Acórdão nº 6610/16.7T8GMR.G1.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelCATARINA SERRA
Data da Resolução17 de Dezembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO AA e BB, menores, representados por sua mãe, CC, instauraram acção declarativa com processo comum contra DD Seguros, S.A., pedindo a sua condenação no pagamento: a) a cada um, pelo dano da morte do falecido, € 35.000,00; b) a ambos, na medida da proporção que lhes cabe por herança, a quantia global de € 60.000,00, a título de compensação pelo sofrimentos (danos próprios da vítima) por que passou o falecido entre o embate e o momento da morte; c) à autora BB a quantia de € 50.000,00 como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela perda do pai; d) ao autor AA a quantia de € 50.000,00 como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela perda do pai; e) à autora BB a quantia de € 61.950,00 como compensação pela perda de alimentos; f) ao autor AA a quantia de € 46.950,00 como compensação pela perda de alimentos, tudo acrescido de juros legais a contar da citação e até efectivo e integral pagamento.

Alegam, em síntese, que são filhos e únicos herdeiros de EE, falecido a 27/11/2014, cerca das 19h30, o qual, nessa data, por instruções da sua entidade patronal, transportou no veículo de matrícula ...-...-FT, que conduziu, uma carga de areia para a Rua …, …, …, tendo em vista a construção de um muro. Aí chegado, travou o veículo, saiu da cabine, deixando-o a trabalhar e accionou o mecanismo que faz levantar a báscula para descarregar a areia; nesses instantes o veículo descaiu para a esquerda em sentido descendente, esmagando-o com o taipal lateral da caixa de carga contra um muro que se encontrava à esquerda.

Referem que o traçado da via é recto, com inclinação descendente de cerca de 9%, considerando a orientação da frente do veículo, não existem bermas, nem passeios, sendo ladeada de edificações e o muro em construção do lado direito, com largura aproximada de 4 metros. No momento chuviscava e o piso encontrava-se molhado.

Em consequência do acidente, o pai sofreu lesões que lhe determinaram a morte.

O pai proporcionava-lhes momentos de grande felicidade, companhia e orientação, era muito carinhoso, passava a maior parte do tempo livre com eles. O autor AA admirava muito o pai e acompanhava-o sempre que podia.

O pai tinha 30 anos, era robusto, saudável, dinâmico, empreendedor, com grande energia e gosto pela vida, dedicado à família e amigos, muito querido e socialmente considerado.

No interregno que mediou entre o embate e a morte, cerca de 30 minutos, o progenitor visualizou e apercebeu-se da iminência da morte, sentiu dores físicas decorrentes das lesões e o esmagamento que impediu a sua libertação e pedido de ajuda. No momento do acidente e após a sua ocorrência conservou a consciência e a lucidez e viveu o desespero de deixar os filhos.

Acrescentam que o progenitor exercia actividade profissional na sociedade Construções FF, Lda., como … da indústria da construção civil, auferindo o salário mensal de € 505,00 acrescido de € 116,84 de subsídio de alimentação mensal, no valor anual de € 7.070,00. Entregava à ex-cônjuge aproximadamente € 300/mês. Tinha expectativa de vir a auferir, a breve trecho, salário superior, a integrar a gerência da empresa em 2024 e de ficar proprietário de 50% das quotas da sociedade, sendo expectável que os rendimentos duplicassem nessa ocasião e que, no intervalo, o salário aumentasse, no mínimo, € 30/mês. Assim, contribuiria com metade para a educação e alimentos dos filhos no valor global de € 22.950,00 para cada um entre 2014 e 2024, momento em que teriam 17 e 12 anos. Estes esperavam receber € 500,00 por mês até perfazerem 25 anos, o que corresponde a € 24.000,00 e € 39.000,00 respectivamente.

A ré ofereceu contestação contrapondo que tomou conhecimento do sinistro no âmbito da apólice dos acidentes de trabalho e, do que foi possível apurar quanto às causas do sinistro, o malogrado pai dos autores conduzia o veículo, parou e saiu da respectiva cabine e, quando se encontrava a proceder a uma operação de descarga de areia, a viatura descaiu e esmagou-o com a parte lateral da caixa de carga, provocando de imediato o seu óbito. Entende que se trata de um acidente de trabalho e não de viação e que o mesmo não tem conexão com os riscos específicos do veículo. Acrescenta que, na hipótese de se tratar de um acidente de viação, não poderia ser responsabilizada, pois o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel exclui do mesmo a garantia pelos danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável, assim como os danos decorrentes daqueles, bem como os danos materiais causados ao condutor, entre outros, aos seus descendentes e às pessoas identificadas nos artigos 495º, 496º e 499º do C.C. que beneficiem de pretensão indemnizatória decorrentes dos vínculos com aquele.

