Acórdão nº 2271/07.2TBMTS-A.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Novembro de 2010

Magistrado ResponsávelSERRA BAPTISTA
Data da Resolução18 de Novembro de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : I- O regime jurídico da garantia bancária autónoma, à primeira solicitação (on first demand) é determinado pelas cláusulas acordadas e pelos princípios gerais dos negócios jurídicos (arts 217.º e ss do CC) e dos contratos (art. 405.º e ss do CC).

II- A função da garantia autónoma não é a de assegurar o cumprimento de um determinado contrato mas antes a de assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas nos termos da garantia, uma determinada quantia em dinheiro. E, por isso, perante uma garantia autónoma á primeira solicitação de nada servirá vir-se esgrimir com argumentos retirados do contrato principal, pois a garantia tem fins próprios, auto-suficientes, servindo, como diz Galvão Telles, como um simples sucedâneo de um depósito em dinheiro.

III- Contudo, mesmo no caso de tal garantia, deve impor-se a exigência de um limite, cuja violação implicaria um desrespeito de princípios basilares da ordem jurídica portuguesa e que o contrato em questão, mesmo dotado da referida autonomia, não pode pôr em causa. Podendo o garante recusar o pagamento quando, comprovadamente, for manifesta a improcedência do pedido. Pois a autonomia da garantia bancária tem, desde logo, como limite a ofensa dos princípios gerais de direito, como sejam os do abuso de direito, da boa fé e da confiança.

IV- Não está entre esses limites, não estando, assim, vedado ao credor, por força dos institutos da boa fé e do abuso de direito, cumular-se “penalizações” no contrato firmado entre o dador da ordem e o beneficiário da garantia. Podendo o credor ter o direito de resolver o contrato quando o entender e de, violadas que estejam as condições impostas para a gratuidade do mútuo, cobrar juros moratórios desde o seu início.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: O AA- BANCO C... P..., S.A. veio deduzir oposição à execução contra si instaurada por BB-U... – DISTRIBUIÇÃO DE BEBIDAS, S. A., pedindo a sua extinção.

Alegando, em síntese: A exequente/beneficiária da garantia por si dada incorreu em mora creditoris vel accipiendi no que respeita à quantia exequenda, não tendo interpelado a opoente logo que vencidas as obrigações garantidas.

A conduta da exequente, ao pretender a cobrança de juros moratórios a cargo do garante que não notificou oportunamente, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelo agravamento que criou na posição do devedor.

Contestou a exequente, alegando, também em suma, que não ofendeu os princípios da boa fé a que devia obedecer, nem incorreu em abuso de direito, desde logo, porque não estava constituída na obrigação de interpelar a garante logo que vencidas as respectivas obrigações.

Foi proferido o despacho saneador, tendo sido dispensada a selecção da matéria de facto.

Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto pela forma que do despacho junto de fls 275 a 284 consta.

Foi proferida a sentença, que julgou improcedente a oposição.

Inconformado, veio o opoente interpor, sem êxito, recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

De novo irresignado, veio pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado, na sua alegação as seguintes conclusões: 1ª - A correcta ponderação do caso dos autos obriga a ter presentes os seguintes factos: a) Que os mútuos são gratuitos, pois expressamente assim são denominados e são sem juros; b) Que, em caso de incumprimento ou mora no cumprimento que não seja remediada no prazo de quinze dias, poderá o outro contraente resolver o contrato; c) Que o incumprimento dá lugar ao pagamento, pelo contraente faltoso, de uma indemnização igual a 10% das quantias mutuadas; c) Que, para além desta indemnização, o incumprimento por parte do Revendedor (ordenador das garantias prestadas pelo Banco) determina o imediato vencimento de todas as prestações em dívida do mútuo (...) acrescidas de juros moratórios calculados à taxa máxima legal, permitida pela aplicação conjugada dos arts 559º, 559°-A e 1146° do Cód. Civil e computados desde a data do contrato até à data do efectivo pagamento (cfr. os documentos I (CC-P... da P... - Cláusula I0ª) 6 (DD-P... B... Cláusula 10ª), 10 (EE-T... - Cláusula 10ª), 13 (FF-P... & J... - Cláusula 10ª) e 16 (GG-C... & C... - Cláusula 10ª), juntos com a contestação da lª oposição) (cfr. ainda, doc. n° I, junto à contestação da oposição deduzida contra a execução cumulada (HH-C... A... W... V... - Cláusula 10ª) (cfr., ainda, Cláusula 3ª de todos os contratos atrás melhor identificados relativa à qualificação dos mútuos como mútuos originariamente gratuitos).

