Acórdão nº 186/1999.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 25 de Março de 2010

Magistrado ResponsávelOLIVEIRA ROCHA
Data da Resolução25 de Março de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : I - Os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos, constituindo, portanto, prática incorrecta, na decisão sobre a matéria de facto, remeter para o teor de documentos.

II - Dar por reproduzidos documentos ou o seu conteúdo é bem diferente de dizer qual ou quais os factos que, deles constando, se consideram provados - provados quer por força do próprio documento em si, quer por outra causa (v.g.

acordo sobre um facto nele indicado, embora o documento não gozasse de força suficiente para o dar como provado).

III - A presunção do art. 7.º do CRP não abrange os elementos de identificação ou a composição (áreas) dos prédios, porque tal depende da declaração dos titulares e não é verificado pelo Conservador.

IV - O art. 1380.º do CC refere-se ao direito de preferência entre proprietários de terrenos confinantes, isto é, de prédios rústicos confinantes, e a sua razão de ser está ligada ao objectivo de propiciar o emparcelamento de terrenos, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente.

V - Trata-se de um direito legal de aquisição, que depende da verificação de diversos requisitos, cujo ónus da prova incumbe aos que se arrogam titulares do direito de preferência, por se tratar de factos constitutivos desse direito (art. 342.º, n.º 1, do CC).

VI - A lei civil não conhece o conceito de prédio misto, estando o mesmo definido no art. 5.º do CIMI, o qual consagra um critério de predominância, ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável, o prédio é considerado misto.

VII - O prédio misto é, pois, um tertium genus, já que os prédios devem, sempre que possível, ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana.

VIII - Sendo o núcleo essencial do prédio misto do autor - a sua destinação e afectação - próprio de um prédio rústico e não de um logradouro, logra aquele a demonstração de um dos requisitos previstos no art. 1380.º do CC.

IX - Para que o facto impeditivo do direito de preferência, aludido no art. 1381.º, al. a), 2.ª parte, do CC, opere os seus efeitos é necessário que o adquirente alegue e prove, não só a sua intenção de dar ao prédio adquirido uma outra afectação ou um outro destino que não a cultura, mas também que essa projectada mudança de destino é permitida por lei.

X - A possibilidade de afectar um terreno de cultura a finalidade diferente depende, pois, não do critério egoísta do proprietário (adquirente) vizinho, mas antes e apenas de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território.

XI - A prova da viabilidade legal da construção é, assim, um elemento essencial para operar a excepção a que se refere o apontado facto impeditivo, a qual fica afastada no caso de o licenciamento concedido ser ilegal.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.

  1. AA instaurou a presente acção declarativa ordinária contra BB e mulher CC e DD e mulher EE, pedindo a condenação destes a reconhecerem que o autor, na sua qualidade de único proprietário confinante, gozava do direito de preferência na compra da “leira da ........”, pertencente aos 1ºs réus e por estes vendida aos 2ºs, por escritura de 06.06.94, proferindo-se sentença que julgue substituído o autor aos 2°s réus no direito de propriedade sobre aquele prédio.

    Alegou que é proprietário de um prédio misto confinante com o alienado, que os adquirentes do prédio alienado não são confinantes com o mesmo, que este tem área inferior à unidade de cultura para a região e que os intervenientes na escritura não lhe participaram a venda projectada, nem lhe foi dada a oportunidade de preferir.

    Os réus contestaram, alegando que o autor tem conhecimento da transmissão do prédio desde o Verão de 1994, que o prédio comprado se destina à construção de uma habitação, que foi iniciada em Dezembro de 1996 e que o negócio titulado pela escritura pública em causa é simulado, já que o verdadeiramente querido pelas partes foi uma doação, tendo os outorgantes feito constar o negócio de compra e venda com o intuito de enganar alguns dos filhos dos 1ºs réus, irmãos do 2° réu marido, que se opunham a que os pais se desfizessem gratuitamente do seu património.

    Caso assim se não entenda, pedem a procedência da reconvenção, pois que, provada a simulação da compra e venda e dissimulada a doação, aplica-se o regime desta no que diz respeito à gratuidade e demais consequências negativas para o direito de preferência do autor, absolvendo-se, em conformidade, os réus do pedido.

    Pedem, ainda, a condenação do autor no pagamento das benfeitorias resultantes da construção da casa pelos 2°s réus, cujo montante exacto deverá ser determinado em execução de sentença, e em indemnização a favor dos réus em quantia a liquidar em execução de sentença, já que aquele litiga de má-fé.

    Saneado, instruído e julgado o processo, foi proferida sentença que julgou improcedentes a acção e a reconvenção.

