Acórdão nº 06P2679 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Outubro de 2006

Magistrado ResponsávelOLIVEIRA MENDES
Data da Resolução18 de Outubro de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 338/04, do 3º Juízo da comarca de Ovar, após contraditório foi proferido acórdão que condenou o arguido AA, com os sinais dos autos, como autor material, em concurso real, de um crime de homicídio qualificado, um crime de maus-tratos, um crime de detenção ilegal de arma e um crime de injúria, nas penas de 15 anos de prisão, 2 anos de prisão, 3 meses de prisão e 1 mês de prisão, respectivamente, sendo em cúmulo jurídico condenado na pena conjunta de 16 anos de prisão (1).

O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que o absolveu do crime de injúria, por ocorrência de consunção, reduziu-lhe a pena relativamente ao crime de homicídio para 12 anos de prisão, tendo-o condenado na pena conjunta de 13 anos e 6 meses de prisão.

Recorre agora para este Supremo Tribunal de Justiça.

São do seguinte teor as conclusões extraídas da motivação apresentada:

  1. A douta decisão de que se recorre, ainda que representando um notável avanço relativamente à proferida em primeira instância, entende-se modestamente que ainda assim é passível de censura no que tange à qualificação jurídica do crime e à determinação concreta da medida da pena aplicada ao arguido.

  2. Quanto àquele primeiro aspecto crê-se que a factualidade dada como provada nos itens 55 a 65 da fundamentação fáctica reproduzida em primeira instância e a que aderiu o Tribunal recorrido ainda que tendo de sopesar-se com a demais factualidade que (bem ou mal) se deu por assente, deve (ria) implicar a directa e inelutável desqualificação do homicídio, dado que a verificação daqueles facto arreda de todo a possibilidade de descortinar especial perversidade e censurabilidade na conduta do arguido.

    E não tendo tido essa lugar, como se crê convictamente que não teve, conquanto critério decisivo e definidor do tipo legal, nem sequer se tornaria mister decantar por entre as diversas alíneas e exemplos do artigo 132º, n.º 2, o enquadramento respectivo dado que nessas diversas alíneas unicamente se afere a medida da culpa admitindo a pré-existente ilicitude do facto.

  3. A frieza de ânimo e a reflexão sobre os meios empregados descortinada de modo isolado, independente (como assim se expressa mesmo a fls.65 o douto acórdão da Relação) aferida pelo tribunal, representa um salto lógico na fundamentação de direito ou jurídica dos factos, dado que uma tal conclusão não pode prescindir do "apport" ou participação que a favoreça ou a prejudique resultante da imputabilidade diminuída ou atenuada que brotou da perícia realizada, nem muito menos da avaliação dos demais factos plasmados de 55 a 65, como sejam a doentia relação de "amor ódio" entre o casal, as dezenas de queixas-crime de sentido recíproco, a estratégia urdida pelo menos três vezes pela decessa para tirar a vida ao arguido (uma delas poucos meses antes do lamentável desenlace), o teor e agressividade do requerimento de divórcio e de arresto, o problema alcoólico do arguido e a permanência reconhecida no aresto, o medo de perder a vida que manifestava e se deu por assente, a procura de ajuda que encetou junto de várias instituições (internamentos hospitalares, junto da segurança social e comissão de menores, a fim de defender o contacto que achava prejudicado com a sua filha), etc.

  4. Num contexto de perigo real que acresce àquele que pode ser confabulado como manifestação de doença (distúrbio paranóide) - que se caracteriza por rancores persistentes, relutância em perdoar os insultos, ofensas ou deslizes dos quais se pensa ter sido vítima, hostilidade que se mantém por muito tempo e convicção permanente de estar a ser enganado - crê-se convictamente que não é possível descortinar a perversidade e censurabilidade indispensável à qualificação do crime de homicídio.

  5. Fazendo um juízo independente sobre esse quid indispensável à qualificação do crime ignorando os factos que se antecipam e concorrem ou impendem para o mesmo, as debilidades psíquicas do agente aquando da sua prática, parece-nos francamente redundar num manifesto vício ou erro na apreciação da prova - artigo 410º, n.º 2, do CPP.

  6. Uma tal análise selectiva que exclui da aferição do grau de censurabilidade e perversidade especial um conjunto alargado de factos que claramente postergam a verificação desse critério definidor da qualificativa do crime de homicídio é inaceitável e lesiva da lei.

  7. Tanto mais que, frieza de ânimo tem de elevar-se de uma vontade formada de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação da execução e persistente na resolução.

    Ora, não é possível decantar tais predicados na actuação do arguido, antes se abatendo a factualidade dada por assente de 55 a 65 sobre cada um deles aniquilando a sua validade do caso concreto, podendo ler-se jurisprudência em que a exclusão de tal frieza ocorre pela simples existência de um quadro de meras discussões familiares - ac. STJ de 7.6.1987, BMJ, 368, 299. Isto é, sem a ocorrência de atentados contra a vida sofridos pelo agente, sem manifestação de quadros patológicos psíquicos, nem quaisquer outros circunstancialismos que pontificam nos presentes autos.

