Acórdão nº 4285/18.8T8MTS.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução14 de Janeiro de 2021
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. AA instaurou, em 11 de Setembro de 2018, acção especial de interdição por anomalia psíquica contra BB, alegando, em síntese, que: é filha do requerido, o qual sofre, desde há quatro anos, de síndrome de demência; que o estado de saúde do requerido tem vindo a piorar; que recentemente padeceu de doença do foro oncológico, tendo sido submetido a tratamentos de quimioterapia, radioterapia e cirurgia; que o requerido é accionista de duas sociedades anónimas e, antes de sofrer de demência, era pessoa muito activa, gerindo sozinho as referidas sociedades; que, em consequência da doença de que padece, não consegue gerir a sua vida pessoal nem as empresas; que se encontra dependente de terceiros para se alimentar, tomar a medicação e se deslocar; que passou a comunicar muito pouco, tendo dificuldade em manter uma conversa; que confunde a contagem monetária; que não compreende o conteúdo de documentos; que não consegue tomar decisões; que tem grande dificuldade em apor a sua assinatura; e que conferiu procuração ao seu filho que se encontra a gerir as empresas, tendo afastado a requerente das mesmas.

  1. Foi dada publicidade à acção.

  2. O requerido foi citado pessoalmente e não apresentou contestação.

  3. Foi indeferida a pretendida interdição provisória do requerido.

  4. Tendo, entretanto, entrado em vigor a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, foi determinada a adaptação da tramitação dos autos ao novo regime legal.

  5. A requerente, a convite do tribunal, veio completar o alegado no requerimento inicial, peticionando que seja aplicada a medida de representação legal para actos em geral.

  6. O Ministério Público foi citado em representação do requerido e não apresentou contestação.

  7. Procedeu-se à audição pessoal do requerido e à realização de exame pericial.

  8. O requerido veio a falecer no dia … de Abril de 2020.

  9. Na sequência do falecimento do requerido, veio a requerente apresentar novo requerimento, em 5 de Maio 2020, cujo teor se transcreve: «1. Infelizmente, atento o tempo decorrido desde que em 11 de setembro de 2018 foi instaurada esta ação, o aqui beneficiário acabou por falecer antes que tivesse sido tomada uma decisão sobre o objeto imediato do processo.

  10. O óbito ocorreu depois de o mesmo ter sido submetido a interrogatório e de ter sido submetido a perícia médico-legal, a qual até foi concludente no juízo científico de verificação do estado de anomalia psíquica alegado, e até apontou a data desde que tal padecimento se verificou.

  11. A presente ação foi instaurada aio abrigo da lei revogada pelo novo regime legal do acompanhamento de maiores.

  12. Aquando da instauração da ação vigorava o artigo 904º do CPC, o qual nessa redação dispunha que, dando-se o óbito do interditando após o interrogatório judicial e a realização da perícia médico legal, o Requerente dispunha da faculdade de peticionar que a causa prosseguisse para aferição da existência da incapacidade e desde quando datava a incapacidade alegada.

  13. É do conhecimento da Requerente que a entrada em vigor do novo regime legal do maior acompanhado se aplica, por determinação legal, aos processos de interdição pendentes naquela data.

  14. Apesar do regime de aplicação da lei no tempo do novo regime legal do acompanhamento ter decidido abranger os processos de interdição pendentes e até findos de uma maneira geral, não pode estender-se in casu ao disposto ao artigo 904º, nº 1 do CPC.

  15. A aplicação do novo artigo 904º, nº 1 do CPC ao caso concreto enferma de inconstitucionalidade por dois motivos centrais.

  16. O primeiro, centra-se no princípio da proteção da confiança da Requerente, pois quando esta deu entrada ação o regime legal previa esta possibilidade precisamente para garantir uma tutela judicial máxima em caso de falecimento.

  17. O segundo, centra-se na circunstância de a prova produzida neste processo se afigurar ser prova que dificilmente poderá ser usada num outro processo sem oposição, o que põe em causa seriamente, a possibilidade de anulação de atos eventualmente praticados pelos beneficiário na pendência da ação que tenham sido celebrado após a data da verificação da sua incapacidade.

  18. Trata-se de prova que se não for aproveitada por este Tribunal porá em causa de modo sério e irremediável, o exercício de direitos por parte da Requerente que dependam da determinação da data dos efeitos da interdição e terá tornado inútil a pendência do presente processo, que mais uma vez pendia desde há 1 ano e sete meses sem que no mesmo tivesse sido tomada sequer uma decisão provisória e sem que a Requerente tivesse contribuído para tal dilação.

  19. Neste mesmo sentido, já o Tribunal da Relação do Porto se pronunciou no processo nº 12342/18.4 T8PRT-P1, em acórdão datado de 10.9.2019, consultado em www.dgsi.pt, no qual se sumariou que: [...].

