Acórdão nº 4301/16.8T8VIS.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 04 de Junho de 2019

Magistrado ResponsávelJOSÉ RAINHO
Data da Resolução04 de Junho de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção): I - RELATÓRIO AA, S.A.

demandou, pela Secção Cível da Instância Central de Viseu e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, BB, S.p.A.

, peticionando a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 138.503,85, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

Alegou para o efeito, em síntese, que celebrou com a sociedade CC, Lda. um contrato de seguro destinado a cobrir danos nas instalações industriais da segurada e nas frutas aí conservadas.

A Ré contratara com esta segurada da Autora o fornecimento e montagem de um sistema de conservação em atmosfera controlada das câmaras frigoríficas que a segurada possui nessas instalações.

Ocorre que, devido a funcionamento anómalo desse sistema, sofreram as instalações e a fruta que aí se encontrava armazenada os estragos que a Autora descreve.

Em consequência disso, em cumprimento do contrato de seguro, a Autora teve que indemnizar a sua segurada no montante global de € 138.503,85.

Ficou assim a Autora sub-rogada nos direitos da segurada, de sorte que lhe asiste o direito de receber da responsável pelo sinistro, e que é a Ré, o montante que pagou, acrescido dos juros de mora.

+ Contestou a Ré.

No que ainda interessa ao caso, impugnou parte da factualidade alegada pela Autora e concluiu pela improcedência da ação.

+ Seguindo o processo os seus devidos termos, veio, a final, a ser proferida sentença (Juízo Central Cível de Viseu-Juiz 1) que, em procedência da ação, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 138.504,85, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

+ Inconformada com o assim decidido, apelou a Ré.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação de Coimbra, usando embora fundamentação diversa, confirmou a sentença.

+ Mantendo-se irresignada, pede a Ré revista.

+ Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões: 1ª - Surgem as presentes alegações no âmbito do recurso do Acórdão proferido nos autos, nos termos do qual se julgou improcedente a apelação interposta pela ora Recorrente, confirmando a sentença recorrida, ainda que com fundamentação diversa e, consequentemente, condenando a Apelante no pagamento da quantia € 138.504,85, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, e com a qual se não pode conformar.

  1. - Nos presentes autos, a Recorrida, sub-rogada nos direitos da sua segurada CC, demandou a Recorrente alegando que o sistema de conservação em atmosfera controlada por esta fornecido provocara, por funcionamento anómalo, uma depressão súbita e acentuada dentro das câmaras de conservação que originou danos valorados em 146.161,35€, que indemnizou nos termos contratualmente fixados em 138.503,85€, sendo que a Recorrente confirmou a encomenda mas declinou qualquer responsabilidade no acidente ocorrido, por o mesmo não resultar de qualquer atuação sua ou que lhe seja imputável.

  2. - Enquanto o Tribunal de 1ª instância condena a Recorrente no pedido, fundamentando a sua decisão no cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, o Tribunal da Relação de Coimbra ainda que confirme a decisão da 1ª instância, fá-lo alicerçando-se no cumprimento defeituoso não do contrato de compra e venda mas do contrato de empreitada, posição de que a Recorrente discorda no que respeita à qualificação jurídica do contrato celebrado entre a CC e a BB, sendo esta a vexata quaestio do presente recurso.

  3. - A qualificação jurídica operada pelo douto Tribunal da Relação de Coimbra é, no entendimento da Recorrente, desajustada à realidade contratual estabelecida entre as partes nele intervenientes, impondo-se a sua requalificação como contrato de compra e venda e, consequente, aplicação do regime legal a esta inerente, sendo que a problemática em discussão leva-nos, em primeira linha, para a análise dos contrato de compra e venda e de empreitada e delimitadas que estejam estas duas realidades contratuais, pelo menos dentro do possível, impõe-se interpretar a vontade das partes, nos termos legalmente definidos, para definir a relação jurídica efetivamente existente.

  4. - Tratando-se a compra e venda e a empreitada de negócios tipificados na lei, haverá que atender, desde logo, às noções legais plasmadas no código civil, sendo que, no que respeita ao primeiro, estabelece o artigo 874º do CC que a «Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço», donde se infere que o seu objeto essencial reside na transmissão de um direito, de propriedade ou de outra natureza, sendo o efeito translativo que decididamente o caracteriza.

  5. - A constituição da obrigação de entrega do bem (objeto mediato) e de pagamento do respetivo preço que surge para cada uma das partes emerge precisamente da transferência do direito que se dá por mero efeito do contrato, sendo, pois, este negócio o veículo das trocas de produtos mediante com contrapartida monetária.

