Acórdão nº 76/11.5GAOFR.C2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 01 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelCLEMENTE LIMA
Data da Resolução01 de Outubro de 2020
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Processo n.º 76/11.5GAOFR.C2.S1 Recurso penal Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I 1.

Nos autos de processo comum em referência, a arguida, AA – filha de BB e de CC, natural de ..., ..., nascida a 00 de ... de 0000, divorciada, com residência na Rua ..., 000, ..., ..., ... –, precedendo audiência [levada nos termos prevenidos no artigo 472.º, do Código de Processo Penal (CPP)], foi condenada, em 1.ª instância, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, decorrente do cúmulo jurídico das penas de: (i) 4 anos de prisão, suspensa condicionadamente na sua execução por igual período de tempo, em que foi condenada nestes autos, por acórdão de 2 de Junho de 2016, transitado em julgado, pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 alínea c), do Código Penal (CP); (ii) 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, em que foi condenada nos autos de processo comum n.º 1898/09.2JAPRT, por acórdão de 28 de Maio de 2015, transitado em julgado a 17 de Janeiro de 2018, pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto no artigo 131.º, do CP.

  1. A arguida interpôs recurso do acórdão cumulatório para o Tribunal da Relação de Coimbra.

    Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): «1. O Tribunal "a quo" bastou-se com a situação pessoal da Arguida AA apurada no âmbito do processo 76/11.5GAOFR, em 2 de Junho de 2016 (conforme factos provados n.ºs 1 a 3), não cuidando, como podia e devia, de actualizar os termos quer das condições económicas, sociais e familiares daquela, quer da sua conduta posterior às condenações, ambas demonstradas nos relatórios actualizados da Direcção - Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, elaborados nos dois processos.

  2. A decisão recorrida limita-se a fundamentar a decisão através da indicação dos factos dados como provados apenas no processo n.º 1898/09.2JAPRT (incluindo a situação pessoal da arguida em 2/06/2016, data da sentença de primeira instância), o que leva à fixação de uma pena desproporcional.

  3. Considerando a matéria de facto dada como provada no âmbito do processo n.º 76/11.5GAOFR temos que a Arguida apresentava em 2010/2011 uma situação de saúde pela alternância de estado depressivo com euforia (surgido no seguimento dos factos praticados no âmbito do processo 1898/09.2JAPRT), que a conduziu a um período de grande fragilidade emocional e de desestruturação económico-financeira (gastou todas as poupanças que tinha).

  4. Não sabendo à data reagir e superar as dificuldades ao nível da gestão dos recursos financeiros, aproveitou-se do facto de ser procurada pelos Ofendidos para serviços espirituais, na sua residência, erradamente convenceu-os a entregar-lhe dinheiro e ouro.

  5. Mas esta fase tratou-se de um período controverso na sua vida, do qual se arrepende, daí nunca mais se ter dedicado a tal actividade ("serviços espirituais").

  6. Já passaram desde a prática dos factos cerca de 8/9 anos.

  7. Tendo em conta a matéria de facto dada como provada no processo nº. 1898/09.2JAPRT temos que o Crime de Homicídio simples, na forma tentada, pelo qual a Arguida foi condenada, ocorreu corria o ano de 2009 (isto é, há 10 anos) e decorreu no contexto de violência doméstica, o qual deverá ser tido em conta.

  8. Ou seja, ocorreu num circunstancialismo muito específico - num contexto de violência doméstica, em que uma mãe vê a sua única filha a ser agredida física e psicologicamente durante um longo período de tempo (cerca de 9 anos) e até mesmo abusada sexualmente, sentindo-se perdida, sem capacidade de terminar com o sofrimento da filha, e claro está das duas netas menores.

  9. Contudo, decorre ainda da matéria dada como provada em tal processo que a imagem social e familiar da Arguida AA não foi afectada negativamente, beneficiando, aliás, de sentimentos de compaixão e simpatia, sendo pessoa bem aceite e integrada no meio social em que vivia.

  10. E não pode o Tribunal esquecer-se que efectivamente o Supremo Tribunal de Justiça proferiu recentemente (20/09/2018) o Acórdão n.º 1324/15.8T9PRT.P1.S1, no qual considerou que desde o surgimento do Acórdão de Fixação da Jurisprudência n.º 11/2009 (o qual foi aplicado no processo n.º 1898/09.2JAPRT) até hoje já decorreram dez anos e nesse período de tempo existiu um esforço redobrado de reflexão e ponderação que conduziu a um entendimento que não se coaduna com o fixado naquele acórdão, entendendo que se deve afastar tal jurisprudência, através de uma argumentação e fundamentação sólida e totalmente cristalina.

  11. Na actualidade a conduta pela qual a Arguida AA foi condenada é entendida pelo Supremo Tribunal de Justiça como não punível, porque não preenche o tipo legal do Crime de Homicídio, na forma tentada, afastando-se por isso da solução adoptada pelo acórdão n.º 11/2009.

