Acórdão nº 3/19.1YFLSB de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelHELENA ISABEL MONIZ
Data da Resolução10 de Dezembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I Relatório 1.

AA, advogado, veio interpor recurso contencioso da deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 4 de dezembro de 2018, que decidiu “por unanimidade não tomar conhecimento da reclamação apresentada pelo Exmo. Senhor Dr. AA, por falta de legitimidade do reclamante, sendo certo também que o despacho sob censura não justifica qualquer anulação ou modificação oficiosa”.

Defende, em suma, para o efeito que ação disciplinar dos Juízes não é apenas da titularidade do CSM, mas um direito de qualquer cidadão do povo, porque os juízes exercem o poder judicial em nome do povo.

Mais defende que o direito ao juiz isento e probo é um direito fundamental que a Constituição confere (art. 20.º, n.º 4) e uma infração dolosa do EMJ impõe a reparação pelo ato ilícito, podendo e devendo ser considerada ressarcitória a decisão disciplinar sobre o juiz claudicante.

Por último, defende que o dolo da Juíza participada é manifesto, tanto pela escrita do despacho em que se referiu ao recorrente como ignorante da lei e do procedimento, como pela exatidão de quaisquer argumentos de uma reclamação que veio a indeferir de tabela e contra os dados de facto processuais.

  1. Cumprido o disposto no art. 174.º, n.º 1, EMJ, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) apresentou resposta onde, em súmula, sustentou que o recorrente carece de legitimidade para apresentar o presente recurso, porque “não assiste ao participante disciplinar nenhum concreto e individualizado direito subjetivo de, por via graciosa ou contenciosa, levar ao exercício de ação disciplinar”. Entende que em matéria disciplinar o direito dos cidadãos em geral – e também dos Advogados constituídos – esgota-se na faculdade de participar ao CSM factos ou decisões suscetíveis de constituir infração disciplinar. Entende ainda que no exercício das suas competências em matéria disciplinar, o CSM não prossegue a defesa de qualquer interesse pessoal e individual, mas sim a defesa do interesse publico da sã administração da Justiça.

    E concluiu no sentido da rejeição liminar do recurso interposto por falta de legitimidade do recorrente.

  2. Notificado nos termos do art. 176.º, do EMJ, o recorrente não apresentou alegações.

  3. O Conselho Superior da Magistratura apresentou alegações em que, no essencial, reafirmou os argumentos anteriormente expostos na resposta.

  4. O Ministério Público juntou alegações considerando: “certo é não ser o Autor titular de qualquer interesse directo, pessoal e legítimo na anulação do acto administrativo que impugna. Acresce não invocar o Recorrente qualquer vício suscetível de determinar a anulação, que peticiona, da deliberação impugnada, ante se limitando a tecer considerações sobre a conduta processual que entende ter sido a da Mma. Juiz, contra a qual participou disciplinarmente”, e concluindo que “carece o Recorrente de legitimidade para o presente Recurso que, como tal, deverá ser rejeitado”.

  5. Notificado o parecer do Ministério Público, o recorrido nada disse. O recorrente veio responder considerando que, na linha do decidido pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) no caso “Ramos Nunes de Carvalho e Sá v. Portugal”, e em cumprimento do disposto no art. 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), uma “decisão disciplinar judicial de ordem e conformidade burocrático-administrativa tem de ser revista por um órgão jurisdicional, em ordem à protecção e defesa dos direitos humanos”. Considera ainda que, pese embora a doutrina do TEDH tenha sido desenvolvida em ordem à proteção da defesa, o mesmo se deve aplicar ao ofendido, relativamente a uma decisão burocrático-administrativa de arquivamento. Considera ainda que o entendimento de que não tem legitimidade para reclamar da deliberação do Conselho Superior da Magistratura constitui uma interpretação inconstitucional do disposto no art. 164.º, n.º 1, do EMJ.

    Após os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

    II Fundamentação A.

    Valorada a documentação junta aos autos, consideram-se demonstrados os seguintes factos relevantes para a decisão: 1.

    O Exmo. Advogado Dr. AA veio, por requerimento de ..., dirigido ao Venerando Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), “apresentar queixa disciplinar contra a Ex.ma Senhora Dra. BB, Mma. Juíza de Direito, provida no Tribunal Judicial da Comarca de ..., …” pelos seguintes factos: “1 – No Proc. ..., enquanto R., o signatário solicitou a repetição da colheita de autógrafo do A., em face do relatório inconclusivo do LPC, e que referia precisamente não poder pronunciar-se sobre se a assinatura suspeita era ou não do próprio, porque “a análise comparativa da escrita da assinatura questionada... foi extremamente limitada... pelo traço irregular, trémulo e hesitante dos autógrafos”.

