Acórdão nº 588/13.6TVPRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Março de 2016

Magistrado ResponsávelANA PAULA BOULAROT
Data da Resolução17 de Março de 2016
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I P, LDA, presentemente com a denominação AA, SA, instaurou acção declarativa contra BB, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €7.318.759,30 (sete milhões trezentos e dezoito mil setecentos e cinquenta e nove euros e trinta cêntimos) a título de indemnização de clientela e indemnização por danos emergentes e lucros cessantes.

Para o efeito, alegou que celebrou com a Ré um contrato de concessão comercial para comercialização do software produzido pela mesma (K anti-vírus, anti-spam e internet security) em Portugal, em regime de exclusividade, o qual perdurou durante cerca de 10 anos, sendo que a Ré incumpriu de forma ilícita e culposa o referido contrato, gerando danos à Autora.

A Ré contestou, e em sede de defesa indirecta arguiu a excepção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses com fundamento no acordo das partes, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001, em atribuir aos Tribunais do Reino Unido a competência internacional exclusiva para resolver o litígio da presente lide, conforme cláusula 16.8 do contrato, segundo a qual “este Acordo reger-se-á e será interpretado de acordo com a Lei Inglesa e as Partes submeter-se-ão à exclusiva jurisdição dos Tribunais Ingleses”. Mais sustentou a ré que a referida cláusula é conforme ao direito comunitário e nacional e, por isso, válida e eficaz para as partes. Em sede de defesa directa, refutou os factos alegados pela Autora.

Na réplica, a Autora respondeu que a referida cláusula do contrato é nula por violação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais contido no Decreto-Lei nº 445/86, de 25 de Outubro, pois não foi objecto de qualquer negociação entre as partes, não lhe foi comunicada atempadamente de forma adequada e efectiva, foi elaborada previamente pela Ré que a impôs à Autora sem lhe dar a oportunidade ou a possibilidade de influenciar o seu conteúdo, e envolve graves inconvenientes para a Autora, sem que os interesses legítimos da Ré justifiquem a escolha feita. Em consequência da nulidade dessa cláusula os tribunais portugueses são os competentes nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 5º do Regulamento (CE) n.º 44/2001. Por outro lado, acrescentou, na 4ª Vara Cível deste Tribunal corre termos sob o nº 74910/12.6YIPRT, uma acção intentada pela aqui Ré contra a aqui Autora na qual aquela pede a condenação desta no pagamento de montantes que alegadamente seriam devidos em resultado da relação contratual celebrada entre as partes que constitui a causa de pedir da presente acção. Ao instaurar essa acção, a aqui Ré renunciou à aludida cláusula, tendo mesmo defendido a competência dos tribunais portugueses quando o tribunal suscitou a questão do relevo da referida cláusula do contrato. A autora, por seu lado, aceitou tal derrogação por parte da Ré ao previsto no contrato pois entendia que a cláusula é nula e que o foro português era o mais adequado para discutir quaisquer temas relacionados com o contrato. Esta posição de ambos os contraentes representa uma verdadeira revogação da cláusula e uma expressa substituição da mesma por novo acordo das partes quanto aos tribunais competentes. A não se entender assim então terá que se considerar que a posição da aqui Ré de numa acção defender um regime e na outra outro regime quanto à competência internacional constitui um abuso de direito sob a veste de venire contra factum proprium.

Foi produzido saneador sentença onde se conheceu da excepção, pela sua verificação, e decidiu-se pela incompetência relativa do tribunal por violação de pacto privativo de jurisdição, absolvendo-se a Ré da instância.

Do assim decidido, a Autora interpôs recurso de Apelação, o qual veio a ser julgado improcedente, embora com um voto de vencido, tendo sido confirmada a decisão recorrida.

Irresignada, recorre agora a Autora, de Revista, apresentando as seguintes conclusões: - Os presentes autos têm por objecto o incumprimento, imputado pela Autora, aqui Recorrente, à Ré, Recorrida, de um contrato de concessão comercial, nos termos do qual a Autora promoveu, durante uma década e em regime de exclusividade, a comercialização em Portugal de produtos de software produzidos pela Ré. Do contrato em causa nos autos consta uma cláusula (16.8), nos termos da qual o acordo reger-se-á e será interpretada de acordo com a Lei Inglesa e as Partes submeter-se-ão à exclusiva jurisdição dos Tribunais Ingleses.

- Sem discutir que a mencionada cláusula é parte integrante do contrato celebrado entre as partes, a Autora reputa a mesma inválida tendo invocado na sua Petição Inicial, por um lado, não ter sido a mesma objecto de qualquer negociação entre as partes, violando o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais e tendo ademais ressalvado que, mesmo que a cláusula em apreço não fosse nula, a sua aplicação sempre teria sido afastada pelas partes, ou, pelo menos, pela Ré, constituindo a sua invocação um manifesto abuso de direito.

