Acórdão nº 09P0579 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 07 de Maio de 2009

Magistrado ResponsávelSOUTO DE MOURA
Data da Resolução07 de Maio de 2009
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Na Vara de Competência Mista do Tribunal da Comarca de Braga, em processo comum com o nº 282/07.7 JABRG, e em tribunal colectivo, AA, viúva, nascida a 09/07/1963, natural e residente em Braga, foi condenada a 13/6/2008, entre o mais, pela prática do crime de homicídio do artº 131º do C.P., na pena de nove anos de prisão. Interpôs recurso da decisão, para o Tribunal da Relação de Guimarães, a assistente e sogra da arguida, de seu nome BB, recurso esse restrito a matéria de facto. Em decisão de 24/11/2008, o Tribunal da Relação de Guimarães considerou improcedente o recurso interposto pela assistente. É desta decisão que agora recorre para este S.T.J..

A - DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA A matéria de facto dada por provada foi: "A arguida casou com CC no dia 17 de Agosto de 1986.

Cerca de um ano e meio após o casamento, CC manteve relações sexuais de coito anal com a arguida contra a vontade dela, causando-lhe humilhação e repulsa.

Desde então, a arguida passou a manifestar obsessão com a sua higiene pessoal, mormente com a higiene íntima, lavando-se constantemente.

O comportamento da arguida, de se lavar repetidamente, desagradava a CC o e era para ele incompreensível, por isso, passou a vigiá-la sempre que ela se deslocava à casa de banho, condicionando-lhe o acesso a tal compartimento da casa, cuja porta fechava com chave, e, quando a arguida fazia uso da casa de banho, ele vigiava-a nesse uso ou então encarregava a filha mais velha de o fazer. Chegou a partir o bidé e a inutilizar as respectivas torneiras, para a impedir de se lavar.

A arguida sentia-se humilhada, oprimida e invadida na sua privacidade, em consequência da descrita actuação de CC.

A partir de Fevereiro de 1989, passou a ser seguida em consulta externa de psiquiatria, sendo-lhe diagnosticada neurose obsessivo-compulsiva.

Entretanto, as desavenças entre o casal eram frequentes e, em várias ocasiões, no decurso de discussões ocorridas no interior da habitação, CC atingiu a arguida em várias partes do corpo, causando-lhe diversas lesões físicas. Por várias vezes, a arguida recorreu ao hospital para receber tratamento médico às lesões por ele causadas, como sucedeu em Março de 1995 por ter sido atingida no olho direito e em Março de 2000 no punho direito e cotovelo esquerdo, bem como em Fevereiro de 2006 por virtude de lesões na perna esquerda e em Dezembro de 2006 na mama direita (cf. fls. 368, 374, 387 e 388).

Pretendendo atenuar o sofrimento que lhe causava o comportamento de CC, a arguida passou a ingerir bebidas alcoólicas de modo descontrolado e compulsivo, sendo-lhe diagnosticado alcoolismo secundário.

A partir de então, CC passou a acompanhá-la sempre que ela saía de casa, levando-a ao local de trabalho e indo buscá-la de regresso a casa.

Após a arguida ter rescindido o seu contrato de trabalho, em finais de 2006, CC passou a exigir que aquela o acompanhasse para os locais onde ele se deslocava em trabalho, para evitar que ficasse sozinha, ou então deixava-a em casa dos pais, incumbindo a filha mais velha do casal de vigiar a mãe e de não a deixar sair de casa.

Quando necessitava de se deslocar ao cabeleireiro ou a alguma loja comercial, a arguida era sempre acompanhada de CC ou da filha mais velha.

Ao agir do modo descrito, CC pretendia controlar todos os movimentos da arguida, bem como os contactos dela com colegas de trabalho e com outras pessoas que conhecesse.

Para a vexar e humilhar, por causa do alcoolismo, CC chamava à arguida "bêbada", sempre que discutiam dentro de casa, inclusivamente, na presença das filhas.

A arguida sentia-se constrangida e coarctada na sua liberdade de movimentos, além de humilhada, em consequência da conduta de CC.

Recorreu a tratamento médico hospitalar por virtude da ansiedade e depressão motivadas pela deterioração do relacionamento conjugal e, por vezes, associadas a abusos alcoólicos, nomeadamente em Dezembro de 2001, Maio de 2003, Junho de 2003 e Abril de 2004 (cf. fls. 375, 379, 380, 382). Chegou a manifestar ameaças de suicídio, nomeadamente em Junho de 2003, tendências que já não revelava em Fevereiro de 2007 (cf. fls. 380 e 390).

Sofreu dois internamentos na Casa de Saúde do Bom Jesus, em Fevereiro de 2003 e em Fevereiro de 2007, com o diagnóstico de neurose obsessivo-compulsiva e alcoolismo secundário (cf. fls. 378, 390 e 396).

Por várias vezes, confidenciou a familiares e amigos, a degradação do relacionamento conjugal, sem pormenorizar todas as situações supra descritas, obtendo daqueles disponibilidade para a aconselharem e apoiarem na decisão que entendesse tomar.

A arguida manifestou, por mais de uma vez, vontade de se divorciar e chegou a consultar um advogado para esse efeito, mas acabou por desistir, em virtude de ser pressionada pelo marido para não concretizar aquele propósito.

