Acórdão nº 3777/08.1TBMTS.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 06 de Maio de 2010

Magistrado ResponsávelSANTOS BERNARDINO
Data da Resolução06 de Maio de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : 1 – A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. É na ponderação do modo como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se deve guiar a tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer.

2 – A actividade desenvolvida pelos estabelecimentos privados de ensino não superior situa-se no âmbito do direito privado: o ensino nas escolas privadas não se traduz no exercício de uma actividade pública delegada, mas antes numa actividade privada concorrente com o ensino público, actuando as escolas privadas no sector privado e no exercício de actividades privadas.

3 – A acção disciplinar exercida pelas escolas do ensino particular relativamente aos seus alunos corresponde a uma prerrogativa contratual da escola, destinada a assegurar a realização da prestação (sinalagmática) a que está vinculada nos termos do negócio celebrado com o aluno ou o seu representante legal, tendo, por isso, natureza privada e não se sujeitando a qualquer regime de direito público.

4 – A competência dos tribunais comuns é residual, estendendo-se a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais; aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo estes os que se referem a uma controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal e nas quais intervém a Administração.

5 – São os tribunais comuns os competentes para conhecer de um litígio em que a autora, invocando a ilicitude de processo disciplinar instaurado ao seu filho, menor, pela direcção do estabelecimento particular pertencente à ré, uma sociedade comercial, pede a condenação desta a eliminar do processo individual do aluno a sanção aplicada e a ressarci-la dos danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido em consequência de tal conduta ilícita e culposa da ré.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1.

AA intentou em 21.05.2008, no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos, contra B... – S... DE E..., L.da, a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário.

Pediu a declaração de ilicitude do processo disciplinar instaurado ao seu filho e a condenação da ré: - na eliminação do registo da sanção disciplinar do processo individual do aluno, adoptando, para esse efeito, todas as diligências necessárias e adequadas; - no pagamento da quantia de € 1194,43, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela autora, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento; - no pagamento da quantia a liquidar no decurso desta acção ou posteriormente, a título de indemnização pelo custo do Centro de Estudos que a autora terá de suportar até final do ano lectivo; - no pagamento da quantia de € 5000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento; - na restituição à autora da importância de € 467,50, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou para o efeito, e em síntese, que a ré, enquanto sociedade comercial que tem por objecto o ensino básico em estabelecimento de ensino particular e que explora o estabelecimento de ensino básico dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos designado por Externato S. João Bosco, instaurou contra o filho da autora, BB, ao tempo seu aluno, um processo disciplinar eivado de nulidades várias, o qual culminou na aplicação ao educando da medida sancionatória de suspensão por 10 dias, embora sem base factual bastante para o efeito, sendo, por isso, ilícita a aplicação de tal sanção. Em consequência do sucedido, a autora viu-se obrigada a transferir o seu filho para outra escola, facto que lhe acarretou custos acrescidos e perda de quantias várias que pagou adiantadamente à ré.

A ré, regularmente citada, contestou a acção, excepcionando a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para conhecerem do presente litígio e impugnando parcialmente a versão dos factos alegados pela autora.

No que concerne especificamente à excepção dilatória por si aduzida, a ré argumentou, por um lado, que a relação material controvertida estabelecida com a autora é uma relação de direito público – dado que opõe uma pessoa colectiva de utilidade pública e um particular –, e, por outro, que o exercício da acção disciplinar sobre os alunos do ensino particular ou cooperativo redunda na prática de actos materialmente administrativos, insindicáveis pelos tribunais comuns.

Concluiu pela improcedência da acção.

Replicou a autora, contrapondo, a propósito da arguida incompetência material, que o objecto do litígio se refere a uma relação de direito privado e que a aplicação da sanção disciplinar em causa não é um acto administrativo nem traduz o exercício de um poder público.

