Acórdão nº 06P3131 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Outubro de 2006

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução19 de Outubro de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Arguido/recorrente: AA 1. OS FACTOS O arguido e BB são pais da menor CC (-21Mar89). Aqueles, que são casados, estão separados de facto há mais de dez anos.

O poder paternal relativo à menor foi regulado, por sentença datada de 20 de Dezembro de 1993, que a confiou ao cuidado e à guarda da mãe, com direito a visitas ao pai de 15 em 15 dias. Assim, a menor passava alguns fins-de-semana na casa do pai e da avó, situada na Rua de..., nº ..., em Ermesinde. No dia 21 de Março de 2004, quando fez 15 anos de idade, a CC foi passar o seu dia de aniversário à casa do pai e da avó. Nessa casa viviam também as primas da CC, de nome DD, EE e FF, que tinham, respectivamente, 13, 10 e 8 anos de idade. Pelas 19,30 horas desse dia, a CC pediu ao pai para a levar à casa da amiga GG, que vivia ali perto, a fim de lhe levar um pedaço de bolo. O arguido pegou na sua motorizada e levou a filha à casa dessa amiga, onde estiveram ambos cerca de meia hora. Regressaram depois em direcção à casa da avó da menor, já de noite, onde a CC ia buscar as prendas que lhe tinham dado, para depois apanhar o comboio para o Porto. Todavia, o arguido decidiu manter relações sexuais com a menor sua filha. Na execução desse propósito, o arguido não efectuou o trajecto habitual de regresso a casa e procurou um local ermo para as consumar. Assim, seguiu por uma rua que não tinha qualquer iluminação e, a certa altura, fez um desvio e entrou numa zona de terra e relva, com bastantes árvores, que se situava nas traseiras da empresa "Empresa-A", em S. Pedro de Fins, na Maia. Aí, imobilizou a motorizada e mandou a CC descer da mesma. Esta imaginou logo que o arguido, seu pai, queria ter relações sexuais consigo, pelo que tentou fugir e só o não conseguiu por ele a ter agarrado por um braço. O arguido deitou a filha ao chão e aí a manteve, pressionando-a designadamente com um dos braços. Com a outra mão, o arguido correu o fecho das calças da menor e conseguiu desnudá-la da cintura para baixo. O arguido deitou-se em cima dela, puxou a sua camisola para cima, correu o fecho das calças e retirou o pénis para fora. A CC chorava, tentava manter as pernas fechadas e convenceu-se que qualquer resistência seria inútil naquelas circunstâncias. O arguido afastou com um esticão a perna direita dela e tentou penetrá-la, inicialmente sem sucesso. Pouco depois, socorrendo-se do seu ascendente e da sua maior força muscular, introduziu o seu pénis erecto dentro da vagina da menor e ejaculou na vagina e coxas. Na tentativa de não deixar vestígios, o arguido foi à sua motorizada e dali trouxe um pano, com o qual limpou a zona genital da menor. Regressaram depois à casa da avó da menor e, pouco depois, na companhia das primas e do pai, foram a pé até à estação de comboios de Ermesinde, onde a menor apanhou o comboio para o Porto. Não foi aquela a primeira vez que o arguido abusou sexualmente da filha. Na verdade, na noite do dia 27 de Fevereiro de 2001, quando a CC, então com 11 anos de idade, estava na casa da avó, o arguido entrou no seu quarto e fechou a porta. CC estava sentada na cama, em camisa de noite, e o arguido obrigou-a a deitar-se na cama. O arguido exibiu o seu pénis erecto e começou a masturbar-se. Tocou, depois, com o seu pénis na vagina [vulva] da menor, mas não a penetrou. Pouco tempo depois, o arguido ejaculou em cima dela. No dia seguinte, de regresso à sua casa, a menor contou o sucedido à sua mãe. Foi ela depois observada e examinada no Hospital de Santo António e no Instituto de Medicina Legal do Porto e acompanhada pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo de Vila Nova de Gaia.

CC foi ainda acompanhada por psicólogo que, em determinada altura, entendeu que ela não devia continuar a ter suspensas as visitas ao pai. Assim, cerca de dois anos depois, a CC passou a visitar o pai sempre que o desejava. Os abusos sexuais de que foi vítima provocaram na menor um período de forte instabilidade emocional e afectiva, sob a forma de sinais de angústia e ansiedade associados à situação, com graves distúrbios comportamentais, designadamente perturbação do sono, comportamentos fóbicos associados à figura do pai e tristeza espontânea. O impacto das situações abusivas foi reforçado e potenciado pelo facto do abusador ser o seu pai, que passou de uma figura protectora e securizante para alguém ameaçador da sua integridade física e psicológica. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, no intuito de satisfazer a sua lascívia e de manter relações sexuais com a sua filha, contra a sua vontade e mediante o uso da força. Agiu sempre no intuito de satisfazer os seus apetites sexuais e de despertar a excitação sexual da menor, violando em grau elevado os sentimentos gerais da moralidade sexual e a livre determinação sexual da menor e, dessa forma, prejudicou o livre desenvolvimento da personalidade desta. O arguido sabia que as suas condutas não eram permitidas e que eram punidas pela lei. O percurso de desenvolvimento do arguido decorreu no seio do seu agregado familiar de origem, do qual faziam parte os pais e cinco irmãos. A família vivia numa zona rural limítrofe da cidade do Porto, em condições de habitabilidade bastante precárias e com dificuldades económicas.

