Acórdão nº 1331/19.1T9LSB-A.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 11 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelLOPES DA MOTA
Data da Resolução11 de Dezembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1.

A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) vem, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1 e 2, 399.º, 401.º, n.º 1, alínea d), 411.º e 412.º, do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 09.05.2019, que, quebrando o segredo profissional, decidiu dispensar a recorrente da observância do sigilo a que está obrigada.

  1. Apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões: «1. Por Ofício datado de … .05.2019, a CMVM, sem que tivesse sido notificada da douta promoção por parte do titular da ação penal tendente à quebra do segredo profissional, nem dela tendo tomado conhecimento por qualquer outro modo, foi notificada de cópia do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação Lisboa, datado de … .05.2019, que decidiu dispensar a CMVM da observância do dever de segredo nos autos de inquérito do Processo n.º 1331/19.1T… .

  2. Não se conformando com tal decisão, vem a CMVM, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1 e 2, 399.º, 401.º, n.º 1, alínea d), 411.º e 412.º, todos do CPP, apresentar recurso do referido Acórdão do Tribunal da Relação Lisboa, datado de 09.05.2019.

  3. O Tribunal da Relação funcionou como primeira instância de decisão quanto à justificação da quebra do segredo profissional da CMVM, pondo termo ao incidente.

  4. Ora, não podendo ser atribuída ao objeto do presente processo outra qualificação que não seja a de uma decisão proferida em primeira instância, a mesma terá de ser obviamente considerada recorrível nos termos do disposto no artigo 399.º e 432.º, n.º 1, alínea a) do CPP.

  5. De outro modo, a norma resultante da interpretação conjugada dos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal e do artigo 432.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a decisão do Tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do disposto no artigo 135.º é irrecorrível, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP.

  6. Mais se invocando a inconstitucionalidade, para os devidos efeitos legais, da norma contida no n.º 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior pode não permitir a uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão o exercício do direito ao contraditório e os direitos de defesa constitucionalmente garantidos no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, e simultaneamente não admitir o recurso da decisão proferida, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP.

  7. O Acórdão do Tribunal a quo enferma de nulidade, ao abrigo do disposto nos artigos 119.º, alínea e), e 379.º, n.º 1, alínea c), in fine, todos do CPP.

  8. Constata-se que, por força das restrições ao âmbito de cognição do Tribunal inerentes ao princípio da estrutura acusatória do processo consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, bem como das limitações impostas pelo princípio do pedido, padece o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de nulidade por violação das regras de competência material do Tribunal e ainda por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 119.º, alínea e), e 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, respetivamente.

  9. O Acórdão proferido em … .05.2019 pelo Tribunal da Relação de Lisboa não respeitou os limites e âmbito de cognição do Tribunal, conduzindo à nulidade do Acórdão por violação do princípio da estrutura acusatória do processo, do princípio do pedido, e das regras de atribuição de competência materialmente jurisdicional.

  10. O princípio do pedido impõe que também no incidente de quebra de segredo profissional da CMVM o Tribunal não possa exceder a iniciativa do Ministério Público quanto à conformação e extensão dos elementos e informações solicitadas à CMVM, na qualidade de requerida e escusante.

  11. A estrutura acusatória do processo penal está dependente da subordinação ao objeto definido pelo Ministério Público na fase de inquérito de que é titular, podendo praticar, com tendencial amplitude e autonomia, todos os atos e diligências probatórias necessários à investigação da notícia do crime (artigo 267.º do CPP).

  12. O Tribunal da Relação de Lisboa ultrapassou o impulso da promoção do Ministério Público quanto ao objeto e extensão da quebra do segredo profissional, decidindo para além do pedido do Ministério Público, nos termos e para os efeitos do artigo 119.º, alínea e), e do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), in fine, ambos do CPP, ao decidir que deveria a CMVM «fornecer ao Ministério Público todos os elementos e informações por este já solicitados, bem como todos os demais que se vierem a mostrar necessários para a investigação em causa».

