Acórdão nº 08P292 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 26 de Março de 2008
Magistrado Responsável | MAIA COSTA |
Data da Resolução | 26 de Março de 2008 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. RELATÓRIO AA foi condenado pelo tribunal colectivo do 1º Juízo de Ourém, como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 1 e 2, h) e i) do CP, na pena de 20 anos de prisão, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 3º, nº 2, l), 4º e 86º, c) da Lei nº 5/2006, de 23-2, na pena de 15 meses de prisão, e ainda de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, nº 2 do CP, na pena de 18 meses de prisão; em cúmulo, foi condenado na pena única de 21 anos e 10 meses de prisão.
Dessa decisão recorreu o arguido para este STJ, concluindo desta forma a sua motivação:
-
Na opinião do ora recorrente as qualificativas não se verificam no caso em análise.
-
O crime de ameaças é consumido pelo crime de homicídio.
-
O crime de ameaças é um crime continuado e devia ter o tratamento que tal situação implica.
-
O ora recorrente deveria ter sido punido estritamente no âmbito do art. 131º do CP, atento ao tempo, modo e lugar como se desenrolaram todos os acontecimentos, sendo certo que o ciúme é, no caso concreto, um elemento privilegiador atenta a formação da personalidade não culposa por parte do recorrente, sendo que, como aliás entendia Freud e seus seguidores e a idade do ID coincide com a idade que o recorrente tinha, quando se verificaram todas as incidências negativas na sua meninice.
-
A pena não deveria ter ultrapassado os 15 anos de prisão.
O MP respondeu, sustentando a confirmação na íntegra da decisão recorrida.
A mesma posição foi assumida pela assistente M....
Neste STJ, o sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se da seguinte forma: I - O arguido foi condenado nas penas de 18 meses de prisão pela prática de um crime de ameaças, de 15 meses de prisão pelo crime de detenção ilegal de arma e 20 anos de prisão pelo de homicídio qualificado. Em cúmulo destas, na pena unitária de 21 anos e 10 meses de prisão.
O arguido, no seu recurso, apresenta as seguintes conclusões: 1- Não se verificam as qualificativas do homicídio; 2- O crime de ameaças é consumido pelo de homicídio e é continuado; 3- A pena não deveria ter ultrapassado os 15 anos de prisão.
II - O Ministério Público junto do tribunal recorrido, em exaustiva resposta, defende a manutenção do julgado, em todas as vertentes em questão.
III - Idêntica posição assumiu a assistente.
IV - Sendo perceptíveis quais os pontos de divergência do recorrente relativamente ao decidido (bem delimitados nas "Conclusões" do seu recurso), verifica-se, no entanto, uma total ausência de fundamentação quanto ao n.º 2.
Na verdade, na motivação do seu recurso, limita-se a fazer uma afirmação e interrogação [o crime de ameaças é consumido pelo homicídio e se assim se não entender o crime de ameaças na forma como é descrito não cairá no âmbito do art.º 30 do C. P. na redacção actual?] sem que enuncie especificada e minimamente os fundamentos da sua divergência.
Anote-se, por outro lado, que se torna de todo impossível alcançar o que pretende com a conclusão constante da alínea c) [o crime de ameaças é um crime continuado e deverá ter o tratamento que tal situação implica].
Continuado porquê? Que tratamento? Esta ausência de fundamentação (e não deficiência das conclusões) conduzirá à rejeição do recurso neste particular.
Sem prejuízo, passa-se de seguida a uma breve apreciação das questões em causa.
Homicídio qualificado: Defende o arguido que não se verificam as circunstâncias das alíneas g), h) e i) pelo que deveria ser condenado pelo homicídio do art.º 131.º do Cód. Penal, atento ao tempo, modo e lugar como se desenrolaram todos os acontecimentos, sendo certo que o ciúme é, no caso concreto, um elemento privilegiador... Em primeiro lugar deve-se referir que o tribunal recorrido apenas considerou as circunstâncias das alíneas h) e i) [37, último parágrafo e 38, primeiro parágrafo, do acórdão], apesar de, certamente por mero lapso de escrita, no dispositivo, se referir tão só à da alínea i).
A padronização da especial censurabilidade e perversidade pelas referidas alíneas não merece, no caso concreto, qualquer censura, pelos fundamentos constantes do acórdão recorrido e pertinentemente desenvolvidos pelo Ministério Público na sua resposta à motivação.
Como salienta a doutrina e tem vindo a ser sustentado por este Supremo Tribunal, a qualificação do homicídio decorre de um tipo de culpa agravada, enunciada no seu formato nuclear pelos vários exemplos-padrão constantes das diferentes alíneas do seu n.º 2.
Só a verificação de um especial e relevante desvalor de atitude justifica a qualificação de especial censurabilidade ou perversidade, traduzida numa culpa superior.
Concordando-se com o afastamento da alínea g) [porque é essencialmente na natureza do meio utilizado que se tem de revelar a especial censurabilidade do agente], não se poderá deixar de referir que, em situação global muito idêntica à dos presentes autos, este Supremo Tribunal concluiu em sentido oposto. Assim, no acórdão de 10.01.2001, proc. 3221/00, 3ª, decidiu que O uso, pelo arguido, de uma arma caçadeira de dois canos sobrepostos, disparando dois tiros sobre a vítima, a qual se encontrava dentro da sua viatura automóvel, a uma distância não superior a um metro e meio, sendo apanhada de surpresa e provocando-lhe lesões tão profundas como as descritas na matéria de facto apurada, são factos que integram a qualificativa da alínea g), do n.º 2 do art.º 132.º, do CP.
