Acórdão nº 3501/05.0TBOER.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Abril de 2010

Magistrado ResponsávelGARCIA CALEJO
Data da Resolução29 de Abril de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA REVISTA Sumário : I - Para que um facto (ilícito) possa ser considerado contrafacção (cf. art. 196.º do CDADC) devem concorrer, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) alguém proceder a uma utilização fraudulenta; b) arrogar-se como sendo sua obra alheia; c) que seja mera reprodução de obra alheia; d) que essa reprodução seja tão semelhante que não tenha individualidade própria.

II - Diversa da contrafacção é a figura da usurpação, a que alude o art. 195.º do CDADC: enquanto, nesta, o usurpador utiliza a obra de outro sem autorização (ou para além dos limites da autorização concedida), na contrafacção o visado utiliza como própria uma obra alheia.

III - Resulta do n.º 1 do art. 196.º do CDADC que, desde que cada uma das obras possua individualidade própria, a semelhança entre duas obras não constitui contrafacção. O critério da individualidade, no exacto sentido de criatividade, prevalece sobre a semelhança objectiva. Decisivo para determinar a contrafacção é nada se acrescentar à criação alheia a que se recorreu.

IV - O critério determinante para que se diga que não há contrafacção, é afirmar-se que a obra possui um conjunto de características intrínsecas que permite dizer que, não obstante as semelhanças, se trata de uma obra diferente e não uma reprodução ou cópia da outra, i.e., que é uma obra que tem uma individualidade própria, por comparação com a outra.

V - A obra é o objecto da protecção no direito de autor o que pressupõe a sua existência, não podendo falar-se sequer de direito de autor sem a realidade de uma obra, entendida como exteriorização duma criação do espírito, uma criação intelectual por qualquer modo exteriorizada, não beneficiando da sua tutela as ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas, por si só e enquanto tais.

VI - O direito de autor engloba direitos patrimoniais e direitos pessoais ou morais (cf. art. 9.º do CDADC): a) no que toca aos direitos de carácter patrimonial, o seu titular tem o direito exclusivo de fruir e utilizar a sua obra, no todo ou em parte, tendo, nomeadamente, a faculdade de a divulgar, publicar e explorar economicamente por qualquer forma, directa ou indirectamente, nos limites da lei; b) no que concerne aos direitos morais, o autor goza do direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuinidade e integridade, de se opor à sua destruição, a toda e qualquer mutilação, deformação ou outra modificação e, de um modo geral, a todo e qualquer acto que a desvirtue e possa afectar a honra e reputação do autor, o direito de a retirar a todo o tempo de circulação e fazer cessar a respectiva utilização, direitos estes que são inalienáveis, e irrenunciáveis, perpetuando-se após a morte do autor, competindo esse exercício aos seus sucessores, enquanto a obra não cair no domínio público.

VII - No caso concreto, se a titularidade originária da propriedade intelectual de um guião pertencia a um terceiro (em exclusivo) e, só após a celebração de escritura pública, o conteúdo patrimonial do referido direito foi transmitido ao recorrente, este não adquiriu, por força da transmissão operada, a qualidade de autor ou de co-autor da obra, pois que não a criou, tornando-se, única e exclusivamente, o titular do conteúdo patrimonial de um direito sobre a obra. O autor ou criador intelectual do guião (terceiro) manteve (e mantém) os direitos morais sobre essa obra.

VIII - A protecção da obra é extensiva ao título, nos termos do art. 4.º, n.º 1, do CDADC, desde que este tenha originalidade, traga algo de novo, e não seja banal.

IX - O termo “público” a que se refere o art. 6.º do CDADC deve ser entendido com o “público em geral”, só existindo divulgação quando a obra sai fora da esfera de controlo do autor e passa a ser acessível a todos aqueles que procuram ter conhecimento dela. Assim, a gravação de ensaios de um programa em videocassete não traduz a comunicação pública de uma obra autónoma: tal comunicação implica, necessariamente, para além da existência de uma obra, a sua apresentação ao público, ou seja, dar a conhecer à generalidade das pessoas, permitindo, assim, o acesso à mesma.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I- Relatório: 1-1- AA, residente na Av. …, C.P. …-…, Porto, propôs a presente acção com processo ordinário contra BB ... de Comunicação, SA, com sede na …, C.P. …-…, … e CC, Produções de Televisão S.A.

, com sede na …, nº …, Edifício …, .., piso .., C.P. ..-.., … pedindo que as RR. sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de € 1.780.000,00 a título de indemnização pela prática do ilícito de contrafacção que indica, acrescida dos juros legais a contar da citação e até efectivo e integral pagamento.

Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que é produtor de televisão, tendo contactos privilegiados com a estação de televisão DD, para a qual produziu o programa “A... “, cuja autoria e ideia original foram suas. O guião de tal programa foi elaborado, a pedido do A., por EE. Este EE, no dia 2 de Dezembro de 2003, entregou ao A., a 1ª versão do guião do programa “U.... s...”. O novo programa, ideia original do A., teria o título de “U.... s...” e como objectivo o de encontrar o sonho de mulher de todos os portugueses. O EE tratou de criar um guião onde as candidatas seriam sujeitas a várias provas, desfile em fato de banho e em vestido de gala, prova de canto e/ou dança e/ou expressão corporal e provas de cultura geral, onde se mostraria não a cultura, mas a incultura, das candidatas, criando uma figura bonita e bem arranjada, mas que raramente é culta. Efectuado o guião, o A. adquiriu total e definitivamente a EE, na sequência de um contrato particular com este celebrado em Fevereiro de 2004, por escritura pública lavrada em 8 de Outubro de 2004, os direitos de propriedade artística e intelectual do guião, conceitos e conteúdos, de um programa intitulado “U.... s...”. O cedente dos direitos em causa, EE, procedeu em 17 de Fevereiro de 2004 ao pedido de registo da obra na qual se incluem o guião, o titulo, conceito e conteúdos, no IGAC — Inspecção Geral das Actividades Culturais e na SPA - Sociedade Portuguesa de Autores, que foi devidamente deferido em 29 de Abril de 2004. Em 10 de Março de 2004 foi efectuado o registo no IGAC da cassete vídeo gravada no dia 13 de Janeiro de 2004 no Casino da Povoa do Varzim e que constituiu o programa ... de “U.... s...”, pedido de averbamento esse que foi deferido pelo IGAC em 30 de Abril de 2004. A venda de cada programa far-se-ia ao canal de televisão DD, já contactado e interessado na aquisição do mesmo, por valor dependente de negociação, mas nunca inferior a trinta e cinco mil euros por programa. Em Março de 2004, o A. foi alertado por amigos presentes na gravação do programa ..., para o facto de a 1ª R. ter começado a anunciar que, a mesma, iria estrear o programa “u.... s...”. O objectivo, nome e conteúdo do programa publicitado pela 1ª R. eram exactamente idênticos ao seu programa, previamente idealizado, gravado e registado, apesar de a 1ª R. acrescentar ao titulo “U.... s...” “o subtítulo“ Miss Portugal 2004 “, consistiam nas mesmas provas de desfile em fato de biquini, vestido de noite, bem como a tónica de humor existente no seu “U.... s...”. Ao verificar esta situação o A., por carta registada de 13 de Abril de 2004, informou as RR. do facto, solicitando-lhes que não emitissem o referido programa, sob pena de o A. ser forçado a agir judicialmente. Apesar de notificadas, as RR. emitiram o referido programa, incorrendo em contrafacção, nos termos do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDA), por apropriação ilícita do programa concebido e idealizado pelo A., impedindo este último de fechar contrato com a operadora de televisão interessada na aquisição do programa.

A 1ª R. contestou alegando, em síntese, que ao tempo da apresentação da providência cautelar apensa (Abril de 2004), por inobservância da forma legalmente prevista por lei - escritura pública -, o negócio, pelo qual EE terá alienado ao A. o conteúdo patrimonial do alegado direito de autor, era nulo. A escritura pública de alienação de tal conteúdo apenas foi lavrada em 8 de Outubro de 2004, referente a um programa intitulado “U.... s...”. Em 16 de Fevereiro de 2004, a 1ª R. procedeu ao pedido de registo, junto do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, da marca “U.... s... — Miss Portugal 2004” na classe 38ª. O programa “U.... s... — Miss Portugal 2004”, sobre o qual o A., alegadamente, invoca deter os respectivos direitos, já tinha sido emitido muito antes da data da escritura de 8 de Outubro de 2004, tendo as respectivas transmissões cessado em 28 de Maio de 2004.

Conclui pela ilegitimidade do A, enquanto excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa.

Acrescenta que a causa de pedir aduzida pelo A. configura um crime de contrafacção, cuja apreciação e julgamento cabe aos tribunais criminais.

Ainda que assim se não entenda, é inepta a petição inicial, por ininteligibilidade da causa de pedir, que o A. não concretiza nem identifica e nem sequer alega qualquer dano moral. A indemnização a eventualmente ter lugar, em benefício do A. deveria ser relativa aos custos suportados com a produção do programa, mas o A. nada alega a este respeito, ferindo, também, de ineptidão a petição inicial, com fundamento na ininteligibilidade do pedido.

“U.... s...” é uma expressão totalmente genérica e sem qualquer carácter distintivo particular. O mesmo não se verifica relativamente à marca “U.... s... — MISS PORTUGAL 2004”, uma vez que esta conjuga e associa a expressão genérica “U.... s...” à já anterior marca “Miss Portugal”, conferindo-lhe, assim, a necessária capacidade distintiva. O A. entra em contradição com o referido nos artigos iniciais da sua peça processual, ao associar «U.... s...» ao programa «A...».

O conceito e estruturação dos...

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