  13. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa excedeu a delimitação do objeto do incidente de quebra de segredo profissional como definido pelo Ministério Público, e que aí se estabilizou, padecendo de nulidade insanável por violação das regras da competência material (artigo 119.º, al. e), do CPP), e ainda de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos do 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP. 14. Razão pela qual, para os devidos efeitos legais, não se poderá deixar de invocar desde já a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.os 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual, no âmbito da promoção do Ministério Público para quebra de segredo profissional, pode o Tribunal superior ultrapassar o objeto do pedido formulado pelo Ministério Público, por violação da estrutura acusatória do processo, prevista no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

  14. O Acórdão do Tribunal a quo enferma de irregularidade, ao abrigo do disposto nos artigos 399.º, 410.º, n.º 3 e 432.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP.

  15. Após a invocação do segredo profissional perante o DIAP, o mesmo deu origem a um incidente de quebra de segredo profissional, nos termos do disposto no artigo 135.º do CPP, sem que, em momento prévio à prolação do Acórdão, a CMVM tenha sido notificada de qualquer momento da respetiva tramitação processual: i) a CMVM não tomou conhecimento de que a quebra do segredo foi requerida; ii) a CMVM não foi notificada para se pronunciar sobre o pedido de quebra.

  16. O disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP institui um regime de quebra de segredo profissional que, como já salientou o Supremo Tribunal de Justiça, apresenta “dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas”: um primeiro momento, que versa sobre a legitimidade ou ilegitimidade da escusa; um segundo momento, que versa sobre a justificação da quebra do segredo profissional (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.10.2014, processo n.º 1233/13.5YRLSB.S1).

  17. Não basta que o sujeito obrigado ao segredo seja ouvido no primeiro momento da tramitação, já que cada momento de tramitação responde a questões distintas: uma coisa é participar na invocação e averiguação da legitimidade da escusa com base em segredo profissional (primeiro momento); outra é participar no processo de ponderação dos interesses em confronto para efeitos da quebra do segredo profissional (segundo momento).

  18. Tratando-se de “dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas”, o titular dos interesses em causa (nomeadamente o sujeito obrigado ao segredo profissional que invocou a escusa) tem o direito de participar em qualquer dos momentos do processo decisório, quer (naturalmente) invocando a escusa e sustentando a sua legitimidade quer, posteriormente, pronunciando-se sobre a verificação (ou não) dos pressupostos de que depende a quebra do segredo.

  19. É evidente que quem invoca escusa com base em segredo profissional deve participar no processo de ponderação dos interesses em conflito, já que, devendo tal ponderação ser feita em concreto, é ele quem, enquanto sujeito do dever, está em melhores condições para expor perante o tribunal superior as questões em causa – não se podendo aceitar que a decisão de ponderação seja orientada apenas pelos fundamentos de quem requer a quebra do segredo.

  20. No caso em apreço, uma vez que não existe um organismo representativo da profissão com poderes de tutela do segredo profissional da CMVM, é evidente que a aplicação (com as devidas adaptações) do artigo 135.º do CPP ao incidente de quebra de segredo profissional da CMVM, impõe que a CMVM seja ouvida, primeiro, na apreciação da legitimidade da sua escusa e, depois, na apreciação da justificação para a (eventual) quebra de segredo.

  21. Com efeito, salvo o devido respeito, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa violou o direito de acesso aos tribunais e ao direito, na sua dupla vertente de direito de defesa e de direito a um processo equitativo, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º, n.os 1 e 4 da CRP, uma vez que, sendo a CMVM escusante e destinatária da decisão proferida pelo Tribunal a quo, apenas teve conhecimento do processo com a notificação do referido Acórdão, não tendo tido oportunidade de se pronunciar quanto à quebra do segredo profissional a que se encontra sujeita em momento anterior à decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.

  22. O direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo constitucionalmente consagrados impõem que fosse dada à CMVM a oportunidade de se pronunciar, de invocar as suas razões de facto e de direito, de poder influenciar a decisão da causa quanto à justificação para a quebra do segredo profissional, dando cumprimento ao princípio do contraditório, que constitui uma decorrência do referido direito de acesso...

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