  1. - Destas cláusulas resulta: a) Que a Recorrida BB-U... concede aos seus revendedores mútuos que, se cumprirem o contrato de venda exclusiva e as obrigações de reembolso, nunca determinarão o vencimento de juros: é por isso que são apelidos de gratuitos; b) Que, se vier a ocorrer incumprimento, os mútuos deixam, todavia, de ser gratuitos e passam a onerosos, com vencimento de juros à taxa máxima legal, devidos, não desde o início da mora, senão desde a concessão do mútuo e, portanto, desde o início do contrato; 3ª - Será porventura admissível que a mora, enquanto atraso no cumprimento, se possa reportar ao início do contrato por via de expressa disposição contratual apoiada na ideia de que a gratuitidade do mútuo tem como contrapartida o cumprimento exemplar por parte do mutuário revendedor; 4ª - O que não pode aceitar-se é que o mutuante faça jus, a um só tempo, à faculdade de continuar com a relação contratual para lhe colher a vantagem "dos consumos que entretanto se vão fazendo no decurso do contrato” e tenha direito, quando muito mais tarde se decide pela resolução, a haver do devedor e do seu garante os juros de uma mora reportada à data em que o contrato se celebrou, como se nada se tivesse passado.

  2. - Do ponto de vista da boa fé e da proibição do abuso de direito, um contrato não pode a um só tempo facultar à parte duas vantagens contraditórias: a vantagem, por um lado, de o ter em execução para dele ir colhendo os benefícios das prestações que o seu cumprimento supõe e, ao mesmo tempo, dar-lhe direito, na sequência da resolução que se não quis antes para poder colher aquelas benefícios, a juros moratórios desde o início do contrato e como se dele se não tivessem colhido as prestações do seu cumprimento. De facto, 6ª - Colher os benefícios da execução do contrato que voluntariamente se não resolveu para egoisticamente se irem embolsando aqueles benefícios e, depois disto, resolver, afinal, o contrato pedindo juros moratórios como se nada se tivesse passado e da mora só se tivessem colhido prejuízos, analisa-se em comportamento que viola a obrigação de boa fé a que se refere o art° 762°, n° 2 do Cód. Civil e que envolve comportamento contrário ao fim económico ou social para efeito do disposto no art° 334° do mesmo Corpo de Leis.

  3. - Do ponto de vista destes dois institutos (boa fé e abuso de direito) pode mesmo dizer-se que a simultânea atribuição ao contraente não faltoso do direito à resolução do contrato e à indemnização pela mora obriga o credor como que a "gerir" o seu uso no respeito dos valores ético jurídicos que lhe estão supostos, sendo-lhe vedado cumulá-los para de ambos tirar as respectivas vantagens.

  4. - E se é bem certo que o direito à resolução do contrato se analisa numa mera faculdade que a Recorrida podia usar ou não, a opção de o não resolver para dele colher as vantagens da sua execução, obrigava-a, no quadro daquela "gestão" ético jurídica, a não pedir os juros moratórios que peticionou nesta execução.

  5. - O douto Acórdão recorrido, decidindo como decidiu, violou o disposto nos arts 334°, 762°, n° 2 do Código Civil.

  6. - E não impede esta violação o facto de o pedido na execução se fundar numa garantia bancária à primeira solicitação e a violação daqueles comandos decorrer, não do contrato de garantia, senão do contrato base. De facto, 11ª- Os institutos da tutela da boa fé e da proibição do abuso de direito, analisam-se em institutos verdadeiramente estruturantes do sistema jurídico que, enquanto tais, podem ser chamados a intervir e devem intervir qualquer que seja o caso concreto onde o comportamento em causa se possa entender estar coenvolvido por qualquer daqueles dois institutos.

  7. - E se é assim, como é, tanto vale que o proibido fim a alcançar constitua o fim imediato ou apenas fim mediato da pretensão: do ponto de vista da matriz ético jurídica do sistema, o que importa é que o mal não seja conseguido, estejamos ou não a discutir a relação base ou apenas uma relação conexa onde, o que se pede, é a satisfação de uma prestação a coberto de uma disposição espúria da relação de base.

A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

* Vem dado como PROVADO: 1 - A exequente é portadora do documento junto a fls. 11 dos autos apensos subscrito pela executada e nos termos do qual se lê: " GARANTIA BANCÁRIA N° ...-...-0...

BB-U... - DISTRIBUIÇÃO DE BEBIDAS, S.A.

O AA-"BANCO C... P..., S.A.", Sociedade Aberta, com o capital social de € 2 326 714.877 Euros, registado na Conservatória do Registo Comercial do Porto com o número --.---, com o número de contribuinte e de pessoa colectiva ..., com sede na P... D... J... I, 28, 4000-2... Porto, e estabelecimento na Rua L... C..., ..., 4000-3... Porto, tendo tomado perfeito conhecimento dos termos e condições do mútuo gratuito de € 50 000,00 (CINQUENTA MIL EUROS) concedido pela BB-U... DISTRIBUIÇÃO DE BEBIDAS, S.A. a CC-"P... DA P... - ACTIVIDADES HOTELEIRAS UNIPESSOAL, LDA", Pessoa Colectiva nº ..., com sede na Estrada de M..., ...-...° A - 1800 Lisboa, no âmbito do acordo de compra exclusiva celebrado entre ambas, declara pela presente constituir-se fiador e principal pagador à referida BB-U... de todas as obrigações pecuniárias que, por força do referido empréstimo, vierem a resultar para...

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