Acórdão nº 08B1480 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Julho de 2008
Magistrado Responsável | SANTOS BERNARDINO |
Data da Resolução | 10 de Julho de 2008 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:1.
AA - IFC SA intentou, em 01.09.2004, na 13ª Vara Cível da comarca de Lisboa, contra BB e mulher CC, acção com processo ordinário, pedindo que, por incumprimento definitivo dos réus, fosse declarada a resolução do contrato de crédito, que com estes celebrou em 12.05.2003, por via do qual os financiou com o montante de € 34.666,46, para lhes possibilitar a aquisição do veículo automóvel, de marca BMW e matrícula ..-..-.., com a constituição de reserva de propriedade a favor dela, autora, e fossem os réus condenados a restituir-lhe o dito veículo automóvel, com o cancelamento do registo de propriedade averbado em nome do réu.
Só a ré contestou, alegando, essencialmente, que o veículo foi já entregue à autora, no âmbito do procedimento cautelar de apreensão por ela requerido, devendo, assim, improceder a acção. Em nome do réu, citado editalmente (1).
- e, depois, representado pelo MºPº, nos termos do art. 15º do CPC - não foi apresentada contestação.
No prosseguimento da lide veio a efectuar-se a audiência de discussão e julgamento, e a ser proferida sentença, que declarou nula a reserva de propriedade e absolveu os réus do pedido.
A autora recorreu, de apelação.
E a Relação de Lisboa, pronunciando-se pela admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade no contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, nomeadamente quando este está intensamente conexionado com o contrato de compra e venda, e "reconhecendo a validade declarativa da resolução do contrato de mútuo, por incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade", concluiu "que a propriedade sobre o referido veículo automóvel não chegou a transmitir-se para o apelado, justificando-se, por isso, a sua entrega à apelante, bem como o cancelamento do respectivo registo a favor do apelado." E, assim, concedeu provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida, e condenou os réus a entregar o veículo à autora, determinando ainda o cancelamento do aludido registo.
É do respectivo acórdão que vem agora interposto, pela apelada CC, o presente recurso de revista, que, devidamente minutado, encerra com as seguintes conclusões: 1ª - A transferência de direitos reais sobre coisas determinadas dá-se por mero efeito do contrato (art. 408º do CC), sendo que, como dispõe o art. 409º, nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer evento; 2ª - No caso presente, a reserva de propriedade permite ao vendedor precaver-se de uma eventual inexecução do contrato de compra e venda celebrado com a ré - não é meio para permitir ao mutuário precaver-se de uma eventual inexecução do contrato de mútuo; 3ª - Estão em causa dois contratos diversos, um de compra e venda e outro de mútuo, ainda que económica e funcionalmente interligados, cujo denominador comum é terem ambos, como uma das partes, os réus; 4ª - A cláusula de reserva de propriedade tem de ser estipulada nos termos de um contrato de compra e venda, que as partes neste processo não celebraram; 5ª - Se a venda já foi celebrada, como no caso em análise, não pode, posteriormente, ser nela inserida uma cláusula de reserva de propriedade, dado que a propriedade, nesse caso, já foi transferida para o comprador; 6ª - A recorrida é mutuante num contrato de financiamento que permitiu aos réus obter a quantia pecuniária para celebrar um contrato de compra e venda com outrem, DD de DD; 7ª - A recorrida não vendeu o veículo automóvel aos réus, apenas concedeu o crédito necessário para o pagamento do preço ao vendedor, o que não configura a previsão do art. 409º, citado; 8ª - A lei não admite a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante - que é terceiro, para efeitos do contrato de alienação - mas somente a favor do alienante vendedor; 9ª - Não se justifica qualquer interpretação actualista, que, ademais, nunca poderia implicar a total descaracterização de uma figura jurídica que só tem sentido em determinados contratos - os de alienação; 10ª - Não pode entender-se verificada a sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, designadamente nas garantias de que este poderia dispor, não podendo ela fundar-se nem no art. 591º nem no art. 405º, ambos do CC; 11ª - A liberdade contratual, a que alude o art. 405º, não é absoluta, tem de conter-se dentro dos limites da lei; e tal não acontece quando é estipulada uma cláusula que, nos termos da lei, apenas está prevista para determinados contratos; 12ª - A sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor, a que se refere o art. 591º, não resulta do clausulado do contrato de mútuo junto aos autos, nem foi alegada na p.i.; no documento respectivo não há qualquer declaração expressa de sub-rogação feita pelo devedor ao mutuante, não podendo falar-se de transmissão da garantia do direito transmitido (da reserva de propriedade); 13ª - O art. 6º/3.f) do Dec-lei 359/91, de 21 de Setembro - que prevê que fique a constar do contrato de financiamento o acordo sobre a reserva de propriedade - reporta-se a situações em que o vendedor era e continua a ser o proprietário, sob reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no art. 2º; 14ª - E, como flui do disposto no art. 12º do mesmo diploma, às situações aí descriminadas não tem aplicação o art. 6º, já que naquele preceito estão em causa situações em que o crédito é concedido por terceiros para financiar o pagamento do bem adquirido ao vendedor, tal como no caso em apreço; 15ª - Não se encontra demonstrado pela recorrida que se tenha verificado sub-rogação do vendedor ao financiador: o que existe é a tentativa de constituição da reserva de propriedade a favor do mutuante, sem qualquer acordo negocial prévio com a mutuária, ora recorrente; 16ª - E, ainda que se admitisse que, para efeitos do art. 15º do Dec-lei 54/75, de 12 de Fevereiro, as obrigações decorrentes do contrato de mútuo acordado com terceiro podem ser incluídas entre aquelas que originaram a reserva de propriedade, e cujo incumprimento concede ao titular do respectivo registo a faculdade de requerer em juízo a apreensão do veículo, o certo é que sempre se manteria o entrave formal do art...
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