  6. - Por seu turno, o contrato de empreitada é uma espécie autónoma dos contratos de prestação de serviço, que se caracterizam pela circunstância de uma das partes proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (Cf. art.ºs 1154º e 1155º), sendo que o que o particulariza é o facto do resultado a que se obriga uma das partes em relação à outra ser o de realização de uma obra, assim o definindo o legislador no artigo 1207º do CC, devendo consubstanciar «uma alteração física de coisa corpórea».

  7. - Em suma, para o empreiteiro advém uma prestação de resultado que se consubstancia na realização e uma obra e para o dono de obra uma obrigação de pagamento do preço que corresponderá à ao valor da obra, sendo os fatores chave da empreitada a prestação do trabalho e a “novidade” acrescentada que esta traz a alguma coisa.

  8. - A este propósito chama-se à colação os Professores Pires de Lima e Antunes Varela que referem, a propósito da empreitada que «Por realização de uma obra deve entender-se não só a construção e criação, como a reparação, a modificação ou demolição de uma coisa. Do que não pode prescindir-se é de um resultado material, por ser esse o sentido usual, normal, do vocábulo obra (…), e a propósito da compra e venda que «Tendo por objeto essencial a transmissão de um direito (seja propriedade, seja de outra natureza) que, para ser transferido, necessita de existir previamente como tal, na titularidade do vendedor, a compra e venda não se confunde com o contrato de empreitada, que tem por objeto fundamental a realização de uma obra (art. 1207º» - Pires de Lima e Antunes Varela.

  9. - Já muita tinta fez correr a distinção entre contrato de compra e venda e contrato de empreitada, sobretudo quando alguém se obriga a realizar certa obra e assegura igualmente o fornecimento das matérias necessárias à sua execução, sendo bastante elucidativo o raciocínio plasmado no Acórdão do STJ, datado de 20.10.2003, que num esforço, bem conseguido, resume em breves linhas os critérios distintivos de cada um dos contratos e, consequentemente, orientadores da análise do interprete/julgador, que passamos a enunciar: «a) prevalência da obrigação de dare, ou da obrigação de facere, tratando-se naquele caso de compra e venda e neste de empreitada; b) na empreitada, ao invés da venda, a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho o escopo essencial do negócio; c) além disso, na empreitada o bem produzido representa um quid novi relativamente» à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais concernentes à forma, à medida, à qualidade do objecto fornecido».

  10. - Transpondo estes ensinamentos para o caso concreto que nos ocupa, entende a Recorrente que não há como configurar o contrato celebrado como de empreitada, já que se está perante contrato bilateral em que aquela se dispôs a fornecer e montar um sistema de atmosfera controlada e a segurada da Recorrida se obrigou a pagar o respetivo preço, não criando aquela nenhuma coisa nova, autónoma dos equipamentos que forneceu, que essa sim, se existisse, seria suscetível de enquadrar o conceito de obra.

  11. - O que a segurada da Recorrida adquiriu foi um sistema de atmosfera controlada, tendo a Recorrente entregue nas suas instalações a maquinaria e componentes integrantes daquele sistema, limitando-se a pô-los a funcionar o que pouco ou nada difere da máquina de lavar adquirida numa superfície comercial com entrega e montagem ao domicílio, que necessita obviamente de ser instalada no imóvel, o que poderá implicar, dependendo do local e espaço onde aquela é colocada, uma extensão de canalização de água e/ou escoamento, puxada de eletricidade, instalação de uma nova tomada ou de um novo sifão.

  12. - A Recorrente não fabricou equipamentos especialmente adaptados ao armazém da segurada da Recorrida, nem tal a Recorrida refere, pois, o equipamento fornecido e montado pela Recorrente mais não é do que um produto do seu comércio sem qualquer particularidade, apresentou a sua proposta comercial para o fornecimento com montagem do sistema de atmosfera controlada, a pedido da segurada da Recorrida, que o aceitou nos precisos termos, conforme resulta do contrato de fls.97v a 103.

  13. - Não há nenhuma factualidade no processo que foque qualquer alteração do processo produtivo da Recorrente, ou seja, qualquer modificação relevante ou adaptação considerável dos equipamentos e/ou componentes fornecidos à segurada da Recorrida, os quais foram inclusive propostos pela Recorrente e estão identificados quer no contrato, quer na fatura através do seu modelo e número de série, pelo que fácil se torna de ver que, segundo as regras da experiência comum, se tratam de equipamentos que esta produz periódica e profissionalmente.

  14. - É, por conseguinte, evidente que o processo produtivo "não integra o objeto principal do contrato" e que o que a segurada da Recorrida pretendia era obter a...

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