Acórdão nº 323/18.2PFLRS.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 27 de Novembro de 2019

Magistrado ResponsávelLOPES DA MOTA
Data da Resolução27 de Novembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1.

Por acórdão de 1 de Abril de 2019, proferido pelo tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de … (Juiz …), foi o arguido AA, melhor identificado nos autos, condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e j), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão.

2.

Discordando da qualificação jurídica dos factos provados e da pena aplicada, recorre o arguido apresentando motivação em que conclui nos seguintes termos (transcrição): «I. O presente recurso tem como objecto o reexame da matéria de direito, porquanto o recorrente discorda da qualificação jurídica aplicada aos factos dados como provados.

  1. O aqui recorrente foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, b) e j), do Código Penal, na pena de 18 anos de prisão.

  2. Com efeito, o arguido, aqui recorrente, discorda da qualificação jurídica dos factos, porquanto no seu entender, não se verifica o preenchimento do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, nº. 1 e n.º 2, b) e j) do Código Penal.

  3. É entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, que as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente, e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa.

  4. Dos autos, resultou provado que: "2- por motivos relacionados com ciúmes da parte do arguido, a relação, nos últimos 6 meses, pautava-se por disputas verbais. 3 - Há cerca de 3 semanas o arguido, após visualizar mensagens no telemóvel de BB, apercebeu-se que a sua companheira manteria uma relação com outra pessoa, após o que a confrontou e, não obstante aquela manifestar dúvidas quanto a manter a relação com o arguido, chegando a fazer juízos comparativos entre os dois, continuaram a partilhar cama, mesa e habitação. “(…) VI. Como já acima foi referido, e no que diz respeito às relações agente/vítima previstas na al. b), elas constituem indícios de uma especial censurabilidade, mas que contudo, não se verifica automaticamente em função delas, como é próprio do método exemplificador ou técnica dos exemplos-padrão, ora, do douto acórdão, resulta provado, que o arguido, aqui recorrente e a vítima já coabitavam há cerca de 4 anos, sendo que nos últimos 6 meses já tinham frequentes disputas verbais e nas últimas 3 semanas, o arguido descobriu que ela teria uma relação com um outro companheiro, com o qual havia iniciado uma nova relação amorosa.

  5. Tais factos, foram também confirmados pelo próprio arguido, nas suas declarações e a circunstância do arguido, recorrente, à data dos factos estar a viver na mesma casa com a vítima, embora com conflitos há 6 meses, não pode por si só fazer operar a qualificação prevista na alínea b) do artigo 132.º do Código Penal, isto porque nessa mesma altura, a vítima até já possuía um novo relacionamento.

    VIII - Além de que, a violação dos deveres conjugais previstos especialmente no artigo 1672.º do Código Civil não necessita de passar obrigatoriamente pela qualificação do crime de homicídio para relevar a nível da medida da pena, pois bastaria atentar no disposto no artigo 71.º, n.º, 2, a), do Código Penal, nomeadamente quando manda atender ao «grau de violação dos deveres impostos ao agente», pelo que neste caso permite o afastamento da alínea b) do artigo 132.º do Código Penal.

    IX - Contudo, a violação dos deveres conjugais também é imputável à vítima, que ainda no estado de unida de facto com o recorrente, passou a ter relações com outra pessoa.

    X - Face à prova existente nos autos, não se poderia dar como provado que o arguido tenha actuado com culpa grave, pois o infeliz episódio apenas se deu, após uma discussão entre o recorrente e a vítima na fatídica noite, conforme se comprova pelo depoimento do arguido.

    XI - A discussão existente, antes do trágico final, deverá ser um elemento que deveria ter merecido especial ponderação, no momento da fixação da medida da pena, pois tal situação causou necessariamente uma perturbação na capacidade de decisão do arguido, e que afectou a sua vontade.

    XII - O arguido, estava possuído por uma imputabilidade diminuída, o que é incompatível com um homicídio qualificado, que pressupõe um tipo especial agravado de culpa e constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, o agente avaliar a sua ilicitude e se determinar de acordo com essa avaliação, desse modo, as circunstâncias em que ocorreu a morte de BB são de molde a excluir o efeito indiciante resultante da verificação do exemplo-padrão, assim, por estes motivos devia o tribunal a quo ter afastado a aplicação da alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

    XIII - Lê-se no douto acórdão proferido, que ficou demonstrado que "o arguido persistiu na intenção de matar por algumas horas", (itálico nosso), contudo, também consta do douto acórdão que não resultou provado que o arguido alguma vez tenha pensado ou planeado matar a vítima previamente à fatídica noite, ora, a afirmação do Colectivo que o arguido persistiu na intenção de matar, por algumas horas, não se coaduna com os factos provados e não provados.

