Acórdão nº 7053/12.7TBVNG.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 22 de Março de 2018

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução22 de Março de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1.

AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra Hospital BB, S.A.

, e CC, peticionando a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de € 100.000,00, acrescida de juros de mora a contar da data da citação.

Para tanto, e em síntese, invocou que, em 17/03/2011, foi submetida a intervenção médica levada a cabo pelo 2º R., que exerce profissionalmente na 1ª R., que consistiu num exame de colonoscopia, intervenção da qual resultou perfuração do colon, o que a obrigou a submeter-se a sucessivas intervenções cirúrgicas. Fruto da actuação do 2º R. na execução do exame de colonoscopia, assim como da falta de acompanhamento por ambos os RR. na fase de recuperação do mesmo exame (tanto antes como após a alta clínica), a A. sofreu danos patrimoniais, descritos nos autos, no valor de € 11.258,42, e ainda danos não patrimoniais, que também descreve, e pelos quais peticiona uma compensação no montante de € 90.000,00.

Os RR. contestaram, negando a sua responsabilidade no evento; requerendo a R. Hospital BB, S.A.. a intervenção principal da seguradora Companhia de Seguros DD, S.A.

(actual Seguradoras EE, S.A.

) e requerendo o R. CC a intervenção principal da seguradora FF - Companhia de Seguros, S.A.

(actual GG, Companhia de Seguros, S.A.

).

Por despacho de fls. 197 ambos os requerimentos foram deferidos nos exactos termos.

As intervenientes contestaram, impugnando a factualidade alegada e concluindo, a final, pela improcedência da pretensão da A.

Realizado o julgamento foi proferida sentença de fls. 383, que julgou improcedente a causa, absolvendo os RR. do pedido.

Por decisão proferida a fls. 444 foram declarados habilitados como herdeiros da A., entretanto falecida, os seus filhos HH, II, JJ e KK.

Inconformados com a decisão da sentença, vieram os habilitados, na posição da originária autora, interpor recurso de apelação, pedindo a modificação da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

O R. CC juntou parecer, que consiste em texto doutrinal relativo à responsabilidade médica em geral, não se referindo especificamente ao caso dos autos.

Por acórdão de fls. 631 foi considerada prejudicada a questão da impugnação da matéria de facto, e, a final, proferida a seguinte decisão: “Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e condenando os RR. e as Intervenientes a pagarem, solidariamente, à Autora, ora representada pelos seus herdeiros legais, i). a título de danos patrimoniais, a quantia de € 8. 746, 98, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sucessivamente aplicável, desde 6.09.2012 e até efectivo e integral pagamento; ii). a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 28. 000, 00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, sucessivamente aplicável, desde a data deste acórdão e até efectivo e integral pagamento” 2.

Vêm os RR. e as intervenientes recorrer, autonomamente, para o Supremo Tribunal de Justiça.

O R. Hospital BB, S.A. formula as seguintes conclusões: 1. O douto Acórdão fez errada interpretação e aplicação do Direito no caso concreto, por manifesta desconsideração da factualidade assente, incorrendo em erro de julgamento.

  1. A par deste, a decisão é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam vários segmentos da sua argumentação e por contradição entre os seus fundamentos e a decisão (cfr. artigo 615º, nº 1 alíneas d) e c) do CPC).

  2. A asserção de que o ato médico de cariz diagnóstico em causa é, independentemente das circunstâncias concretas, uma obrigação de resultado e, como tal, a ocorrência de uma perfuração configura per si um ato ilícito (desconsiderando o consentimento informado prestado e o risco específico do mesmo), traduz uma perversão dos princípios básicos do direito tradicional da responsabilidade civil aquiliana e contratual, transformando-a em responsabilidade pelo risco ou por factos lícitos danosos.

  3. A configuração da concreta prestação em discussão como obrigação de resultado, porque fundada em ausência de fins curativos ou terapêuticos, é errada na medida em que desconsiderou o âmbito terapêutico em que o exame (colonoscopia) foi realizado e, bem assim, não levou em conta e aliás está em contradição com a matéria provada dos pontos 2, 4, 5, 6,7, 24, 25, 37 e 40 dos Factos Provados.

  4. Atendendo ao seu concreto contexto, o exame realizado à Autora não pode ser considerado um vulgar exame de rotina realizado em condições de normalidade (contrariamente à situação discutida no Acórdão do STJ de 01/10/2015 no qual o presente Acórdão se baseia).

  5. Pese embora se trate de um exame de diagnóstico, não resulta da factualidade provada que o Réu Médico tenha assegurado que seria possível a observação correta, integral e nítida do intestino da Autora e bem sucedida no diagnóstico de eventuais alterações, o que não é sequer compatível com qualquer procedimento diagnóstico invasivo, como é o caso da colonoscopia.

