Acórdão nº 24285/15.9T8PRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Junho de 2019

Magistrado ResponsávelPEDRO LIMA GONÇALVES
Data da Resolução19 de Junho de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

I Relatório 1.

AA e BB intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra CC, pedindo que se reconheça e condene a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o imóvel, condenando-se ainda a Ré a entregá-lo livre e desocupado de pessoas e bens, bem como se condene a Ré a pagar-lhes, a título de indemnização, a quantia de €286,00 por cada mês de ocupação desde a citação e até efetiva restituição.

Alegam, em síntese, que: são os legítimos donos e proprietários do imóvel urbano sito em ..., tendo-o adquirido por sucessão de seus pais; A Ré vem ocupando tal imóvel, recusando-se a entregá-lo aos Autores, ofendendo dessa forma o seu direito de propriedade.

2. Citada, a Ré contestou, excecionando que ocupa legitimamente o local, pois aquele imóvel foi arrendado pelo pai dos autores ao pai da ré; que após o falecimento deste, o arrendamento transmitiu-se para a sua mãe e, com o óbito desta, para si, mantendo-se o referido contrato de arrendamento em vigor desde então e até ao momento atual, tendo sempre sido pagas as rendas.

Invoca a exceção do abuso do direito dos Autores, pois que aqueles sempre conheceram a relação contratual que legitima a ocupação da Ré do imóvel, sempre tendo recebido as respetivas rendas.

Deduziu reconvenção “por mera cautela de patrocínio”, pedindo a condenação dos Autores a pagarem-lhe a quantia de €5.000,00, a título de obras efetuadas no local.

Pedem também a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização em valor a fixar pelo tribunal por terem falseado uma realidade que bem conhecem e omitirem factos essenciais para a descoberta da verdade.

3.

Os Autores responderam à contestação/reconvenção, impugnando os factos ali alegados, afirmando nunca terem conhecido e/ou reconhecido a Ré como arrendatária, pois que, até pela distância a que residem (em ... e no ...) apenas agora tomaram conhecimento do arrendamento ao pai da Ré e transmissão do mesmo à sua mãe, transmissão que apenas opera em um grau.

4.

Foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador do processo, que identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

5.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença final, que decidiu: “Julgo a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, por também parcialmente provadas e, consequentemente, decido: A-Condenar a ré, CC, a reconhecer que os autores AA e BB, são donos e legítimos proprietários do imóvel urbano sito em ..., com a área total de 328 metros e coberta 121,925 metros, composto por casa de rés-do-chão e logradouro, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 1836/20021031 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 6190; B- Condenar a ré a entregar aos autores o imóvel acima identificado livre e devoluto de pessoas e bens; C- Condenar a mesma ré a pagar aos autores, a título de indemnização, a quantia de 39,41€ (trinta e nove euros e quarenta e um cêntimos) mensais, contados desde a citação e até à efectiva restituição do imóvel livre de pessoas e bens; D- Condenar os autores/reconvindos AA e BB, a pagar à ré/reconvinda CC, a quantia de 3.700,00€ (três mil e setecentos euros), a título de benfeitorias; E- Absolvendo autores e ré dos demais contra si peticionado.” 6.

Não se conformando com a decisão, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

7.

O Tribunal da Relação do Porto veio a julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu: “em julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida, julgando-se em consequência improcedentes os pedidos formulados sob as alíneas c) e d) da p.i, absolvendo-se a ré dos pedidos de entrega do imóvel ora reivindicado aos autores, bem como da condenação em pedido de indemnização.

Fica ainda prejudicada a condenação dos AA/reconvindos no pedido reconvencional, uma vez que aquele foi formulado subsidiariamente para o caso da procedência total da acção principal, circunstância que deixou de subsistir com a revogação parcial da sentença.” 8.

Inconformados com tal decisão, os Autores vieram interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões: 1ª. No entender dos ora recorrentes afigura-se incorreta a decisão do Tribunal da Relação do Porto na aplicação do Direito ao caso concreto.

