Acórdão nº 1/18.2IFLSB-A.L1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 04 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelGABRIEL CATARINO
Data da Resolução04 de Novembro de 2020
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

§1. – RELATÓRIO.

  1. O arguido, AA, com os sinais identificadores que constam do termo de constituição de arguido (fls. 75) recorre do despacho, datado de 24 de Abril de 2020 (fls. 88 a 90), prolatado pela Exma. Senhora Juiz presidente do Tribunal da Relação …, que desestimou o pedido de declaração de nulidade do mandado de busca, bem como das apreensões que haviam sido efectuadas na oficina onde exerce a profissão de advogado e que as mesmas lhe fossem devolvidas.

  2. É do sequente teor o despacho de indeferimento (sic): “Na sequência da emissão dos respectivos mandados, foram efectuadas no dia 4.03.2020 buscas no posto de trabalho e arquivo do Sr. Dr. AA, advogado, sito na Av. …, n.º …– 4.2, e 5 e 6, …, …, bem como na sua residência, sita na Rua …, n.º …, … .

    No decurso da busca ao posto de trabalho o Sr. Dr. AA foi constituído arguido.

    O arguido apresentou reclamação, nos termos do disposto no art. 77.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, tendo sido sobrestadas as diligências e selados os elementos apreendidos de que reclamou, pedindo que seja deferida a reclamação e declarada a nulidade do mandado de busca, bem como das apreensões, por serem ilegais e inválidas, declarando-se que todos os elementos apreendidos, bem como quaisquer cópias que possam existir, sejam desentranhadas dos autos e lhe sejam entregues, nos termos que constam de fls. 2 a 53, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido.

    O Ministério Público respondeu a esta fundamentação nos termos que constam de fls. 93 a 97, que aqui se dão como reproduzidos, concluindo pelo indeferimento da reclamação.

    O Mmª. Juiz de Instrução Criminal ordenou a subida dos autos a esta Relação.

    Conhecendo.

    Para tal efeito, iremos socorrer-nos do que foi já consagrado por esta Presidência em anterior reclamação da mesma natureza, mais concretamente na reclamação n.º 5432/15.7TDLSB.L1, onde se refere: “Dispõe o art. 76.º, n.º 1, do EOA, sob a epígrafe “Apreensão de documentos” que “Não pode ser apreendida a correspondência, seja qual for o suporte utilizado, que respeite ao exercício da profissão”, sendo este princípio (de proibição) alargado pelos n.ºs 2 e 3 deste mesmo preceito e reduzido pelo seu n.º 4 no “…caso de a correspondência respeitar a facto criminoso relativamente ao qual o advogado tenha sido constituído arguido”.

    O segredo profissional do advogado, abrangendo os documentos que se relacionem com os fatos sujeitos a sigilo, encontra-se definido e delimitado no art. 92.º do EOA e como resulta dessa mesma definição o seu escopo situa-se, primordialmente, na defesa das condições de exercício das funções de advogado e da relação cidadão-advogado, só de forma indireta se podendo considerar um “direito” de cada um dos profissionais dessa área.

    O segredo profissional do advogado, como claramente resulta das expressões utilizadas pelo legislador na sua configuração legal, a saber, “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional”, “A obrigação do segredo profissional existe”, “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional”, “O dever de guardar sigilo”, tem a natureza jurídica de um dever no exercício da profissão.

    Em conexão com os preceitos citados dispõe o art. 180.º, n.º 2, do CPP que “…não é permitida, sob pena de nulidade, a apreensão de documentos abrangidos pelo segredo profissional, ou abrangidos por segredo profissional médico, salvo se eles mesmos constituírem objeto ou elemento de um crime”.

    Como resulta do disposto no n.º 1, do art.º 92.º, do EOA, o sigilo profissional do advogado abrange, “...todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços...”, entre eles os expressamente aí identificados e como dispõe o n.º 3, do mesmo preceito, “O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo”.

    Atenta a ratio legis da consagração legal de tal segredo profissional e a necessidade de harmonizar a sua prossecução com os valores inerentes ao exercício da ação penal, depois de criar o valor segredo, na vertente de proibição de apreensão de documentos, a lei processual penal estabelece duas exceções a essa proibição, sendo uma de natureza genérica, referente à relação advogado/cliente e a segunda relativa à conduta do advogado, em si mesma.

    Pela primeira, consagrada no art.º 180.º, n.º 2, do C. P. Penal, é permitida a apreensão de documentos que “...constituírem objeto ou elemento de um crime” e pela segunda, consagrada no art.º 76.º, n.º 4 do EOA e art.º 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, é permitida a apreensão de correspondência comum e eletrónica quando a mesma “...respeitar a facto criminoso relativamente ao qual o advogado tenha sido constituído arguido”.