    XIV - Além de que, embora no douto acórdão, para apurar a especial censurabilidade da conduta do arguido, entende o recorrente que é incompatível com as declarações deste e os factos dados como provados, pois estando o arguido na posse de uma faca, que foi buscar à cozinha para cortar a corda, e, estando a vitima deitada na cama, não parece razoável dar como provado que o mesmo tinha a intenção de a matar, nem que tenha actuado no referido plano que arquitectou, já que o poderia ter feito logo que pegou na faca de cozinha.

    XV - Mostra-se assim, errónea a interpretação do Tribunal Coletivo, quando defendeu a existência de uma especial censurabilidade na conduta do arguido, agindo de caso pensado e em obediência a um minucioso plano, e que assim preencheu a agravação do artigo 132.º, n.º 2, j) do Código Penal.

    XVI - Outrossim, a situação em concreto, indicia uma atitude fortemente emotiva, até porque conforme resulta da confissão do arguido e ainda da testemunha sua sogra e seu irmão, era a mulher da sua vida, além disso, o arguido não previa o final trágico, nem nunca foi sua intenção.

    XVII - O que é certo é que, sabendo o recorrente da nova relação amorosa, provocou-lhe a diminuição da culpa, culpa que tem como substrato material o reconhecimento da liberdade do agente e a sua consciência ética e, por outro lado, que só age culposamente quem, podendo fazê-lo, não faz aquilo que devia fazer (evitar a prática do crime), desta forma mostra-se insustentável manter a especial censurabilidade ou perversidade da conduta homicida do recorrente, a partir dos factos apurados, e consequentemente manter a qualificação pela alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

    XVIII - Ora, perante a referida circunstância e o papel da culpa como o limite inultrapassável de fundamento da pena, esta não poderá ser senão a correspondente ao homicídio privilegiado, cometido com imputabilidade diminuída.

    XIX - E neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, escreve que, "verificando-se uma situação de concurso de circunstâncias do tipo de homicídio qualificado e de homicídio privilegiado; encontram-se numa relação de exclusão entre si, pelo que o tribunal deve ponderar quais são as circunstâncias que prevalecem. Verificando que a culpa é especialmente diminuída, aplica a moldura do artigo 133º".

    XX - A conduta do arguido teve lugar em circunstâncias especialmente emocionais, no caso sub judice, o comportamento violento do arguido foi certamente desencadeado por uma emoção muito forte, uma «emoção violenta» compreensível.

    XXI - A forte emoção verificada, nomeadamente o ciúme exacerbado, o querer conquistar a vítima, e saber da existência de uma nova relação amorosa, aliado à discussão prévia aos factos, impediram o recorrente de valorar a ilicitude da sua conduta e de evitar a prática do crime nas circunstâncias em que o fez, aliás, como se observa da prova produzida, nomeadamente pelas declarações do recorrente, e perante as circunstâncias descritas nos autos, este praticou o crime de forma repentina, abrupta, sob forte e compreensível emoção, torturado, desorientado e traumatizado "cego" pela ideia da sua esposa viver com outro companheiro, ainda no estado de unida de facto com o mesmo.

    XXII - Conforme se escreveu supra, referiu o seu irmão e sua sogra, o arguido tinha a BB como “a mulher da sua vida", e que queria conquistá-la, pelo que a verificação do crime apenas se poderá conceber num estado de espírito que tenha influído decisivamente o seu comportamento, num estado de alta depressão e instabilidade, não se vislumbrando qualquer aparência calculista, reflexiva e insensível da conduta assumida, não prevendo que, com o seu acto pudesse provocar a morte da infeliz da companheira.

    XXIII - No entender do recorrente, aquela circunstância configura, na avaliação conjunta e global dos factos, a pré-existência de um conflito interior inalterável, e que durava há bastante tempo, o que originou um transbordamento, da descarga afectiva.

    XXIV - O arguido no momento que puxou a corda no pescoço da vítima, tirando-lhe a vida, agiu dominado por um estado de afecto emocional, sendo que, de tal forma, não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente fiel ao direito não deixaria de ser sensível, sempre afirmando que não teve intenção de matar a BB.

    XXV - Mostra-se assim preenchida a previsão normativa do art. 133.º, do CP, ou seja, o crime de homicídio privilegiado, por ter agido sob forte e compreensível emoção, torturado e desorientado pela ideia da sua ainda companheira, viver/estar com outra pessoa.

    XXVI - O doutro acórdão objecto de...

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