  1. Estamos na presença de um problema de aplicação de leis no tempo, o que impõe alguma reflexão prévia sobre as sucessivas leis que foram sucedendo no tempo relativas ao arrendamento (sucessão por morte), com efeitos nos contratos dos autos, tendo presente o princípio geral contido no artigo nº. 12 do Código Civil e bem assim as normas de cariz transitório contidas nas sucessivas "leis novas" que foram entretanto em vigor, regulando esta matéria.

  2. Tendo o contrato de arrendamento para a habitação dos autos sido celebrado em Julho de 1965, é aplicável o regime transitório do NRAU, nomeadamente o disposto no art. 57º., nº. 1.

  3. O contrato dos presentes autos foi celebrado antes da vigência do RAU, logo prevê o nº. 1 do art. 28º. do NRAU que a estes contratos aplicam-se as disposições dos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU, ou seja, a estes contratos também se aplicam os artigos 57º. e 58º. do NRAU.

  4. O art. 57º. do NRAU, com efeito, estabeleceu um regime transitório, quanto à transmissão por morte no arrendamento para habitação, aplicável aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL nº. 321-B/90, de 15 de outubro, como comprova o artigo o art. 27º. do NRAU, que estabelece: "As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto‑Lei nº.321-B/90, de 15 de outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº. 257/95, de 30 de setembro." 6ª. Um regime transitório semelhante foi também fixado para os contratos celebrados na vigência do RAU (art. 26.°, nº.s 1 e 2, do NRAU). O art. 57º., nº. 1, do NRAU sofreu, entretanto, alteração, decorrente da Lei nº. 31/2012, de 14 de agosto, nomeadamente no sentido de que a transmissão por morte no arrendamento para a habitação pode ser feita a "pessoa que com ele ("primitivo arrendatário") vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano".

  5. O regime transitório, fixado no NRAU, continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do RAU, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art. 1106º. do CC, consagrado pelo NRAU.

  6. Tendo o contrato de arrendamento para a habitação dos autos sido celebrado em Julho de 1965, é aplicável o regime transitório do NRAU, nomeadamente o disposto no art. 57º., nº. 1.

  7. O artigo 57º., nº. 1, alínea a) do NRAU dispõe, no que ora releva, e sob a epígrafe, "Transmissão por morte no arrendamento para habitação": "1 - O arrendamento para habitação no arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge com residência no locado." 10ª. Este preceito, porém, não é aplicável ao caso dos presentes autos, porquanto a norma apenas se aplica às situações em que está em causa a "morte do primitivo arrendatário”.

  8. Conforme refere Pinto Furtado "[f]alava-se de primitivo arrendatário para exprimir que, em função das sobrevivências enumeradas nas alineas [do artigo 85°do RAU], a não caducidade só operava, em princípio, em um grau, isto ti, para o arrendatário (por direto arrendamento ou cessão a posição contratual) primeiro falecido." 12ª. Estamos perante regime transitório que difere amplamente quer daquele que o RAU previa quer do que foi consagrado pelo NRAU para os novos contratos.

  9. Com efeito, e por um lado, os afins em linha recta ascendente e os conviventes em economia comum deixaram de ser beneficiários da transmissão por morte do arrendamento habitacional, sucedendo o mesmo com os descendentes que não sejam filhos (netos, por exemplo). Por outro lado, os membros da união de facto surgem agora colocados em primeiro lugar na ordem de transmissão, logo a seguir ao cônjuge, sendo que os ascendentes passaram a preferir aos filhos. Finalmente, quanto aos filhos e aos enteados fixou-se um limite etário que constitui um dos requisitos do direito à transmissão (alínea d), permitindo-se apenas a transmissão para os filhos e enteados maiores com idade inferior a 26 anos se frequentarem o 11º. ou 12º. ano de escolaridade, ou se tiverem uma "deficiência com grau...

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