No despacho saneador, o Ex.mo Juiz, para além de ter alterado o valor da causa para € 36.661,94 e a forma de processo para a de ordinário, julgou procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta dos tribunais comuns para conhecer dos pedidos formulados pela autora e absolveu a ré da instância, entendendo achar-se a competência atribuída a outra ordem jurisdicional, a dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Inconformada, a autora apelou para a Relação do Porto, a qual, por acórdão de 29.06.2009 (fls. 353-368) julgou o recurso procedente, revogou a decisão da 1.ª instância e, consequentemente, declarou “o tribunal recorrido competente, em razão da matéria, para conhecer desta acção” e fixou “o valor processual da acção em € 6661,93”.

Do acórdão que assim decidiu recorre agora, de revista, a ré, que finaliza a sua minuta de recurso com a enunciação das seguintes conclusões: 1ª - O presente recurso restringe-se à decisão proferida quanto à competência do tribunal recorrido em razão da matéria e é admissível independentemente do valor da causa e da sucumbência, por se tratar de decisão que viola regras de competência em razão da matéria, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 678º do CPC, e é igualmente admissível por a decisão recorrida estar em contradição com a decisão proferida em 1.ª instância (art. 721º, n.º 3 a contrario, do CPC).

  1. - A competência material dos tribunais judiciais deve ser aferida por critérios de atribuição positiva (pedido formulado na acção, isto é, o quid decidendum) e de competência residual (cabem na competência dos tribunais civis as causas que não estejam legalmente atribuídas a outro tribunal).

  2. - Resulta da petição inicial e do pedido deduzido que a recorrida funda a sua pretensão numa alegada ilicitude do processo disciplinar, instaurado pela Direcção de um estabelecimento de ensino de que a ora alegante é proprietária, ao respectivo filho – em nenhum momento põe em causa a relação contratual estabelecida com a recorrente nem alega a existência de qualquer incumprimento de tal contrato por parte do estabelecimento de ensino.

  3. - O que a recorrida invoca é a ilicitude do processo disciplinar instaurado ao filho, para reclamar a eliminação da sanção disciplinar aplicada do processo individual do aluno, fundando a sua pretensão em normas do Código do Procedimento Administrativo.

  4. - O processo individual do aluno acompanha o mesmo ao longo de todo o seu percurso escolar, e isto, independentemente de tal percurso ser efectuado em escolas públicas ou privadas; logo, a natureza do processo disciplinar instaurado, quer por um estabelecimento de ensino público, quer por um estabelecimento privado, a um aluno, é só uma e a mesma, sendo decorrente do próprio Direito ao Ensino, que tem de ser assegurado pelo Estado e logo fiscalizado pelos seus órgãos, e não de uma relação jurídica regulada pelo direito privado.

  5. - A recorrente é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada que tem por objecto o ensino básico em estabelecimento de ensino particular, mas, de acordo com o disposto no art. 8º, n.º 1, do DL n.º 553/80, de 21-11 (Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo), goza das prerrogativas das pessoas colectivas de utilidade pública.

  6. - O exercício do poder disciplinar que assiste à recorrente sobre os seus alunos é, salvo mais douto entendimento, uma relação de direito público, estabelecida entre uma pessoa colectiva de utilidade pública e um particular.

  7. - A recorrente tem por missão realizar interesses públicos, recebendo, por isso, prerrogativas de autoridade conferidas pelo Estado e pela Lei e, no uso delas, pratica actos materialmente administrativos, nomeadamente, no seu relacionamento com alunos e com encarregados de educação, ficando as respectivas decisões sujeitas às regras de recurso estabelecidas pelo ETAF e na LEPTA, por se tratar de matéria não excluída de jurisdição administrativa.

  8. - De acordo com o art. 50º do Estatuto do Aluno (o qual se aplica quer à escola pública quer ao ensino particular), da decisão final do procedimento disciplinar cabe recurso hierárquico nos termos gerais de direito.

  9. - Uma vez que, no caso das escolas particulares, tal recurso hierárquico não é possível, resta o recurso jurisdicional para o tribunal que, no caso em apreço, sempre deverá ser o Tribunal Administrativo e Fiscal.

  10. - O procedimento disciplinar a alunos das escolas particulares, ainda que em regime de autonomia pedagógica, pode ser sindicado no contencioso administrativo.

  11. - Na determinação da competência dos tribunais administrativos e fiscais assiste-se, actualmente, ao abandono do...

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