    O autor recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que anulou a decisão, a fim de ser ampliada a base instrutória.

    Teve lugar novo julgamento e a sentença proferida julgou a acção procedente, reconhecendo que o autor, na sua qualidade de único proprietário confinante, gozava e goza do direito de preferência na compra da “leira da ........”, alienada aos 2ºs réus, por escritura de 06.06.94, e de haver para si o direito de propriedade sobre esse prédio, substituindo-se aos 2ºs réus na posição de comprador, sendo a estes devido o preço da venda, encargos da escritura, sisa e registos. Julgou, ainda, improcedente a reconvenção.

    Inconformados, os réus recorreram, ainda que sem êxito, para a Relação do Porto.

    Irresignados, pedem revista.

    Concluíram a alegação do recurso pela seguinte forma: Um dos pressupostos essenciais ao exercício do direito de preferência é a rusticidade do prédio confinante - artigo 1380° do Código Civil.

    O ónus de alegar e provar a natureza rústica do prédio preferente incumbia ao recorrido - artigo 342° do Código Civil.

    O recorrido não alegou quaisquer factos donde se possa concluir que o prédio misto de que é proprietário tem natureza rústica.

    Fundamenta o exercício do direito de preferência num prédio que qualifica como misto, através de uma expressão conclusiva.

    Não satisfaz o ónus de alegação, que impende sobre o recorrido, a simples referência a afirmações conclusivas ou a simples remissão para o conteúdo de documentos ou a simples transcrição do teor dos mesmos.

    As certidões matriciais e registrais não têm força probatória.

    O Tribunal não pode servir-se de factos que não tenham sido articulados ou alegados pelas partes - artigo 664° conjugado com o artigo 264° do Código Processo Civil.

    É erróneo o entendimento do tribunal recorrido quando caracteriza a essencialidade rústica e a finalidade agrícola a partir das certidões matriciais e registral.

    O Tribunal tem o dever de apreciar, ainda que oficiosamente, a verificação ou não de todos os requisitos ao exercício do direito visado - artigo 664º do Código de Processo Civil.

    Nenhum facto relevante para a decisão da causa deve ficar por esclarecer.

    Subsistindo dúvidas sobre a rusticidade do prédio, esta favorece sempre os réus e nunca o autor - artigo 516º do Código de Processo Civil.

    Decidindo em sentido contrário, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 1380°, nº1 e artigo 1381°, alínea a), do Código Civil e artigos 516º e 664º do Código de Processo Civil.

    O direito de preferência do proprietário de terreno confinante fica excluído também quando algum dos terrenos constituir parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura - artigo 1381°, alínea a), do Código Civil.

    O prédio misto do recorrido é composto de três parcelas rústicas, com artigos matriciais distintos, de uma casa de moradia com capela, cortes e outra casa de habitação com quintal, que constitui um outro prédio distinto.

    O destino que o próprio recorrido dá ao prédio é habitacional e não agrícola, conforme as afirmações do recorrido no recurso contencioso que apresentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que correu termos sob o nº 367/98 - alínea J) dos Factos Assentes.

    O prédio tem o turismo rural.

    A razão de ser do direito de preferência do artigo 1380º do Código Civil é promover o emparcelamento de prédios rústicos com o propósito de permitir unidades de cultura de maiores dimensões e mais rentáveis.

    As alegações do recorrido representam uma confissão, pelo que àquele documento deveria ter sido atribuído valor probatório pleno - artigo 376º do Código Civil.

    Tendo força probatória plena, não carecem de outra prova os factos nele vertidos, pelo que se têm por verdadeiros e provados.

    A componente rústica do prédio misto do recorrido destina-se a oferecer maior utilidade urbana, eventualmente, a criação de outras infra-estruturas adequadas à exploração lucrativa da oferta turística.

    O recorrido não visa tirar maior rentabilidade do prédio através da exploração agrícola, mas sim do Turismo, o que constitui um facto impeditivo do direito de preferência.

    O fim da lei, que é o emparcelamento de prédios rústicos, por via disso, jamais será alcançado.

    O tribunal recorrido apreciou erradamente esta matéria, ao fundar a sua decisão exclusivamente nas transcrições que o recorrido fez do teor das certidões matriciais e registral que juntou aos autos e da alegação da expressão conclusiva “afecto a fins agrícolas”, que foram dadas como assentes, como não poderiam deixar de o ser.

    O argumento utilizado pelo tribunal recorrido quanto à dificuldade de classificação do solo, quando o mesmo se encontre parcialmente edificado com construções, de que tem sido...

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