    Esta segunda exceção apresenta um pressuposto específico, de natureza processual, qual seja, a constituição do advogado como arguido, sendo que o elemento comum às duas exceções é constituído, grosso modo, pela sua conexão a fato que constitua crime, imputável ao cliente ou ao advogado.” Ora, no presente caso, o reclamante foi constituído arguido, pelo que, o pressuposto processual da segunda excepção consagrada no art. 76.º, n.º 4, do EOA e art. 17.º, da Lei n.º 109/2009, de 15/9, encontra-se preenchido.

    Incumbe, assim, ao Sr. Juiz de Instrução Criminal, também ele sujeito ao segredo profissional, analisar os documentos apreendidos, a fim de aferir do seu interesse para a investigação, ou, se pelo contrário, deverão ser devolvidos ao reclamante.

    A este propósito refere-se no Ac. da RE de 18/5/2006, proferido no âmbito do Proc. 54/2006-9, disponível in www.dgsi.pt, com o qual se concorda em absoluto, que: “É legalmente reconhecido “o interesse comunitário de confiança na discrição e reserva de determinados grupos profissionais, como condição do seu desempenho eficaz”, que a doutrina germânica maioritária considera como sendo o bem jurídico pelo tipo legal de crime de violação de segredo (Costa Andrade, Coment Conimb. art. 195º).

    Mas, continua aquele Comentador, na base daquele tipo legal de crime, está o dever de confidencialidade, em que se pretende proteger para lá do simples interesse comunitário da confiança na discrição e reserva, a privacidade em sentido material, a privacidade no seu círculo mais extenso, abrangendo não só a esfera da intimidade como a esfera da privacidade stricto sensu. A privacidade é aqui protegida na medida em que seja mediatizada por um segredo.

    O art. 135º do CPP concede um direito ao silêncio de todas as pessoas a quem a lei impuser ou permitir que guardem segredo sobre certas informações. A quebra do sigilo só pode ocorrer quando “se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante” (nº3). O que significa que, ainda segundo Costa Andrade, “a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despido do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo”.

    Acrescentaríamos ainda que a tutela legal do segredo, que rodeia a prova pessoal (por depoimento ou por declaração), deve cobrir igualmente a produção da prova real (coisas em sentido lato: documentos, suportes informáticos, correspondência…), sob pena de se conseguir por uma via, aquilo que a lei proíbe pela outra.

    E estas questões poder-se-ão colocar - e ir-se-ão colocar, certamente, com maior ou menor acuidade, consoante os casos e as situações – no momento da revelação dos documentos e demais coisas apreendidos.

    Mas esse momento processual, não é ainda este.

    Por outras palavras, a aquisição da prova para o processo, e sua respectiva incorporação, pressupõe dois momentos distintos: - o momento da apreensão da prova (real, porque é desta de que in casu se trata); - o momento da revelação da prova.

    A apreensão precede a revelação dos conteúdos. E é só neste segundo momento, que ainda não ocorreu processualmente, que a questão dos segredos se poderá colocar.

    É que para o juiz de instrução não existe “segredo”, na medida em que ele também está coberto pelo segredo.

    Assim, em resumo, e voltando ao início das questões suscitadas no recurso, compete ao M.P. decidir, num primeiro momento - o do inquérito –, segundo a sua perspectiva (de titular do inquérito), o que pode/deve ser apreendido, o que se revela com interesse para a prova; compete, por seu turno, ao juiz de instrução, controlar/garantir a regularidade das apreensões.” A reclamação prevista no n.º 2, do art. 77.º, do EOA, visando garantir a preservação do segredo profissional, não pode corresponder a uma substituição da função do JIC, a quem caberá fazer a seleção dos documentos susceptíveis de servirem a prova dos crimes sob investigação, dado que quanto a ele, como supra referido, não há “segredo”.

    Tal reclamação apenas poderá obstar a que seja colocado em perigo de forma flagrante e injustificada o segredo profissional.

    Situação que não se vislumbra no presente caso.

    Acresce que, as questões suscitadas pelo reclamante da nulidade das buscas e apreensões não são susceptíveis de ser conhecidas no âmbito desta reclamação, devendo as mesmas terem sido objecto de arguição pela via processual adequada e perante a 1.ª instância.” 3. Do despacho transcrito recorre, o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo dessumido a fundamentação no epítome que queda extratado.

    “1ª A decisão em análise, proferida pela Presidente da Relação de Lisboa, na sequência da reclamação apresentada pelo Recorrente nos termos do disposto no artigo 77.° do EOA, é recorrível, na medida em que: (i) a mesma foi proferida no âmbito de um processo-crime; (ii) o CPP consagra o princípio fundamental da recorribilidade de todas as decisões judiciais; (iii) não está expressamente prevista a irrecorribilidade da decisão em causa; e (iv) por força do princípio da legalidade, está vedado o recurso à analogia, na medida...

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