Acórdão nº 2188/14.4TBVNG.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 16 de Junho de 2016

Magistrado ResponsávelTAVARES DE PAIVA
Data da Resolução16 de Junho de 2016
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - Relatório AA, SA instaurou acção com processo comum contra PT COMUNICAÇÕES SA pedindo a condenação da Ré :

  1. A cumprir pontualmente o contrato, isto é, sem interrupções; b) A pagar à autora uma indemnização global num montante nunca inferior a € 168.140,71 a título de danos emergentes e lucros cessantes; c) A pagar à autora uma indemnização no valor de € 20.000, por danos não patrimoniais d) A pagar uma sanção pecuniária compulsória a fixar pelo Tribunal, por cada interrupção no fornecimento dos serviços superior a 10 horas.

    Alegou, em síntese, que no âmbito das suas actividades, a autora e ré mantêm há mais de 3 anos, um contrato para prestação de serviços de comunicações electrónicas de telefone fixo e fax , mediante a qual a ré se obrigou a enviar à autora sinais através de redes de comunicações electrónicas , incluindo os serviços de telecomunicações e os serviços de transmissão e redes utilizadas para a radiodifusão pelos serviços prestados, a autora paga à Ré um valor monetário mensal, variável em função do tempo de utilização dos serviços e locais para onde as comunicações electrónicas são estabelecidas.

    A partir do início do ano de 2012 os serviços da ré deixaram, de forma frequente, de serem prestadas nas condições que foram contratadas, apresentando sempre várias anomalias que comprometem o seu funcionamento. Devido a tais anomalias, a autora efectuou várias reclamações junto da ré.

    Dadas as interrupções verificadas no fornecimento dos serviços de comunicações electrónicas, a autora não recebeu muitas comunicações dos seus clientes, mesmo encomendas, tendo até perdido contratos. A imagem da autora ficou abalada junto dos seus clientes.

    As anomalias verificadas no fornecimento dos serviços prestados pela Ré causaram prejuízos cujo ressarcimento peticiona.

    A Ré contestou, excepcionando a incompetência territorial, sustentando a competência da comarca de Lisboa.

    Por impugnação, aceitou que a autora lhe comunicou situações de avarias, as quais na maior parte das situações ocorreram por causas alheias à disponibilidade da contestante. Não aceitou problemas com os serviços de internet. Algumas situações tiveram origem em problemas derivados de equipamentos pertencentes à Ré. As avarias deveram-se a facto imprevisível e estranho ao funcionamento do equipamento.

    Impugnou os danos invocados.

    Sustentou a inexistência de incumprimento.

    A autora respondeu, concluindo pela improcedência da excepção.

    No saneador foi julgada improcedente a excepção de incompetência. No mais, afirmou-se a validade e regularidade da instância.

    Prosseguindo os autos para julgamento, foi proferida sentença (fls. 282/313) que julgou a acção improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.

    A Autora não se conformou e interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, pelo Acórdão inserido a fls. 419 a 453 confirmou a sentença da 1ª instância.

    A novamente inconformada interpôs recurso de revista excepcional, recurso este que submetido à Formação a que alude o art. 672 nº3 do CPC foi admitido nos termos do Acórdão inserido a fls.515 a 518.

    A autora formula as seguintes conclusões: Os pressupostos da interposição do presente recurso de revista excecional prendem-se com o facto de nos encontrarmos perante uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (Cfr. Alínea a) do n.° 1 do artigo 72° do CPC, e porque s-: encontram também em causa interesses de particular relevância social (Cfr. alínea b) do n.° 1 do artigo 72° do CPC).

  2. Na verdade, a qualificação da recorrente como consumidor e como utente de bens públicos essenciais merece uma melhor aplicação do direito no eu se refere aos pressupostos da responsabilidade civil contratual que se leve extrair da recorrida enquanto prestadora de um serviços público essencial, a mesma forma que, o mercado dos bens públicos essenciais encerra em si um, relevância social de tal forma particular que a proteção dos utentes e as responsabilidades dos prestadores de serviços, terão que ser alvo de uma apreciação cuidada.

  3. A Lei n.° 24/96 de 31 de Julho, não responde expressamente à questão da natureza singular ou coletiva do consumidor, referindo apenas que: Considera-se consumidor todo aquele...", deixando assim ao intérprete a tarefa de indicar a resposta.

    d. Entendeu assim o legislador que apenas o aplicador do direito poderia alcançar a justiça do caso concreto.

  4. A jurisprudência tem vindo a aplicar, casuisticamente, o conceito de consumidor às pessoas coletivas.

  5. Ora, a qualificação de uma das partes como consumidor numa contenda não pode ter um efeito neutro, ou seja, esta especial qualificação terá queler necessariamente uma especial consequência na decisão, diferente de outras decisões em que a noção de consumidor se encontre ausente.

