Acórdão nº 2587/15.4T8LOU-B.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelFÁTIMA GOMES
Data da Resolução10 de Dezembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - RELATÓRIO 1.

Por apenso à execução comum que AA, S.A.

instaurou contra BB, veio CC deduzir embargos de terceiro, alegando ser a única dona e legítima possuidora da metade do imóvel penhorado nos autos principais.

Para tal, argumentou que, juntamente com o executado, era proprietária de metade indivisa do prédio que foi penhorado e que, cerca de 2 anos antes da penhora, pretendeu adquirir a metade indivisa deste. Como não havia licença de habitabilidade, não puderam celebrar a respectiva escritura pública, pelo que celebraram contrato-promessa de compra e venda ao qual atribuíram eficácia real. Mais alegou que procedeu ao pagamento da totalidade do preço e que houve tradição da coisa, pelo que concluiu pela incompatibilidade da penhora com a posse que passou a exercer, bem como com o direito real de aquisição que possui sobre o bem penhorado.

  1. Citados para contestar, o executado nada disse, tendo o exequente contestado, impugnando os factos alegados pela embargante no que concerne à posse e ao pagamento do preço, alegando ainda que a penhora não é incompatível com o direito real de aquisição, por força do disposto no art.º 831.º do C.P.C., que permite o recurso à execução específica na acção executiva.

  2. Foi proferido despacho saneador, que declarou a validade e regularidade da instância, tendo nele sido fixado o valor da causa, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.

  3. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedentes os embargos, determinou o levantamento da penhora realizada nos autos principais.

  4. Não se conformando com a sentença proferida, a exequente dela interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto. O apelado, BB, apresentou contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso e confirmação do decidido.

    O Tribunal da Relação do Porto julgou procedente o recurso, de facto e de Direito, revogando a decisão recorrida, indicando que a mesma deveria ser substituída por outra que ordene o prosseguimento da execução, mantendo-se a penhora nela efectuada. No seu acórdão o Tribunal alterou a matéria de facto provada, passando a considerar não provados os factos indicados nos pontos 7), 8, 10), 11) e 12).

  5. Inconformado com o acórdão proferido dele apresentou recurso de revista o executado, BB.

    Formula as seguintes conclusões (transcrição): 1ª- O recorrente tem presente que este Supremo se limita, em princípio, a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, sendo que tal regra sofre excepções, duas das quais se verificam no caso vertente; 2ª- Por um lado, um erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto pelo Tribunal recorrido pode ser objecto de recurso de revista quando haja ofensa de uma disposição expressa da lei que, nomeadamente, fixe a força de um determinado meio de prova; 3ª- Por outro – e consoante é jurisprudência uniforme, mormente deste Tribunal – o Supremo pode apreciar o bom ou mau uso dos poderes de alteração da decisão de facto conferidos ao Tribunal da Relação (já não lhe cabendo censurá-lo por não ter feito uso desses poderes) (cfr., p. ex., os Ac.s deste STJ de 2004.09.30, P. nº 04B2175 e de 2004.05.27, P. nº 880/04-2).

    4ª- No caso, o Tribunal da Relação ofendeu, salvo o devido respeito, uma disposição expressa da lei que fixa a força de determinado meio de prova a saber, a que resulta de um documento autêntico, nos termos do art. 369º a 372º do Cód. Civil.

    5ª- Paralelamente, dessa ofensa resultou um mau uso dos poderes de alteração da matéria de facto que são conferidos ao Tribunal da Relação, quando procedeu à alteração da matéria de facto da 1ª Instância determinando que os factos nºs 7, 8, 10, 11 e 12, que esta considerara «provados» passassem a ser «não provados».

    6ª- Na verdade, a pretensão expressa na Oposição mediante Embargos de Terceiro apresentada à execução fundamentou-se basicamente na existência do contrato promessa com eficácia real celebrado com o co-Executado, aqui recorrente.

    7ª- Tal contrato promessa trata-se de um documento autêntico, nos termos em que o define o art. 369º do Cód. Civil, estando o Advogado perante quem o mesmo foi outorgado equiparado a autoridade ou oficial público, nos termos do art. 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.03.

    8ª- Por via de um contrato promessa com eficácia real constitui-se um direito real de aquisição na esfera jurídica do promitente comprador (cfr. Ana Prata, Dicionário Jurídico, V. I, Almedina, p. 582), produzindo efeitos reais, que não apenas obrigacionais, tudo se passando como se se tivesse efectivamente operado a transferência da propriedade do ora recorrente para a Embargante (Cód. Civil, art. 408º e 413º).

    9ª- Segue-se, por isso, que a força probatória do contrato promessa com eficácia real celebrado entre a embargante e o embargado pessoa singular é plena, nos termos do art. 371º nº 1 do mesmo diploma, ou seja, encontram-se, por via dele, plenamente provados os factos do mesmo constantes quanto ao que foi exprimido e declarado pelos outorgantes.