- Não obstante o defendido pela Recorrente, o Tribunal a quo entendeu que a mesma configurava um pacto válido no sentido de atribuir competência exclusiva ao foro anglo-saxónico e retirar competência aos Tribunais Portugueses, sublinhando que a validade do pacto não pode ser questionada à luz de normas de direito interno; que não ocorreu qualquer derrogação da competência convencionada pelas Partes; e que, em qualquer caso, não existiria qualquer abuso de direito na invocação pela Ré da incompetência do Tribunal português.

- Para apreciação das questões suscitadas cumpre ter em atenção as circunstâncias em que foi firmado entre as partes o Contrato de 1 de Janeiro 2010, que substituiu o contrato que anteriormente vigorava, de 1 de Novembro de 2006: total ausência de negociação entre as partes e imposição em bloco de cláusulas, pela Ré à Autora, a quem foi vedada qualquer possibilidade de negociação. - A Autora foi obrigada a aceitar um novo e agravado contrato de distribuição sob a ameaça da imediata cessação da relação comercial que vigorava entre as partes, à qual a Autora tinha subordinado toda a sua estrutura operativa e os seus investimentos nos sete anos anteriores, com todos os prejuízos inerentes a esse abandono, e os necessários custos da súbita desafectação dos recursos da Autora desse negócio que havia criado de raiz para a Ré em Portugal.

- O Legal Representante da Autora não só não interveio na formação e elaboração do contrato, como não pôde discutir ou comentar qualquer das suas cláusulas, designadamente a Cláusula 16.8 em apreço, que prevê a aplicação ao litígio de lei inglesa e o pacto privativo de jurisdição a que vimos aludindo.

- O Pacto em causa servia unicamente os interesses da Ré, em prejuízo manifesto dos da Autora, afastando a competência dos Tribunais portugueses quando toda a relação de distribuição se processava em território nacional.

- Atenta a ausência de qualquer negociação, entendeu e entende a Autora que tal pacto de aforamento é nulo, em face do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, consagrado no Decreto-Lei nº 445/86, de 25 de Outubro (doravante, Regime das Cláusulas Contratuais Gerais), tendo intentado a presente acção nos Tribunais portugueses.

- Ao contrário do determinado pelo artigo 5º do mencionado diploma, a cláusula em apreço (bem como todo o teor do contrato de 1 de Janeiro de 2010) não foi comunicada atempada mente, de forma adequada e efectiva, o que, em face do disposto no nº 1 do artigo 8º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, determina a exclusão da cláusula em causa do contrato assinado entre as partes.

- Acresce que nos termos da alínea g) do artigo 19º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, serão relativamente proibidas as cláusulas que “estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem” o que é precisamente o caso já que além da distância a que a parte se encontra do foro elegido, o que gera inevitáveis dificuldades de litigância perante uma jurisdição estrangeira, também o sistema jurídico em causa é diametralmente oposto ao vigente no país de nacionalidade da parte que naquele vigora, sem que se veja, no caso concreto, interesse justificativo e prevalecente para tal opção.

- Também por esta razão, a cláusula em apreço era relativamente proibida e, consequentemente, nula - cfr. artigos 12º e 19º, alínea g), do Decreto-lei n.º 446/85.

- Cumpre notar que a questão suscitada pela Autora - a da inexistência de autonomia da vontade - é prévia e independente de qualquer análise do teor do pacto privativo de jurisdição em apreço, e da aferição da susceptibilidade de o direito interno impor requisitos diferentes ou mais gravosos do que os estatuídos pelo Regulamento (CE) nº 44/2001.

- Pressupondo o artigo 23º do Regulamento (CE) nº 44/2001 um acordo de vontades, é imperativo que o Tribunal chamado a apreciar a validade de um pacto privativo de jurisdição averigue, previamente, se causas existem que possam ter inquinado a vontade expressa pelas partes sendo que no caso concreto a questão foi expressamente submetida ao Tribunal a quo. Em todo o caso, que o Regulamento (CE) nº 44/2001 não trata tais questões, pelo que a sua solução há-de ser encontrada no direito interno que se tenha por aplicável.

- O Tribunal a quo (sem prejuízo do voto de vencido expresso) entendeu que o Regulamento (CE) nº 44/2001 define os pressupostos dos pactos de jurisdição como contendo um conceito autónomo relativamente aos direitos nacionais de cada Estado-Membro, cujos requisitos são unicamente os que constam daqueles instrumentos legais transnacionais, tendo considerado, pois, irrelevante saber se a capacidade de conformação do conteúdo contratual se encontrava no momento da celebração do pacto privativo de jurisdição por qualquer modo viciada ou coarctada, - Assim consentindo a decisão recorrida no reconhecimento como válida de uma cláusula que não resulta da vontade das partes.

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