  20. Seguindo de perto o aresto supra citado, mas densificando a fundamentação, a desaplicação foi decidida pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo nº 528/16. T8VNG S1-P1, em acórdão datado de 21.11.2019, consultado em www.dgsi.pt, no qual se sumariou que: [...].

  21. Concluindo: a aplicação, aos processo de interdição pendentes, da regra que prevê como causa extintiva da instância a morte do beneficiário, sem salvaguardar a produção do interrogatório e da perícia medico legal é, no modesto entender da Requerente, inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito Democrático na vertente da violação da confiança e, mesmo em si mesmo considerado por violação do princípio da proporcionalidade e da tutela judicial efetiva. (artigo 20º da CRP) Nestes termos, e nos melhores de direito, a requerente vem requerer a desaplicação do artigo 904º, nº 1 da sai verão atual por violação do artigo 2º e 20º da CRP, requerendo a aplicação in casu da versão anterior do mesmo preceito, requerendo consequentemente, que a presente causa prossiga, independente da agora prontamente comunicada morte do beneficiário, para: - determinar a verificação da incapacidade alegada - determinar desde quando a incapacidade alegada se verificou».

  22. Em 6 de Maio de 2020 foram os autos com vista à Exma. Magistrada do Ministério Público, que neles exarou o seguinte: «Face ao falecimento do requerido BB, nos termos do art. 904º, nº 1, do CP. Civil, deveria ser declarada extinta a presente instância.

    No entanto, cumpre sublinhar que a petição inicial que deu origem aos presentes autos deu entrada a 11-09-2018, portanto quando ainda estava em vigor o processo de interdição e inabilitação, sendo que, no seu decorrer entrou em vigor o Regime do Maior Acompanhado.

    Por outro lado, constata-se que, antes do falecimento do requerido foi efectuado exame pericial ao requerido e elaborado o respectivo relatório com data a partir da qual o requerido se tornou incapaz. Com efeito tal poderá ser de importância fundamental para eventual anulação de actos praticados pelo requerido após a data de início da incapacidade.

    Assim, aderindo aos fundamentos de facto e de direito consignados nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10-09-2019 e 21-11-2019, entende-se adequado e justo averiguar a existência da incapacidade da requerida e a data provável do seu início, o que ora se promove».

  23. Em 18 de Maio de 2020 foi proferida sentença em cujo introito se decidiu, nos seguintes termos, a questão processual suscitada: «Conforme resulta do assento de óbito junto aos autos a 04/05/2020, o Requerido faleceu em …/04/2020.

    A Requerente requereu o prosseguimento dos autos com vista a se determinar a verificação da incapacidade alegada e determinar quando a mesma se verificou.

    Sustentou esse requerimento no facto de a presente ação ter sido instaurada ao abrigo da lei revogada pelo novo regime legal de acompanhamento de maiores, sendo que o art. 904º do CP. Civil, nessa redação, dispunha que dando-se o óbito do interditando após o interrogatório judicial e a realização da perícia médico-legal, o requerente dispunha da faculdade de peticionar que a causa prosseguisse para aferição da incapacidade e desde quando datava a mesma; que o novo regime legal revogou esta norma e aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor; que a aplicação do novo art. 904º, nº 1, do CP. Civil ao caso em apreço enferma de inconstitucionalidade, por força de violação do princípio da confiança da Requerente e por a prova produzida nestes autos dificilmente poder ser usada noutro processo, pondo em causa a possibilidade de anulação dos atos eventualmente praticados pelo beneficiário após a data da verificação da sua incapacidade.

    O Ministério Público promoveu o prosseguimento dos autos, averiguando-se a existência da incapacidade do Requerido e a data do seu início.

    Cumpre decidir: A presente ação foi instaurada em 11/09/2018, sob a forma de processo especial de interdição, de acordo com o regime legal vigente antes da entrada em vigor da Lei nº 49/2018, de Agosto, de 14 de agosto, que instituiu o regime jurídico do maior acompanhado, que ocorreu em 10/02/2019.

    À data da entrada da ação da ação o processo especial de interdições e inabilitações encontrava-se regulado nos arts. 891º a 905º do CP. Civil.

    Dispunha o nº 1, do art. 904º, do CP. Civil que: “1 - Falecendo o requerido no decurso do processo, mas depois de feitos o interrogatório e o exame, pode o requerente pedir que a ação prossiga para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada. ” A referida Lei nº 49/2018 alterou essa norma, passando a mesma a dispor que “a morte do beneficiário extingue a instância”.

    Por seu turno, o art. 26º, nº 1, da citada Lei 49/2018, prevê a sua aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.

    Ao não estabelecer um regime transitório que admitisse a possibilidade do prosseguimento da ação com o falecimento da pessoa a interditar, nos termos previstos na anterior redação do art. 904º, nº 1, do CP. Civil, quando a ação foi instaurada como processo de...

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