  6. Para configurar o ato médico como obrigação de resultado, não basta concluir pela ausência de "fins curativos ou terapêuticos" (como se bastou o Tribunal a quo a considerar), já que em contrapartida nem todas as obrigações de meios têm "fins curativos ou terapêuticos" e nem por isso deixam de o ser.

  7. Importa ter em conta que a atividade médica comporta quase sempre uma certa álea que resulta da existência de um conjunto de fatores externos imprevisíveis ou incontroláveis que impossibilita o médico de assegurar ao doente um resultado certo da intervenção proposta, a saber: circunstâncias inerentes ao doente que condicionam a maior ou menor dificuldade do procedimento, equipamento utilizado e os riscos próprios do procedimento [cfr. pontos 7., 25., 40., 53., 54. e 55. dos Factos Provados].

  8. Por isso é incontestável que a prestação em causa, nas concretas circunstâncias que resultaram provadas, não pode senão haver-se como uma mera obrigação de meios, no sentido da jurisprudência maioritária. Assim, o Réu Médico vinculou-se tão-somente a empregar o seu saber, experiência, perícia, cuidado e diligência no sentido de atingir o melhor "resultado" possível em termos de diagnóstico, com os meios técnicos que tinha ao seu dispor e o estado atual da ciência médica.

  9. Ainda que se assumisse a prestação realizada como obrigação de resultado, é essencial identificar o "resultado" visado pela concreta prestação para aferir o cumprimento ou incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação.

  10. Inexiste fundamento para responsabilizar os Réus com base em responsabilidade contratual quando resulta demonstrado ter sido cumprida a obrigação subjacente, já que a este respeito o douto Acórdão considerou que um exame se "esgota em si mesmo enquanto meio de diagnóstico" e tomou como certo que o mesmo foi realizado e o resultado entregue à Autora. Pelo que se impunha que tivesse concluído, por coerência, ter sido cumprida a prestação contratada.

  11. Ao concluir em sentido divergente, incorreu o douto Acórdão em manifesta contradição entre os fundamentos apresentados e a conclusão deles extraída que fere de nulidade a decisão neste segmento (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea c) do CPC).

  12. O douto Acórdão configurou a perfuração do cólon como "facto voluntário", porém nenhum dos factos em que o Tribunal a quo se baseou para tal, nem a restante matéria assente permitem extrair tal conclusão, já que ficou demonstrado que a perfuração é um risco do procedimento que pode ocorrer por causas involuntárias ou alheias à atuação concreta do médico e pode mesmo sobrevir ao procedimento, sem ser sequer percecionável no momento [cfr. pontos 53, 54 e 55 dos Factos Provados].

  13. Não é admissível a conclusão pela verificação do "facto voluntário", na medida em que a factualidade provada não evidencia que a perfuração do cólon tenha acontecido durante o exame, por causa da atuação do Réu Médico, já que a Autora não só não apresentava quaisquer indícios objetivos de perfuração do cólon durante e após o exame, como ainda revelava sinais objetivos de normalidade [cfr. pontos 10, 22, 23,42,45, 46,47,48, 49, 50 e 51 dos Factos Provados].

  14. Para poder concluir pela verificação do "facto voluntário" como pressuposto da responsabilidade civil, impunha-se que o douto Acórdão especificasse os fundamentos de facto que justificam a evidência de que a perfuração do cólon resultou de uma conduta comissiva ou omissiva do Réu Médico, dominável ou controlável pela sua vontade: não o fez, pelo que a decisão está ferida de nulidade nesta parte (cfr. artigo 615º, n,º 1 alínea b) do CPC).

  15. Quanto ao pressuposto do "facto ilícito", andou bem a Sentença revogada que concluiu pela improcedência da ação por não provada a ilicitude, na medida em que não resultou demonstrado que tivesse havido um ato médico errado ou que tivesse sido violado, por parte do Réu Médico ou da ora Recorrente, um dever jurídico ou qualquer dos deveres principais ou acessórios que se impunham, considerando, em contrapartida, que a perfuração do cólon se tratou de um risco próprio do exame.

  16. Já o douto Tribunal da Relação divergiu desta posição julgando verificado o pressuposto da ilicitude com fundamento na perceção de a perfuração ser em altíssimo grau estranha ao cumprimento do fim do contrato (probabilidade inferior a 1%) e a sua gravidade resultar desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela concreta intervenção ou ato médico.

  17. Ficou, porém, provado que não só a Autora consentiu expressa e formalmente na realização daquele exame invasivo, ciente da sua situação clínica e dos riscos associados àquele ato médico (especificamente sobre o risco de perfuração), como também que a colonoscopia, enquanto procedimento invasivo, comporta necessariamente riscos (vg. o risco de perfuração) que ocorre num 1 a 8 casos em cada 1.000 exames realizados [cfr. pontos 37, 38 e 53 dos Factos...

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