  6. No caso concreto, o Tribunal a quo qualificou a autora, ora recorrente, como consumidora, como aliás tinha já ocorrido, e bem, na 1ª instância, reconhecendo assim a posição mais desfavorável em que a recorrente se encontra na relação contratual estabelecida com a ré, recorrida.

  7. Por outro lado, a recorrente, sem perder tal qualificação, apresenta-se aqui na qualidade de utente dos serviços públicos essenciais de comunicações electrónicas, apresentando-se a recorrida, por seu lado, como prestadora de tais serviços {Cfr. artigo 1º n.° 2 alínea d), n.° 3 e n.° 4 da Lei n.° 23/96 de 26 de Julho - LSPE).

  8. Com a LSPE, foi intenção clara do legislador diminuir o desequilíbrio criado peia falta de poder negocial dos utentes face aos prestadores de serviços, obtendo uma maior transparência e equidade, bem como, normalizar, segundo elevados padrões de qualidade a prestação dos serviços.

  9. Portanto, nesta contenda, a recorrente encontra-se protegida por ser consumidora, isto é, a parte mais vulnerável na relação contratual que estabeleceu com a recorrida, ao que acresce ainda uma outra proteção por ser utente, e por isso adquirente de um serviço público essencial que a Lei visa proteger dada a importância em termos de estratégia económica e bem estrar social em que se insere o mercado das comunicações eletrónicas.

  10. Pelo que, não poderá o comportamento da recorrida ser apreciado à luz da responsabilidade contratual como se se tratasse de um outra relação contratual qualquer.

    1. Terá necessariamente o aplicador do direito que tratar de forma diferente aquilo que é diferente, sob pena de fazer tábua rasa do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado.

  11. E aqui nem o Tribunal de 1ª instância nem o Tribunal a quo tiveram a capacidade de tratar o incumprimento da recorrida com a especialidade e exigência que era devida, por a relação estabelecida entre a recorrente e a recorrida se enquadrar num quadro contratual diferente (e mais exigente), daquela que decorre da responsabilidade civil contratual consagrada no Código Civil Português, sem a combinação da LDC e LSPE.

  12. Na verdade, a continuidade na prestação do serviço assume, nos serviços públicos essenciais, uma dimensão de exigência que não existe nos mamais serviços prestados fora do âmbito deste mercado específico.

  13. Neste âmbito, a análise da qualidade deste serviço só se poderá fazer como um todo, em termos de considerar a globalidade das interrupções verificadas e a sua frequência, pois a qualidade só se poderá classificar dessa análise de conjunto e não da análise de cada uma das interrupções per si.

  14. No caso ora em análise, não se pode considerar normal o número de interrupções no serviços de comunicações eletrónicas prestado pela recorrida à recorrente verificadas entre os anos de 2012 e 2013 e que resultou em 427 horas s 56 minutos de privação dos serviços, tanto mais que parte das avarias foram da responsabilidade da ré, ora recorrida - Cfr. factos provados q), pontos c, f, i, I, m, n, p, q, r, s, t, u, w.

    q. De facto, é legítimo esperar de uma empresa que não há tanto tempo assim detinha o monopólio das comunicações eletrónicas, esteja adaptada em termos de modernidade e eficiência à evolução do mercado e da sociedade.

  15. Face à luz de tudo o que foi dito até aqui, dificilmente se percebe que, tendo ficado provado que a recorrente, fruto das interrupções no fornecimento de comunicações eletrónicas, não recebeu muitas encomendas - Cfr. factos provados) -, não resulte qualquer responsabilidade para a recorrida, tendo em conte a exigência do mercado de bens públicos essências em que esta atua.

  16. E, salvo o devido respeito, não será seguramente uma boa interpretação do direito afastar a exigente responsabilidade contratual da recorrida e quanto prestadora de um serviço público essencial e a consequente proteção legal conferida aos utentes e aos consumidores, apenas porque ficou provado também que s recorrente poderia ter-se socorrido dos demais serviços que possuía ativos para fazer face às suas necessidades - Cfr. factos provados pp).

  17. Não foi certamente vontade do legislador afastar a responsabilidade do prestador do serviço público essencial, quando este demonstrar que o utente poderia ter feito uso de outros serviços.

  18. Na verdade o que pretende a LPSE e a LDC é criar uma responsabilidade acrescida aos prestadores de serviços e não o contrário, ou seja, impor aos consumidores/utentes elevados padrões de cuidados.

  19. Só assim se poderá alcançar um mercado de bens públicos essenciais justo, equilibrando as relações entre os utentes e os prestadores de serviços e ao mesmo tempo um mercado competitivo, impondo aos prestadores de serviços elevados padrões de qualidade conferindo aos utentes confiança e vontade de contratar.

  20. É portanto de concluir, para a boa aplicação do direito, que os prestadores de serviços públicos essências devem pautar a sua conduta por elevados padrões de qualidade, neles devendo incluir-se o grau de satisfação dos utentes (cfr. artigo 7º da LSPE) e não apenas pelo padrão mediano de bónus pater familiae (Cfr. artigo 487° n.° 2 do...

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