pagamento das quantias de 4.600.000$00 e 27.200.000$00, tendo, tão só, por base, o depoimento de parte da Ré FF.

  11. Constam dos autos meios de prova apresentados pelas Autoras, mormente, as suas declarações de parte, os cheques emitidos pelo Réu marido, a carta testamento, a minuta de contrato de mútuo, entre outros, que contrariam ou, pelo menos, geram dúvidas relativamente à credibilidade do depoimento de parte da Ré, no segmento em que refere que as quantias reclamadas pelas Autoras se encontram integralmente pagas.

  12. Entendem as Recorrentes que, confrontando as declarações de parte da Ré FF com os demais meios de prova trazidos aos autos pelas ora Recorrente, seria impossível ao Douto Tribunal da Relação de Lisboa afirmar, com certeza bastante, que as quantias de 4.600.000$00 e 27.200.000$00 foram pagas pelos Réus com base em cheques pré-datados de clientes seus.

  13. Importa referir que não se trata aqui de sindicar a livre convicção das instâncias relativamente aos factos controvertidos, mas tão-só perceber se era possível, tendo em conta os factos que teve conhecimento, não ter ficado com dúvidas quanto a saber se, efectivamente, aquelas quantias já haviam sido pagas pelos Réus a DD, tendo tão só como meio de prova as declarações de parte da Ré.

  14. Apesar das declarações de parte da Ré estarem sujeitas à livre apreciação do julgador, parece irrazoável extrair exclusivamente das suas palavras a prova deste facto, sobretudo porque se tratou de um depoimento cheio de incongruências.

  15. Os Réus nunca lograram juntar cópia dos cheques pré-datados alegadamente entregues aquando da celebração do contrato de mútuo em discussão nos presentes autos, assim como do comprovativo do seu desconto.

  16. Não é crível que apenas socorrendo-se das palavras da Ré FF, o tribunal a quo não tenha ficado com dúvidas quanto ao referido facto...

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