Acórdão nº 865/13.6TBDL.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 16 de Junho de 2016

Magistrado ResponsávelTOMÉ GOMES
Data da Resolução16 de Junho de 2016
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I – Relatório 1.

AA (A.), falecida na pendência dos autos e ora representada pelos respetivos herdeiros BB, CC e DD instaurou, em 19/04/2013, junto do então Tribunal Judicial de Ponta Delgada, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra EE e FF (R.R.) alegando, em síntese, que: .

A A. é prima e a única e universal herdeira de GG, falecida em 30/04/2012, a qual deixou, entre outros bens, uma conta bancária por ela constituída em 12/07/2005, mas que passou a ter a R. como segunda titular, em 02/12/2009; .

Os valores existentes naquela conta pertenciam exclusivamente à falecida, sendo resultantes das suas poupanças e pensão de reforma, apresentando, à data do óbito, um saldo à ordem de € 1.278,66 e um saldo a prazo de € 186.554,12; .

Em 02/05/2012, no segundo dia após o óbito de GG, a R. transferiu para uma conta de que era titular o montante de € 185.696,58 e, em 11/05/2012, o remanescente do saldo no valor de € 4.512,29; .

Em 14/05/2012, após inúmeras insistências, a R. transferiu para a conta da ora A. o montante de € 92.544,43, correspondente sensivelmente a metade do valor transferido a seu favor em 02/05/2012; .

Assim, a R. deve à A. a quantia de € 95.891,24, da qual € 92.544,43, a título de capital, e € 3.346,81, a título de juros.

Concluiu pedindo que a condenação dos R.R. a restituir-lhe; a) - a quantia de € 92.544,43, a título de capital; b) – a quantia de € 3.397,52, a título de juros vencidos desde 14/05/ 2012 até à data da propositura da ação (19/04/2013), à taxa anual de 4%; c) – os juros que se vençam desde 19/04/2013 até efetivo reembolso.

2.

Os R.R. contestaram, sustentando, em resumo, que: .

Em vida, GG vinha tratando a R. como se sua filha fosse, tendo sido esta e a sua família quem cuidara daquela, acompanhando-a na doença que a vitimou; .

Em dezembro de 2009, GG pediu à R. para que a acompanhasse ao banco, porque pretendia incluí-la na titularidade da sua conta como co-proprietária dos valores ali depositados ou a depositar, querendo assim beneficiá-la, doando-lhe as suas poupanças presentes e futuras, o que a R. aceitou; .

Então alteraram em conjunto a ficha de assinaturas, atribuindo à referida conta a natureza solidária, podendo a R. movimentá-la tanto a crédito como a débito, sem a autorização de GG; .

Em 15/04/2010, constituíram uma conta-poupança no valor de € 38.085,00, procedendo a posteriores reforços e liquidações e, em 04/12/ 2012, constituíram, na mesma conta, um depósito a prazo no valor de € 147.000,00; .

A A. nunca teve qualquer relação com GG mesmo no fim da vida desta; .

Na véspera da sua morte, GG tentou, por duas vezes, fazer testamento a favor da R., mas tal não foi possível; .

Ao fazer as transferências das quantias depositadas na referida conta, em 2 e 11 de maio de 2012, a R. agiu como comproprietária do saldo ali existente e só transferiu para a A. o valor de € 92.544,43, em 14/05/2012, para evitar litígio com esta; Concluiu pela improcedência da ação.

3.

A A. deduziu réplica a sustentar, além do mais, a invalidade da pretensa doação verbal por não ter sido acompanhada de tradição da coisa, não relevando para tal a existência da referida conta solidária, ao que a R. respondeu mediante tréplica.

4.

Findos os articulados, foi proferido saneador tabelar com fixação do valor da ação, procedendo-se depois à identificação do objeto do litígio, bem como à fixação dos temas da prova (fls. 81-84).

5.

Realizada a audiência final, foi proferido sentença a fls. 158-164/ v.º, datada de 01/12/2014, na qual se incluiu a decisão de facto e respetiva motivação, julgando-se a ação totalmente improcedente com a absolvição dos R.R. do pedido.

6.

Inconformada, a parte autora recorreu dessa decisão para a Relação de Lisboa que, através do acórdão de fls. 254-289, 17/12/2015, julgou a apelação procedente, condenando os R.R. a restituir à parte A. a quantia de € 92.544,43, acrescida de juros de mora vencidos no montante de € 3.397,52 e vincendos, à taxa anual dos juros civis, até integral pagamento.

7.