    10ª- E essa força probatória plena do documento apenas pode ser ilidida mediante a arguição da respectiva falsidade (Cód. Civil, art. 372º) – e a sociedade recorrida não fez essa arguição.

    11ª- Por outro lado, ela recorrida tão-pouco peticionou a declaração da invalidade do documento, designadamente alegando factos que traduzissem a existência de simulação ou de qualquer outro vício da vontade dos respectivos outorgantes.

    12ª- Na verdade, a recorrida limitou-se a «impugnar» os documentos juntos pela Embargante (contestação, art. 3º), o que é unicamente forma de pôr em causa documentos particulares – que não documentos autênticos, como é o caso do contrato promessa com eficácia real.

    13ª- Pelo que tal «impugnação» é inócua, encontrando-se assente a veracidade e a validade do documento, porque celebrado através de declarações de vontade não eivadas de vício.

    14ª- Ora, ao considerar «não provados» os factos nºs nºs 7, 8, 10,11 e 12, o Tribunal da Relação ofendeu o art. 371º do Cód. Civil, vale dizer, a força probatória do documento autêntico, pois que deste ficou a constar que o propósito dos outorgantes foi o que plasmaram no documento, assim como a razão pela qual outorgavam um contrato promessa com eficácia real (cujas tentativas de obtenção ficaram a constar do facto nº 9), 15ª- assim como o pagamento e recebimento do preço e a tradição material do imóvel, ou seja, a respectiva posse, tudo declarado, consignado e estipulado no aludido documento – e tudo declarações não foram arguidas de falsas ou inquinadas por qualquer vício da vontade, pelo que se situam no domínio da prova plena, e mais: da que não admite prova testemunhal tendo por objecto quaisquer convenções contrárias ao conteúdo (Cód. Civil, art. 394º nº 1), 16ª- Pelas razões indicadas, deverá este Supremo Tribunal decretar que o Tribunal da Relação fez um uso impróprio e inexacto dos poderes de alteração da decisão da matéria de facto ao considerar esses factos «não provados», tendo feito uma desacertada interpretação dos preceitos citados, mais decretando, em consequência, que tais factos devem ser considerados provados.

    17ª- Aliás, todas as iniciativas probatórias da 1ª Instância (mormente requisição de documentos – sem prejuízo de todos irem no sentido propugnado pelo aqui recorrente –, inquirições e congéneres), embora louváveis, apenas teriam toda a razão de ser se tivesse sido suscitada a falsidade do contrato promessa com eficácia real ou alegado qualquer vício da vontade que tornasse inválidos esse documento e o respectivo conteúdo.

    Sem prescindir, 18ª- Sem prejuízo de tudo quanto criteriosamente atrás se deixou dito, afigura-se que a mera existência do contrato promessa com eficácia real e respectivo registo seriam – são – fundamentos bastantes e suficientes para determinar o levantamento da penhora: 19ª- Na verdade, analisando a questão à luz das regras da prioridade do registo, a inscrição do contrato promessa em termos registrais implica a ineficácia do que se lhe seguir.

    20ª- E tal é entendimento da nossa jurisprudência, mormente dos Tribunais Superiores, ou seja, o de que, dada a eficácia real do contrato promessa, basta que este tenha sido objecto de registo para que procedam os embargos de terceiro intentados para obter o levantamento de qualquer ónus constituído posteriormente a esse registo, dadas as regras relativas à prioridade deste último.

    21ª- Cotejem-se, a propósito, os seguintes Acórdãos, parcialmente transcritos na presente alegação: da Relação de Évora de 2019.06.27 (Proc. nº 1872/ 14); da Relação do Porto (Proc. nº 5619/08.9TBMTS-B.P1); da Relação de Lisboa de 2016.09.22 (Proc. nº 26980); deste STJ de 2010.03.25 (Proc. nº 408.06): «O registo de um contrato-promessa de compra e venda torna ineficazes em relação ao promitente-comprador as hipotecas, constituídas e registadas sobre o prédio prometido vender».

    22ª- No Acórdão recorrido encontram-se interpretadas e aplicadas por forma inexacta as normas citadas nas precedentes conclusões, impondo-se, por isso, a sua revogação.

    Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, sendo revogado o Acórdão recorrido, em conformidade com as conclusões que antecedem, Com o que apenas se fará JUSTIÇA! Foram apresentadas contra-alegações.

    Colhidos os vistos, cumpre analisar e decidir.

    II - Fundamentação 7.

    Do Tribunal da Relação vieram fixados os seguintes factos, depois de alterados em face da julgada procedente impugnação da matéria de facto: 1 – Os presentes autos deram entrada em 29/05/2015.

    2 – A sentença que constitui título executivo nestes autos foi proferida em 04/12/2014, tendo a acção dado entrada em 19/11/2013.

    3 - Em 24/04/2015 foi registada a penhora de ½ do prédio melhor identificado nos autos.

    4 – Tal prédio havia sido doado ao executado e à embargante em 16/03/1995, pelos pais da embargante.

    5 – Em 21/03/2013...

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