Porém, dúvidas não poderão existir quanto à particular censurabilidade revelada pelas demais circunstâncias em que o homicídio foi praticado: - a reflexão premeditada sobre o propósito de matar a vítima (tomada várias semanas antes, com aquisição da arma). Como se disse no Ac. do STJ de 15.10.2003, proc. n.º 2024/03, 3ª, A reflexão sobre os meios empregados ou a persistência na intenção constituem refracções da insensibilidade que está presente na frieza de ânimo, manifestando-se numa acção do agente do facto que foi pensada, reflectida, ponderada, e em que se revela tenacidade de propósito: o agente, tendo tido no tempo precedente da acção ou na sequência plurifactual desta, oportunidade de representar o desvalor da conduta e de se deixar tocar pelos contra-estímulos das oportunidades de representação do desvalor da acção, manteve o propósito, manifestando na permanência do estado de espírito contra os valores uma personalidade que refracta uma indiferença altamente censurável em relação a valores comunitários fundamentais, a revelar, por isso, especial censurabilidade ou perversidade.
- a emboscada, à traição, com que surpreende a vítima e a deslealdade como efectuou o ataque, aprisionando-a no interior do automóvel e disparando a arma de fogo, pelo menos quatro vezes, a curtíssima distância, retirando-lhe qualquer hipótese de defesa, numa verdadeira execução.
Estas circunstâncias dão nota de uma culpa especial em relação à típica do homicida, demonstrando uma forte ausência de sentimento de inibição quanto à morte da sua ex-companheira e insensibilidade sobre o desvalor da acção.
Por outro lado, em lado algum da matéria de facto, resulta demonstrado ou até indiciado subliminarmente o ciúme, com relevo na diminuição acentuada da culpa. O que se mostra retratado é, tão só, a não aceitação por parte do arguido da separação, que ocorrera cerca de um ano antes.
E, até à separação, a relação do casal foi sempre marcada, ao longo dos anos, por conflitos, sucessivos afastamentos e reconciliações, com intervenção da Segurança Social (sem referências a ciúmes). Só após a separação é que começou a receber telefonemas ... dando notícia de que a ML mantinha um relacionamento amoroso com outro homem e de que tencionava emigrar com ele e com os filhos do casal para a Alemanha O que causava ao arguido grande sofrimento e ansiedade (sublinhado nosso) Ora, esta situação não é compreensível nem aceitável pelo homem normalmente sensível e fiel ao direito, não tendo relevo na diminuição da culpa para lhe retirar a carga de especial censurabilidade.
Medida das penas parcelares e unitária: Também no que respeita à medida das penas, o recurso apresentado é demasiadamente vago para se perceber onde reside concretamente a divergência do arguido.
Quando diz que A pena não deveria ter ultrapassado os 15 anos de prisão, torna-se imperceptível saber se pretende o reexame da pena do homicídio ou a do concurso (sendo certo que...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO-
Acórdão nº 185/13.6GCALQ.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Março de 2015
...este propósito não podemos deixar de citar, os seguintes arestos: - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Março de 2008, Procº nº 08P292, consultável in www.dgsi.pt, onde consta sob o documento nº SJ2008032602923, que consagra o seguinte: “I - Resultando, em síntese, da matéria......
-
Acórdão nº 459/05.0GAFLG de Tribunal da Relação de Guimarães, 30 de Novembro de 2009
...de Justiça em casos de contexto aproximado Destacam-se as seguintes decisões, ambas acessíveis em www.dgsi.pt: - Ac. do STJ de 11/02/2009, Pº 08P292, relator Conselheiro Maia Costa: Condenação em 20 anos de prisão por homicídio qualificado da esposa e mãe dos seus cinco filhos; arguido prim......
-
Acórdão nº 459/05.0GAFLG.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Maio de 2010
...Tomo 1, Ed. Civitas, 1997, pág. 91. (19) Destacam-se as seguintes decisões, ambas acessíveis em www.dgsi.pt: - Ac. do STJ de 11/02/2009, Pº 08P292, relator Conselheiro Maia Costa: Condenação em 20 anos de prisão por homicídio qualificado da esposa e mãe dos seus cinco filhos; arguido primár......
-
Acórdão nº 185/13.6GCALQ.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Março de 2015
...este propósito não podemos deixar de citar, os seguintes arestos: - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Março de 2008, Procº nº 08P292, consultável in www.dgsi.pt, onde consta sob o documento nº SJ2008032602923, que consagra o seguinte: “I - Resultando, em síntese, da matéria......
-
Acórdão nº 459/05.0GAFLG de Tribunal da Relação de Guimarães, 30 de Novembro de 2009
...de Justiça em casos de contexto aproximado Destacam-se as seguintes decisões, ambas acessíveis em www.dgsi.pt: - Ac. do STJ de 11/02/2009, Pº 08P292, relator Conselheiro Maia Costa: Condenação em 20 anos de prisão por homicídio qualificado da esposa e mãe dos seus cinco filhos; arguido prim......
-
Acórdão nº 459/05.0GAFLG.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Maio de 2010
...Tomo 1, Ed. Civitas, 1997, pág. 91. (19) Destacam-se as seguintes decisões, ambas acessíveis em www.dgsi.pt: - Ac. do STJ de 11/02/2009, Pº 08P292, relator Conselheiro Maia Costa: Condenação em 20 anos de prisão por homicídio qualificado da esposa e mãe dos seus cinco filhos; arguido primár......