Desta feita, vieram os R.R. recorrer de revista, formulando as seguintes conclusões: 1.ª Ambas as Instâncias julgaram, corretamente, que a factualidade provada preenche os requisitos do contrato de doação entre vivos, não existindo indícios de que as partes tenham condicionado a causa da entrega dos valores da conta bancária à pré-morte da doadora, nem estabeleceram a morte como termo incerto; 2.ª - A falecida GG quis beneficiar a 1.ª R., ora Recorrente EE, declarando verbalmente doar-lhe os valores existentes ou a existir na conta bancária, o que esta declarou aceitar, pelo que nesta decorrência, em 02-12-2009, a 1.ª R. passou a ser a segunda titular daquela conta bancária, à qual ambas atribuíram a natureza solidária, e onde, dois dias depois, foi constituído o depósito a prazo; 3.ª - A doação dos valores ocorreu, por conseguinte, em simultâneo com a constituição da conta bancária solidária em nome conjunto da falecida GG e da donatária EE, ora Recorrente, pelo que não se tratou de doar uma conta conjunta de que a donatária já fosse contitular, mas sim de alterar a titularidade da conta de que a doadora era titular única, para acomodar a doação dos valores; 4.ª - O “animus donandi” foi a única razão que justificou a iniciativa da falecida GG em incluir a EE na titularidade da conta, tanto mais que, como bem salienta a sentença de 1.ª Instância na sua fundamentação: “( ... ) a 1.ª Ré passou a ser co-titular da conta bancária (02.12.2009), numa altura em que - note-se - a falecida GG ainda não havia adoecido (e seguramente não previra a doença) e, por conseguinte, mantinha toda a autonomia, inclusivamente quanto à gestão do seu património. Dito de outra forma: nessa data (assim como em vários meses vindouros), o seu estado de saúde não carecia minimamente que a 1.ª Ré gerisse (ou passasse a gerir) a sua vida financeira ( ... )”; 5.ª - O conjunto dos atos da doadora, a falecida GG, na sequência da sua verbalização da doação do seu dinheiro a favor da Recorrente, que culminou com a alteração dos termos da movimentação da conta no banco, permitindo à Recorrente passar a poder dispor livremente o dinheiro que nela depositado, consubstancia uma autêntica forma de tradição da coisa doada para a Recorrente: o “animus donandi” é acompanhado duma entrega, aqui a titularidade do depósito, ou seja, um meio suscetível de tornar efetivo o apossamento; 6.ª - Constitui entendimento da doutrina e da jurisprudência que, no caso das contas solidárias, que podem ser livremente movimentadas por qualquer dos seus titulares, provado que foi intenção do titular que depositou o numerário, que este passasse a ser propriedade do outro titular, podendo dele dispor como entendesse, então, estamos face a uma doação acompanhada de “tradição” do bem doado, pois que a conta conjunta solidária funciona como meio idóneo para operar a tradição, para tornar efetivo o apossamento das quantias depositadas; 7.ª - Não obsta à conclusão anterior o facto de a conta bancária ter continuado a ser titulada pela falecida, que podia por isso também continuar a movimentá-la, porque para haver doação esta não tem que envolver sempre a transmissão de bens, como resulta do âmbito traçado pelo artigo 940.º do CC e já há muito havia sido referido por Galvão Telles, ob. cit., “pode-se doar por outras formas: pondo em comum um direito, constituindo sobre coisa própria um direito real menor, assumindo para com outrem uma obrigação. O que importa (a par do empobrecimento do doador) é a valorização do activo do donatário, a atribuição a este de um direito, e essa atribuição pode revestir qualquer das configurações indicadas.” 8.ª - O facto de a ora Recorrente não ter movimentado a conta a débito em seu favor em vida da doadora não implica a inexistência da tradição do bem doado, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, porque o n.º 1 do art.º 945.º do CC refere-se apenas à aceitação da doação e o n.º 2 da mesma disposição limita-se a considerar que esta existe se houve a tradição material da própria coisa móvel doada ou do seu título representativo para o donatário, mas não estabelece que só há tradição da coisa doada quando a própria coisa ou o seu título representativo mude de mão para o donatário; 9.ª - É que a tradição não tem necessariamente que ser material, com mudança de mão da própria coisa ou do título, pois que como dispõe a alínea b) do artigo 1263.º do CC, a posse pode adquirir-se pela tradição simbólica da coisa, como ensina Menezes Cordeiro, ob. cit., “a traditio ficta”, como o nome indica é aquela em que já não existe qualquer acto material sobre a coisa. Este tipo de tradição efectiva-se, simplesmente, pela entrega de documentos que ponham a posse da coisa à disposição do transmissário, falando-se por isso em “traditio per chartam”; 10.ª - Também, Antunes Varela, na RLJ cit., entende que “se para os contratos a titulo oneroso, se não dúvida da validade das declarações tácitas, nenhuma consideração procede no sentido de impedir que igual princípio se aplique às doações” (...) “A vingar, neste aspecto, qualquer tipo de distinção entre as duas categorias de contratos, ela seria certamente no sentido de facilitar ou simplificar mais as coisas quanto à aceitação das liberalidades do que quanto aos contratos onerosos.”; 11.ª - Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., refere: “O Supremo Tribunal de Justiça tem aceite a conta bancária como meio idóneo de tradição simbólica do dinheiro (cfr. artigo 945.º, n.º 2, que equipara à tradição da coisa a entrega de “título representativo”) e admitido que, nestas circunstâncias, se forme um contrato de doação, desde que o pretenso donatário prove o animus donandi”; 12.ª - Na verdade, o STJ adotou idêntica posição, nomeadamente, nos acórdãos de 27/05/2003, Proc. n.º 03B1251 (Conselheiro Abílio Vasconcelos), in www.dgsi.pt; de 03/06/2003, Proc. n.º 03A1615 (Conselheiro Silva Salazar), in www.dgsi.pt; de 03/...

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