Acrescenta que o acidente ficou a dever-se ao facto do pai dos autores não ter accionado correctamente os meios de retenção do veículo, nem ter tomado as medidas necessárias para que não se deslocasse enquanto estava parado, já que os calços dos travões tinham sido mudados, o sistema de travagem estava a funcionar em perfeitas condições. Acrescenta que o falecido não tinha experiência na condução da viatura, estava com excesso de peso, colocou-se numa posição com pouco espaço, ficando entre a viatura e o muro, denotando falta de cuidado nas medidas de segurança para precaver qualquer imprevisto.

Refere ainda que o valor da pensão mensal que liquidava para as despesas dos filhos era de € 150,00 e que não podem peticionar um valor já atribuído em sede de acidente de trabalho.

No exercício do contraditório quanto às excepções os autores argumentaram que o acidente se deveu ao risco inerente à circulação do veículo, designadamente por destravamento, não podendo o seu pai considerar-se condutor, pois não se encontrava ao volante do veículo no momento do acidente. Entendem ainda que o motorista de um veículo aproveita, como terceiro, da responsabilidade objectiva estabelecida na lei desde que sofra acidente relacionado com os perigos próprios do mesmo.

Foi dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto da causa e foram enunciados os temas da prova.

Após realização de julgamento foi proferida sentença, cuja parte decisória se reproduz na íntegra: “Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação não provada e improcedente, absolve a Ré DD Seguros, S.A. dos pedidos formulados pelos Autores AA e BB, representados por sua mãe CC.

Custas da ação a cargo dos Autores.

Registe e notifique”.

Não se conformando com esta sentença, vieram os autores dela interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães.

Por Acórdão proferido em 30.05.2019, acordaram os juízes desta Relação em “julgar improcedente a apelação e em confirmar integralmente a decisão recorrida”.

Sem se conformar com este Acórdão e pugnando por uma decisão de condenação da recorrida na obrigação de indemnização nos termos inicialmente peticionados ou, quando assim se não entenda, ao abrigo das regras que estabelecem o concurso entre a culpa e o risco, vieram os autores interpor recurso de revista excepcional com fundamento no artigo 672.º, n.º 2, al. a), do CPC.

Formulam as seguintes conclusões: “A. O Douto acórdão recorrido errou na interpretação e aplicação do Direito, nomeadamente do art. 503º e 505º do C.C..

  1. Em primeiro lugar, porque perante a factualidade assente, a solução jurídica é da sua integração na responsabilidade pelo risco, com consequente obrigação de indemnizar pela ré, inexistindo qualquer contribuição do lesado para o resultado, já que, como se evidenciou, não podia o Tribunal tomar o facto provado 'o veículo descaiu' pelo entendimento de que ele tenha rodado ('rodasse'), como supra se evidenciou.

  2. E ainda que assim se não entenda, está em causa a abordagem da controversa questão da possível concorrência entre a culpa do lesado e os riscos próprios da viatura na produção do evento, que tem merecido diferentes respostas ao nível doutrinal e jurisprudencial ao longo dos anos e que merece a apreciação deste Alto Tribunal.

  3. Se, por um lado, a doutrina e jurisprudência tradicionais têm vindo a acolher a tese de que a existência de culpa do lesado exclui, em absoluto, a aplicação das regras de responsabilidade civil objectiva ou pelo risco, a verdade é que uma corrente progressista ou actualista tem-se inclinado, recentemente, no sentido de acolher a interpretação segundo a qual o art. 505º do C.C. consagra a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.

  4. Pese embora não se reconheça, in casu, que o falecido pai dos recorrentes tenha tido culpa e que essa culpa tenha contribuído exclusivamente para a ocorrência do acidente, a questão - nesta sede – também a dirimir será também a da integração no art. 505º do C.C. das regras da concorrência entre a culpa do lesado e os riscos do veículo.

  5. No caso concreto, dúvidas inexistem que os riscos próprios do veículo automóvel contribuíram de forma decisiva para a ocorrência do evento danoso, pois que, o que vem dado por provado é que o mesmo descaiu – e foi tal descaimento que determinou o esmagamento e morte do pai dos recorrentes.

  6. O Tribunal a quo olvidou uma interpretação mais progressista e actualista dos artigos 503º, 505° do Código Civil, das directivas comunitárias, da doutrina e da jurisprudência, decidindo em sentido incompatível.

  7. De acordo com uma interpretação correcta e actual do artigo 505° do Código Civil, sempre, em último caso, ao apuramento concursal das causas do dano à norma da repartição do dano (570° do Código Civil)”.

A recorrida apresentou, por seu turno, contra-alegações, através das quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.

O despacho de admissão foi proferido em 2.09.2019.

Já neste Supremo Tribunal de...

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