  12. A acrescer ao quanto vem dito, dos factos dados como provados, temos que até aos 00 anos de idade a Arguida AA não tinha tido qualquer contacto com a justiça e daí o seu certificado de registo criminal estar imaculado (ponto 75 dos factos dados como provados no processo 76/11.5GAOFR e ponto 71 dos factos dados como provados no processo 1898/09.2JAPRT).

  13. Só no período de finais de 2009 a Abril de 2011, a arguida AA assumiu condutas ilícitas, ao que não é alheio o seu estado de vida conturbado (estamos a falar de um arco temporal de cerca de 2 anos).

  14. A partir de Abril de 2011, não é conhecida à Arguida qualquer outra condenação, dado que a mesma mudou o rumo da sua vida para melhor, o que resulta, aliás, do teor do relatório social, que não foi valorado pelo Tribunal "a quo".

  15. Podemos assim concluir que dos factos praticados pela arguida e pelos quais a mesma foi condenada em ambos os processos não decorre uma tendência para o crime. Estamos perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Logo, não faz qualquer sentido aplicar um efeito agravante dentro da moldura do concurso.

  16. Soma-se o facto de a Arguida evidenciar espírito crítico perante as suas condutas em ambos os processos e não se rever nas mesmas, o que se torna evidente tendo em conta que decorreu já um lapso temporal significativo da prática dos crimes em apreço, o que foi esquecido pelo Tribunal "a quo".

  17. Actualmente a arguida tem 00 anos de idade (nasceu em 00/00/0000), ultrapassou o quadro depressivo, vive em liberdade, está inserida na sociedade, goza de imagem favorável no meio em que vive e tem uma postura adaptada aos normativos legais, logo entendemos que a pena a aplicar à Arguida AA deve situar-se no limite mínimo da moldura, isto é, cinco anos.

  18. Não havendo circunstâncias suficientes no acórdão de que se recorre para ser revogada a suspensão da execução das penas de prisão aplicadas à Arguida, deve a pena única ser suspensa (suspensão da execução da pena de prisão), já que a execução da pena de prisão não se revela necessária nem mais conveniente, uma vez que a arguida tem um modo de vida que demonstra uma tentativa clara de reintegrar-se na sociedade, respeitando as regras por ela ditadas, sendo que é esta própria sociedade que entende estarem suficientemente protegidos os bens jurídicos lesados pela prática dos dois crimes 19. Sabendo que a arguida AA, após cerca de 10 anos (face à primeira situação) e 8/9 anos (face à segunda situação) sobre a prática dos factos criminosos, tem vindo a refazer a sua vida dentro da legalidade e sabendo que o longo período de tempo decorrido atenua as exigências de prevenção geral, pois a imagem social da arguida continua a ser abonatória e a beneficiar de uma adequada inserção social, dispondo ainda de apoio da família, consideramos que é possível fazer um juízo de prognose favorável /previsibilidade e dar uma nova oportunidade à Arguida aplicando-lhe uma pena de prisão de cinco anos, a qual deve ser suspensa por igual período.

  19. Note-se, por último, que, na liquidação da pena única, deve ter-se em conta os descontos temporais, nomeadamente o tempo que a Arguida AA esteve em prisão preventiva no âmbito do processo 1898/09.2JAPRT (de 27/11/2009 a 10/03/2010) e o tempo que a arguida AA já cumpriu das duas penas.

  20. Sem prejuízo de tudo o quanto vem alegado, importa atender ao facto de estar em causa a substituição de uma pena suspensa por uma pena de prisão.

  21. Ora, entendemos, à semelhança de alguma jurisprudência e doutrina, que a pena de prisão e a pena de substituição são penas de espécies diferentes que não podem ser cumuladas, ao menos sem previamente o tribunal competente tenha determinado a sua revogação nos termos do art.s 55.º e 56.º do Código Penal.

  22. Isto porque a lei expressamente impõe que a alteração da natureza da pena, a qual tem graves e severas repercussões na esfera jurídica da condenada, só pode ocorrer por virtude de um comportamento culposo da própria condenada.

  23. Uma interpretação contrária àquela viola o Princípio do non bis in idem (art. 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa), quer formal, quer material.

  24. Não é, assim, aceitável que a pena única conjunta se mostre em concreto mais prejudicial ao arguido que a acumulação material das penas, como é o caso de se revogar uma ou mais penas de substituição, e se formar uma nova pena única conjunta de prisão efectiva.

  25. Não é indiferente para a Arguida AA ver a sua pena passar de uma pena suspensa para uma pena de prisão efectiva, o que colocará certamente em causa o seu processo de ressocialização.» 3.

    O recurso foi admitido por despacho de 22 de Maio de 2019.

  26. O Ministério Público em 1.ª instância respondeu ao recurso, defendendo a confirmação do julgado.

  27. Continuados os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, a Senhora Juíza Desembargadora relatora, por decisão sumária de 18 de Março de 2020, excepcionou a incompetência material daquele Tribunal para o conhecimento do recurso, determinando a remessa dos...

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