Todo o descrito comportamento de CC dirigido à arguida repetiu-se e prolongou-se até 3 de Agosto de 2007.

No dia 3 de Agosto de 2007, cerca das 21.30h, no interior da residência do casal, sita na Rua .........., n.º ..., Montélios, Braga, no momento em que ambos se encontravam na cozinha, ocorreu uma discussão entre a arguida e o seu marido, motivada pelo facto de CC ter encontrado no saco do lixo uma garrafa de vinho que estava vazia, atribuindo à arguida o consumo desse vinho, o que ela não admitiu.

No decurso da discussão, CC agarrou a garrafa vazia e levantou-a, dizendo à arguida que a espetava na cabeça dela.

Além disso, chamou-lhe "bêbada" e dirigiu-lhe as expressões: "puta" e "vaca", repetidamente, causando à arguida vexame e humilhação.

De seguida, CC deslocou-se ao hall situado ao lado da cozinha, onde tinha o seu telemóvel, contactando, de imediato, a filha mais velha do casal, a qual se tinha ausentado após o jantar juntamente com a irmã. E, de forma a ser ouvido pela arguida, disse à filha para regressar a casa porque a mãe estava outra vez "bêbada".

Perante essa atitude de CC, a arguida ficou revoltada em virtude de não se sentir embriagada, considerando injusta a imputação de embriaguez, e sentiu-se, mais uma vez, humilhada por ser reputada alcoólica pelo marido diante da filha.

Neste contexto, a arguida decidiu tirar a vida a CC e, com tal propósito, dirigiu-se à sala, para se munir do revólver, que sabia ali encontrar, pronto a disparar, no interior de uma carteira a tiracolo pertencente ao marido.

Retirou da carteira e empunhou o revólver de calibre 32 mm, carregado com seis munições, dirigindo-se de imediato a CC que, entretanto, se deslocara à despensa anexa à cozinha.

Aproximou-se do local onde se encontrava CC sem que o mesmo se apercebesse da sua presença e, no momento em que ele estava na despensa, junto da entrada e voltado para o seu interior, com a parte lateral esquerda do corpo virado para a arguida, esta, sem lhe dirigir a palavra, visando atingi-lo mortalmente, disparou, a uma distância de cerca de um metro, seis tiros na direcção dele, atingindo-o na zona do tórax e provocando-lhe de imediato hemorragia.

Aquando do primeiro disparo, CC apercebeu-se da intenção da arguida e da proximidade da morte, tendo-lhe ainda dirigido a expressão: "Oh Nela!".

A despensa supra referida tem 90 cm de profundidade e 230 cm de largura, está dotada de prateleiras, não dispondo de porta mas apenas de uma abertura com cerca de 80 cm de largura.

Em consequência directa e necessária dos disparos, CC sofreu as lesões a seguir descritas, localizadas na zona do tórax: - na região escapular esquerda, a dezasseis centímetros do ráquis (medidos na horizontal), a oito centímetros do bordo superior do músculo trapézio (medidos na vertical), com os diâmetros máximos de sete por oito milímetros, com orla de contusão associada, disposta de modo ligeiramente excêntrico (maior para baixo), com a maior largura de um milímetro, seguido de trajecto penetrante (definindo um trajecto de trás para a frente, da esquerda para a direita e de baixo para cima) originada por orifício, de forma arredondada, de entrada de projéctil de arma de fogo; - na parte anterior da raiz do membro superior esquerdo, a oito centímetros da articulação acrómio-clavicular (medidos na vertical), com os diâmetros máximos de cinco por quinze milímetros, com orla de contusão associada, disposta de modo ligeiramente excêntrico (maior para baixo), com a maior largura de um milímetro, seguido de trajecto penetrante (definindo um trajecto da esquerda para a direita, ligeiramente da frente para trás e de cima para baixo) originada por orifício, de forma ovóide, de entrada de projéctil de arma de fogo; - na parte lateral do hemitórax esquerdo, ao nível da linha axilar anterior, a sete centímetros do rebordo costal inferior (medidos na vertical), com as máximas dimensões de doze por catorze milímetros, com orla de contusão associada, disposta de modo ligeiramente excêntrico (maior para baixo), com a maior largura de três milímetros, seguido de trajecto penetrante (definindo um trajecto da esquerda para a direita, ligeiramente da frente para trás e de cima para baixo) originada por orifício, de forma irregular, de entrada de projéctil de arma de fogo; - na parte lateral do hemitórax esquerdo (para trás e ligeiramente para baixo do anterior), ao nível da linha axilar média, a quatro centímetros do orifício anterior (medidos a cerca de quarenta e cinco graus), com os diâmetros máximos de oito por dez milímetros, com orla de contusão associada, disposta de modo aproximadamente concêntrico, com a largura de um milímetro, seguido de trajecto penetrante (definindo um trajecto de esquerda para a direita, ligeiramente da frente para trás e de cima para baixo) originada por orifício, de forma ovóide, de entrada de projéctil de arma de fogo.

Tais lesões foram causa directa e necessária da sua morte, através de um choque hemorrágico provocado pela laceração da aorta, verificada pelas 22horas e 05minutos do mesmo dia 3 de Agosto de 2007.

Em consequência directa e necessária dos disparos sofreu ainda CC, na zona dos membros superiores, as lesões que a...

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