Acórdão nº 1649/14.14.0T8VCT.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 09 de Janeiro de 2019
Magistrado Responsável | SOUSA LAMEIRA |
Data da Resolução | 09 de Janeiro de 2019 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO l. AA, divorciado, …, residente no Lugar …, Lote …, apartado 85, …, ..., e BB, divorciada, … (reformada), contribuinte fiscal n.º 14…0, residente na Rua Dr. …, n.º …, 1.º Dto, ..., instauraram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra CC - Companhia de Seguros, S.A., com sede no …, n.º …, 1249 - Lisboa, alegando: Ocorreu um acidente de viação que se ficou a dever a culpa única e exclusiva do condutor do veículo ...-...-XR, de que advieram para os AA. danos patrimoniais e não patrimoniais, cuja indemnização impetram à Ré, sendo que à data do acidente a responsabilidade civil emergente da circulação de tal veículo encontrava-se transferida para a Ré, mediante contrato de seguro válido e eficaz.
Concluem pedindo a condenação da Ré a pagar: a) ao Autor AA: I. a quantia global de € 1.344.874,24 (um milhão, trezentos e quarenta e quatro mil, oitocentos e setenta e quatro euros e vinte e quatro cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro em crise nos presentes autos; II. as quantias a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença e referente aos danos alegados nos pontos I. II., III. E XIV. do artigo 210.º da p.i.; III. a quantia a título de juros de mora calculados à taxa legal e contabilizados desde a citação até efectivo e integral pagamento; b) - à Autora BB: I. a quantia de € 25.400,00 (vinte e cinco mil e quatrocentos euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente de viação sub judice; II. a quantia a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença e referente aos danos alegados nos pontos VII do artigo 210.º da p.i.; III. a quantia a título de juros de mora calculados à taxa legal e contabilizados desde a citação até efectivo e integral pagamento; 2.
Contestou a Ré CC - Companhia de Seguros, S.A.
confessando os factos inerentes à dinâmica do acidente, aceitando a responsabilidade decorrente do mesmo, impugnando contudo os factos descritos na p.i. referentes à natureza, extensão e valor dos danos reclamados pelos AA.
Requereu, ainda, a intervenção acessória do condutor do veículo ...-...-XR, que, à data do acidente, acusou uma TAS de 1,74g/l, invocando, para o efeito, o seu direito de regresso ao abrigo do disposto no art. 27.º, al. c), do DL 291/2007, de 21/8, em caso de condenação.
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Admitida a requerida intervenção, foi o chamado citado, vindo aos autos juntar procuração a favor da IL. Mandatária por si constituída. 4.
A fls. 319 e ss, o A. AA procedeu à ampliação do pedido, liquidando os danos relativos à necessidade de adaptação da sua residência, dos seus cinco veículos e uma caravana, passando a ascender o pedido global à quantia de € 1.422.290,24, sendo € 1.370.270,24 referente ao pedido formulado na p.i. e € 52.020,00 referente à ampliação.
5.
A fls. 471 e ss o A. procedeu a nova ampliação do pedido para a quantia global de € 1.839.791,20, sendo € 1.422.290,24 referente ao pedido formulado na p.i. e no requerimento de ampliação de fls. 319 e ss e de € 417.500,96 referente aos montante ampliados nos artigos 17º, 20º e 21º.
6.
Instruído o processo, foi proferido despacho saneador, procedeu-se ao julgamento, tendo sido, de seguida, proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a R: «a) a pagar ao A. a quantia de € 841.051,06 (oitocentos e quarenta e um mil e cinquenta e um euros e seis cêntimos), sendo € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais e € 741.051,06 a título de danos patrimoniais; b) a pagar ao A. o montante que se vier a liquidar em sede de liquidação da presente sentença relativamente aos danos melhor descritos em 1.79., 1.80, 1.124., 1.125. dos factos provados.
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a pagar ao A. os juros de mora à taxa de 4% (Portaria 291/03, de 8 Abr): • desde a citação até integral pagamento, sobre o montante relativo aos danos patrimoniais; • desde hoje até integral pagamento, sobre o montante relativo aos danos não patrimoniais.
No mais, se julgando a acção improcedente, e designadamente quanto aos pedidos formulados pela A. BB, absolvendo a R. do restante peticionado».
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Inconformados com a decisão, foi interposto recurso pelos Autores e pela Ré.
O Tribunal da Relação de …, por Acórdão de 10 de Julho de 2018, decidiu: «julga-se improcedente o recurso interposto pelos AA. e parcialmente procedente o recurso da Ré, reduzindo-se, consequentemente, a indemnização, a título de danos patrimoniais, à quantia de 472.996,76 (quatrocentos e setenta e dois mil, novecentos e noventa e seis mil euros e setenta e seis cêntimos), a pagar pela Ré ao A., acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, bem como o montante que se vier a liquidar em execução de sentença pelas perdas que se vier a provar ter tido pelo facto de não ter podido desenvolver a actividade referenciada no ponto 113, dos factos dados como provados em resultado da alteração fáctica supra mencionada quanto a esse ponto, no mais se confirmando, a sentença recorrida».