  8. Em suma, o contexto relacional específico que pautava a relação entre o arguido e a vítima, as atitudes concretas de grave agressão desta última contra o primeiro, as características, idiossincrasias e debilidades psíquicas do agente reveladas na imputabilidade diminuída que resultou da perícia, a própria natureza da doença e as suas manifestações típicas que podem recolher-se em qualquer dicionário de psiquiatria, deveriam obrigatoriamente conduzir o tribunal a quo à condenação do arguido por um crime de homicídio simples ou voluntário e não pelo crime de homicídio qualificado, tudo com um limite máximo de pena, em cúmulo jurídico de 9 anos e meio.

    Assim não se tendo entendido, violado foi o disposto nos artigos 131º e 132º, do Código Penal.

  9. Assim se tivesse entendido, ou não, como foi o caso, outro vício encerra a douta decisão apreciada ao pensar não ter acolhido razões suficientes para atenuar especialmente a pena.

    O artigo 72º, n.º1, do CP, estabelece que circunstâncias anteriores, posteriores ou contemporâneas do crime que diminuem acentuadamente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, propiciam uma especial atenuação da pena, fazendo no n.º 2 um rol não taxativo dessas circunstâncias.

  10. Parece-nos que, salvo o devido respeito por melhor opinião, que a factualidade dada por provada nos presentes autos, e especialmente contida de 55 a 65 da fundamentação fáctica, deveria ter levado o tribunal a quo a concluir pela verificação daquele referente substancial ou arquetípico (como de uma ou de outra forma se lhe refere a escola de Coimbra e, respectivamente, os Profs. Figueiredo Dias e Costa Andrade), sem necessidade de recurso a qualquer dos exemplos vertidos no n.º 2 do artigo 72º, com as consequências previstas no artigo 73º, do CP.

  11. Aliás, mesmo que se não quisesse ver como meramente exemplificativa a enumeração do n.º 2 do artigo 72º, do CP, interpretação que precursores doutrinais ou jurisprudências se não conhecem, ou pelo menos quando se queira encontrar um enquadramento mais correcto para além daquele mencionado referente substancia (o que, repete-se, parece claro que não é exigido), sempre se poderá afectar a situação presente na alínea b) (forte solicitação).

    O que sempre teria como consequência, mesmo num cenário de não desqualificação do crime de homicídio - que só por cautela e facilidade de raciocínio se prevê -, numa diminuição da pena única aplicada por redução dos limites mínimos e máximos imposta pelo artigo 73º, do CP.

    Tudo levando a que, também por esta via, nunca a pena única a aplicar ao arguido se eleve para além dos já referidos nove anos e meio.

  12. Em suma, face ao que se expõe, entende-se que a douta decisão viola o disposto nos artigos 72º, 73º, 131º e 132º, do Código Penal.

    O recurso foi admitido.

    Na contra-motivação apresentada o Exm.º Magistrado do Ministério Público pugna pela improcedência do recurso.

    O Exm.º Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, na vista que teve no processo, limitou-se a uma referência à admissibilidade do recurso, ao efeito que lhe foi atribuído e à competência para dele conhecer.

    Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

    Do exame das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso, resulta que a sua discordância relativamente ao acórdão impugnado incide sobre a pena conjunta aplicada, pena que entende dever ser reduzida para medida não superior a 9 anos e 6 meses de prisão, sob a alegação de que os factos provados, no que tange ao homicídio, foram incorrectamente qualificados, visto que integram a previsão do artigo 131º, do Código Penal, tendo em atenção, especialmente, a circunstância de padecer de distúrbio e patologia mental que lhe diminui a imputabilidade, circunstância que, caso se entenda não justificar a requalificação dos factos, deverá conduzir à atenuação especial da pena.

    É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados e não provados) ( 2): [Apenso C] Em data não apurada, no final de 2003, numa via pública em Ovar, o arguido em conversa com a então sua mulher BB, proferiu, dirigindo-se a esta, "minha grande puta", "minha grande vaca", "levaste a tua filha mais velha à prostituição e andas com a tua filha mais nova para levá-la para o mesmo".

    O referido em 2) foi proferido na presença da filha de ambos, CC, causando à BB vergonha.

    Tendo o arguido actuado com o objectivo de ofender a sua mulher BB no seu nome e reputação, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, agindo voluntária, livre e conscientemente.

    [Processo principal] O arguido, marido da vítima BB, e progenitor, com esta, de DD e CC, nascidas, respectivamente, em 29.01.1984 e 11.01.1993, sempre manteve, em Ovar, onde todos residiam e tudo aconteceu...

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