Ao nível escolar, o arguido efectuou um percurso sem registo significativo de dificuldades, apesar de ter abandonado os estudos após terminar o 5º ano de escolaridade, por opção. A sua primeira actividade profissional, exercida aos 12 anos de idade, foi como ajudante de pedreiro, na qual se manteve até aos 14 anos de idade. Entretanto, experienciou outras realidades, desde aprendiz de torneiro mecânico, passando por servente de trolha a funcionário fabril.

Desde os 22 anos de idade, tem vindo a trabalhar na construção civil, sem qualquer forma de estabilidade ou vínculo legal e registando longos períodos de inactividade.

Aos 19 anos contraiu matrimónio com BB, tendo vivido juntos cerca de 4 anos. O casal manteve residência em casa dos pais do arguido, num quarto independente, anexo à habitação que se encontra inserida num espaço designado comummente de "ilha". Da relação matrimonial nasceu uma filha, a aqui ofendida. Após a separação, a ofendida menor foi residir com a mãe e a avó materna, em Vila Nova de Gaia.

A partir de 1996, o arguido deixou de contribuir com os alimentos para a sua filha fixados pelo Tribunal de Família e Menores.

Até à reclusão, o arguido manteve sempre integração no agregado de origem, ocupando o mesmo espaço que outrora tinha partilhado com a mulher. Ao nível afectivo, veio a estabelecer, há cerca de 2 anos, uma união de facto com a actual companheira, HH, de 23 anos de idade, da qual tem um filho de 10 meses, entregue a uma ama.

A sua companheira encontra-se desempregada. À data da prática dos últimos factos destes autos, o arguido não desenvolvia qualquer actividade laboral. Face às disfuncionalidades existentes no agregado, agravadas pela inactividade de todos os elementos adultos e hábitos etílicos da mãe e irmão, esta família foi alvo de intervenção pelo I.S.S.S. - Departamento da Acção Social da Maia e beneficiou da atribuição de uma casa camarária. O arguido tem um comportamento adequado às normas do Estabelecimento Prisional, não registando qualquer sanção disciplinar.

Tem o apoio da família, que o ajuda e o ama, visitando-o regularmente no EP e prestando-lhe apoio incondicional, apoio que se mostram dispostos a manter após a sua libertação. O arguido projecta, quando restituído à liberdade, recomeçar a trabalhar. Apesar de dispor de uma organização cognitiva enquadrada em padrões médios, a existência do arguido tem sido vivenciada de forma marcadamente simplista, emotiva e superficial no contacto com a matriz social envolvente, quer seja na esfera familiar, interpessoal e profissional, o que, de certo modo, tem vindo a comprometer o seu processo de autonomia.

Embora o arguido apresente uma auto-percepção negativa e tenda a um certo isolamento sócio-afectivo, apresenta uma vida social aparentemente integrada, apesar da manifestação de condutas percepcionadas pela comunidade mais próxima como menos maduras e consistentes, particularmente em aspectos do foro afectivo.

O arguido não tem antecedentes criminais.

  1. A condenação Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 2.º Juízo da Maia, em 14Mar06, condenou AA (-25Out68), como autor material de um crime de abuso sexual de criança agravado, na pena de 4 anos de prisão; como autor material de um crime de violação agravado, na pena de 8 anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 10 anos de prisão: O arguido encontra-se acusado pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de violação e outro de abuso sexual agravados, p. e p. pelos artigos 164º, nº 1, e 172º, nº 1, com referência ao art. 177º, nº1, alínea a), todos do C. Penal. É do seguinte teor a disposição legal do art. 172º do C. Penal: "1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos." O bem jurídico aqui protegido é pois a liberdade e autodeterminação sexual. E protegem-se pessoas que - presumivelmente - ainda não têm o discernimento necessário para, no que concerne ao sexo, se exprimirem com liberdade. Como observou o Prof. Figueiredo Dias na discussão do crime em causa, a especificidade deste tipo legal reside como que numa obrigação de castidade e virgindade, por estarem em causa menores. Trata-se assim de um crime de perigo abstracto, na medida em que a sua verificação se basta com a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, de um menor. Tal como se lê em " Comentário Conimbricense do Código Penal", Parte Especial, Tomo I: "É tipicamente indiferente que a vítima seja já ou não sexualmente iniciada, que possua ou não capacidade para entender o acto sexual que nela, com ela ou perante ela se pratica ou...

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