    2 - A Mma. Juíza, em face do requerimento, despachou: “o requerimento em apreço demonstra a falta de conhecimento quer da lei quer do procedimento que foi efetivamente adotado na recolha de autógrafos: nem um, nem outro, porém, lhe aproveitam – a lei é conhecida do senhor advogado que subscreve o requerimento – essa é uma das razões porque se exige como obrigatória a constituição de advogado – o auto de recolha de autógrafos consta dos autos e foi presidido por juiz, neste caso a signatária; não pode, pois, o senhor advogado afirmar, sob pena de litigância de má-fé, que os autógrafos foram recolhidos na secretaria, porque o não foram; e das duas uma, ou suscitava a falsidade do auto de recolha de autógrafos – o que não fez – ou terá de se abster de tecer tais declarações, sob pena de se ter que enquadrar legal e devidamente as mesmas: a recolha de autógrafos respeitou de forma integral a lei; não há mais nada a determinar nesta matéria” (sublinhado do Exmo. Exponente).

    3 – Demonstrou a Mma. Juíza, desde logo, uma posição de acrimónia na fórmula inicial do despacho, quando imputa ao signatário ignorância da lei.

    4 – Parece que a Mma. Juíza ficou alterada com a circunstância de o signatário ter dito no requerimento que a recolha de autógrafos em questão fora realizada na secretaria por leigos.

    5 – Acrescentou o signatário, aliás, que esses leigos, como escreveu, não tinham qualquer dever técnico de melhor desempenho do que aquele que tiveram, no entanto insuficiente para o bom resultado do exame grafológico.

    6 – E quando referiu a secretaria não quis, nem do requerimento se pode retirar, que a colheita de autógrafos não tenha sido presidida por juiz: aconteceu, como é natural, fora do gabinete, como ato processual de secretaria, presidido pelo juiz no caso de assim o entender, mas até pode nem sequer estar presente, simplesmente ordená-lo, não havendo qualquer ilegalidade se for praticado apenas por oficiais de justiça.

    7 – Em todo o caso, a circunstância deste despacho da Mma. Juíza, embora deselegante, não constituiria por si só matéria disciplinar.

    8 – Acontece que a mesma Mma. Juíza, no proc. ..., em que o signatário patrocina o A., soldado da … vítima de violentíssimo atropelamento, quando estava no exercício de funções, cujas lesões contraídas o levaram à reforma por invalidez, despachou o indeferimento de uma reclamação apresentada contra o relatório do IML, escamoteando-a de tal maneira que se lhe refere como não apresentada.

    9 – Ora, a reclamação em causa foi remetida ao tribunal poucas horas depois de o A. ter sido notificado do relatório pericial, onde o Exmo. Perito referiu expressamente não haver lugar a respostas aos quesitos por não lhe terem sido apresentados, quando, na verdade, logo o foram no final da petição inicial.

    10 – Assim, a circunstância de a Mma. Juíza ignorar acintosamente quaisquer das duas circunstâncias – formulação na petição inicial dos quesitos e reclamação por não lhe ter sido dada resposta – ínsita no pedido que o A. apresentou ao tribunal de serem remetidos ao Exmo. Perito Médico, para lhes responder (precisamente os quesitos de que disse não ter tido conhecimento) configura, no entender do signatário, uma infração disciplinar.

    11 – Com efeito, este despacho de indeferimento, de sobranceiro desprezo, que não tem base de facto, só pode justificar-se, na fórmula negativa que elegeu, como prolongamento da acrimónia inicial do primeiro despacho, aqui trazido à colação.

    12 – É assim, no correlato de um com outro dos despachos, que toma materialidade a má prática judicial da Mma. Juíza. E cometida, afinal, em ordem ao desmerecimento do signatário, colaborador da justiça e que deve, não só segundo a lei, mas segundo a deontologia judiciária, merecer a consideração e respeito devidos.

    Espera, pois, o signatário que Vossa Excelecência ordene a instauração do procedimento disciplinar que compete, para correcção, após a defesa, da Mma. Juiza participada, e em termos de recobro da confiança nos Tribunais, abalada, sempre, por comportamentos esquivos, do jaez dos que ficaram aqui descritos.” 2.

    O Recorrente juntou diversos documentos e o Exmo. Vogal do CSM determinou a notificação da Exma. Juíza visada para prestar esclarecimentos, assim o entendendo.

  6. Nos esclarecimentos prestados, a Exma. Juíza juntou vários documentos relativos aos autos e descreveu a tramitação processual relativa aos Processos n.º ....... e ......., tendo a final concluído que : “(…) a signatária apenas se recorda de ter trabalhado com o Sr. Advogado em questão nos dois processos referenciados, tendo sempre estabelecido um relacionamento cordato e respeitoso com o mesmo, como é seu hábito em relação a todos, sejam colegas magistrados, advogados, partes ou testemunhas, sem qualquer exceção”.

  7. O Exmo. Vogal do CSM em ...proferiu o seguinte despacho: “Cumpre apreciar e decidir: O Conselho Superior da Magistratura é o órgão de gestão e disciplina da magistratura judicial (artigo 136.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais Lei n.º 21/85,de 30 ,de julho), sendo que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à Lei (artigo 203.º da...

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