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Inconformados, os Autores, recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formularam as seguintes conclusões: I.
O segmento recursivo i) incide sobre a aplicação do disposto no artigo 64.º n.º 7 do Dec. Lei 291/2007, de 21 de agosto - a indemnização deve ser calculada com base no rendimento líquido ou ilíquido do sinistrado; II.
No que respeita ao segmento recursivo i), é admitida revista ordinária pois o douto acórdão recorrido revogou a douta sentença de primeira instância ao determinar o cálculo do valor indemnizatório por danos patrimoniais com base no montante de rendimentos líquidos, e não os ilíquidos, como determinara a primeira instância - sendo o recurso admitido pela interpretação a contrario sensu do disposto no n.º 3 do artigo 671 .º do CPC; III.
O segmento recursivo ii) incide sobre a improcedência do pedido de compensação pelo dano biológico; IV.
No que respeita ao segmento recursivo ii), também é admitida revista ordinária, pois apesar de o douto acórdão recorrido ter confirmado a decisão de 1.ª instância no sentido da improcedência da acção nesta parte, fê-lo com fundamentação essencialmente diferente - sendo também este segmento recursivo admitido pela interpretação a contrario sensu do disposto no n.º 3 do artigo 671 .º do CPC; V.
O segmento recursivo iii) incide sobre a improcedência do pedido da Autora BB no que respeita aos danos não patrimoniais laterais em caso de lesão não fatal - o caso de débito conjugal, tendo em conta os direitos do unido de facto.
VI.
A questão levantada pelo segmento recursivo iii) impõe a revista excepcional por se considerar necessária para uma melhor aplicação de direito e por se referir a matéria em que estão em causa interesses de particular relevância social VII.
A quantificação da indemnização devida por danos patrimoniais em resultado de acidente de viação não pode ter como pressuposto os rendimentos líquidos do lesado; VIII.
Tal contraria as disposições contidas nos artigos 562.º e seguintes do CC, que visam a indemnização do dano concreto realmente sofrido pelo lesado, bem como o princípio constitucional da justa indemnização conforme estatuído no artigo 2.º da CRP; IX.
É indiscutível que aquilo que o lesado realmente perde, em virtude do evento lesivo, é o seu salário ilíquido e não o líquido; X.
A aplicação da carga tributária respeita somente às relações entre o Estado e os lesados, não devendo a não incidência legalmente decidida no âmbito da tributação do sujeito beneficiário ser transferida para benefício dos lesantes ou das respectivas seguradoras; XI.
O Estado decidiu abdicar da tributação das indemnizações auferidas por factos ilícitos ao estabelecer (pelo menos por agora) uma não incidência de IRS sobre esses ganhos - vide artigo 12.º n.º 1 do Código do IRS [e sua alínea b)]; XII.
E esta opção legislativa tem que ser entendida a favor do contribuinte, titular desse direito indemnizatório - não a favor do lesante ou das companhias de seguros para as quais a responsabilidade deste foi transferida; XIII.
Calcular-se uma indemnização por danos patrimoniais em consequência de lesões corporais com base no valor de rendimentos auferidos após impostos (desajustadamente mencionados como rendimentos líquidos), equivale a assumir que a indemnização seria tributada - mas como não é, estar-se-á consequentemente a transferir para o lesante o benefício fiscal inerente à não incidência de imposto; XIV.
Este é o único entendimento que corresponde ao tratamento justo e razoável dos lesados, determinando o afastamento do n.º 7 do artigo 64.º do Dec. Lei 291/2007, de 21 de agosto; XV.
Por outro lado, é notório que a aplicação do critério do rendimento líquido, circunscrito à indemnização por danos originados pela circulação de automóveis sujeitos ao seguro obrigatório representa uma clara discriminação negativa relativamente à indemnização de danos provenientes dos demais eventos geradores de responsabilidade civil; XVI.
Caso a indemnização não tenha origem em acidente de viação, o respectivo quantitativo não ficará sujeito aos estreitos limites previstos no n.º 7 do artigo 64.º do aludido diploma legal; XVII.
Assim, é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da justa compensação, consignados nos artigos 13.º e 2.º da CRP, o artigo 64.º n.º 7 do Dec. Lei 291/2007, de 21 de agosto, na parte em que impõe a consideração do rendimento líquido para quantificação da indemnização por danos patrimoniais decorrentes de acidente de viação; XVIII.
Por outro lado, o artigo 1.º do Dec. Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto que aditou ao artigo 64.º do Dec. Lei 291/2007, de 21 de Agosto, o n.º 7, enferma de inconstitucionalidade orgânica, por versar, sem a necessária autorização do governo, de matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da...
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