Acórdão nº 257/18.0JABRG.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 03 de Outubro de 2019

Magistrado ResponsávelFRANCISCO CAETANO
Data da Resolução03 de Outubro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I.

Relatório No âmbito do processo em epígrafe, do Juízo Central Criminal de …, Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, por acórdão do tribunal colectivo de 31 de Outubro de 2018, sob acusação do M.º P.º e dedução de pedido de indemnização civil, no valor de 213.600,00 €, acrescido dos legais juros de mora, pelas demandantes, assistentes no processo, AA e BB, irmãs da vítima CC, foi julgada e condenada DD, casada, nascida em … de Julho de 1984, como autora material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art.º 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e h), do CP, na pena de 19 anos de prisão e no pagamento da indemnização da quantia de 135.000,00 €, acrescida dos correspondentes juros de mora legais, na proporção de metade para cada uma das demandantes, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a morte daquela.

Inconformada, a arguida recorreu quanto à matéria penal e civil (neste particular quanto ao montante pecuniário fixado) para o Tribunal da Relação de Guimarães.

Após parecer do M.º P.º a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do CPP, a arguida e demandada civil suscitou a questão da sua ilegitimidade para ser demandada pelo pedido cível, dado que à data dos factos a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo automóvel de matrícula ...-...-IG estava transferida para a companhia de seguros “EE, S.A.”, razão por que nos termos do DL n.º 291/2007, de 21.08, o pedido só contra a seguradora poderia ter sido deduzido, não obstante as lesões imputadas à demandada enquanto condutora desse veículo automóvel haverem sido por ela causadas de forma dolosa.

Em resposta à excepção as demandantes civis pugnaram pela sua improcedência, com fundamento em que a conduta da arguida, sendo dolosa e em que o veículo automóvel foi mero instrumento do crime de homicídio, não configura um acidente de viação enquadrável no regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

No acórdão proferido em 27.05.2019 o Tribunal da Relação de Guimarães, para lá de ter julgado procedente recurso interposto por um interessado quanto à declaração de perda do veículo automóvel, cuja restituição ordenou e improcedente o recurso da arguida quanto à vertente penal, conheceu, como questão prévia e enquanto excepção dilatória de conhecimento oficioso, da excepção de ilegitimidade da arguida demandada civil, aderiu aos fundamentos do requerimento desta quanto ao conceito de acidente, por sua vez extensível ao que for causado com dolo e, assim, porque transferida a respectiva responsabilidade para a seguradora e porque apenas contra ela deveria ter sido deduzido o pedido, julgou procedente a excepção de ilegitimidade da demandada, de cuja instância a absolveu.

Foi agora a vez de as demandantes recorrerem para este Supremo Tribunal de Justiça, finalizando a motivação com as seguintes conclusões: I. Entendeu o tribunal recorrido que o evento dos autos configura um acidente de viação, na acepção de “acidente dolosamente provocado”.

  1. Da factualidade dada como provada nos pontos 5, 6, 7 e 8 resulta que o evento dos autos não deriva da circulação rodoviária, mas sim da utilização do veículo por parte da arguida/Demandada para conseguir concretizar a sua intenção de matar, o que conseguiu.

  2. A conduta da arguida configura um crime doloso, planeado e voluntariamente executado em que o veículo automóvel não foi utilizado como meio de transporte, mas somente como arma de agressão.

  3. O veículo foi o instrumento de agressão, foi usado de forma deliberada, consciente e intencional, com o intuito de agredir e provocar a morte da vítima.

  4. Não está em causa um acidente de viação, mas o dirigir intencional do automóvel sobre o corpo da vítima, enquanto instrumento letal, assim como poderiam ter sido utilizados uma faca, uma arma, uma pedra, etc.

  5. Resulta da factualidade dada como provada que a arguida “com CC fora do veículo, a arguida apontou-lhe este (entenda-se veículo), iniciou a marcha e, usando-o como arma de agressão, com a finalidade de retirar a vida à vítima, passou o veículo, por mais do que uma vez, sobre o corpo de CC”.

  6. Resulta igualmente provado que a arguida sabia que o veículo automóvel, da forma como o usou, é instrumento com aptidão para ser usado como meio de agressão e que, quando dirigido e aplicado com violência numa zona vital do corpo humano, é apto a causar lesões mortais na pessoa atingida, sendo portador de um poder mortífero ante o qual a possibilidade de defesa é mais reduzida ou mesmo inexistente.

  7. Não estamos perante a ocorrência de qualquer facto que consubstancie a existência ou verificação de um risco, entendendo-se este como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro, é que a condutora do veículo quis praticar tal facto, ou seja, o mesmo nada teve de incerto.

  8. A relação material controvertida assenta não num acidente de viação, mas na agressão intencionalmente provocada pela arguida com o veículo, pelo que tal justifica a sua legitimidade para ser demandada, enquanto agente do crime.

  9. Um homicídio voluntário nunca poderá ser classificado como acidente, ainda que este seja doloso.

  10. A conduta da arguida não é enquadrável no regime da responsabilidade civil decorrente da circulação de veículos automóveis, nomeadamente no disposto no artigo 15º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, de 21/08.

  11. O legislador do DL 291/2007 salientou no respectivo preâmbulo que este diploma regulamenta o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mas apenas enquanto "sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado nesse seguro.

  12. O regime de seguro obrigatório destinado a assegurar o ressarcimento de lesados em consequência de acidentes, existe nuclearmente para cobrir os riscos próprios da circulação e não para cobrir também as lesões que foram provocadas pelo veículo, mas que poderiam ter sido causadas por outro objecto móvel.

  13. Utilizar um veículo como arma de um crime, usando-o para infligir danos físicos ou a morte a alguém, seja com o mesmo em andamento ou com o mesmo desligado e imobilizado, nada tem a ver com os riscos de circulação que o seguro obrigatório pretende cobrir.

  14. O dolo a que se refere o artigo 15° [do] DL 291/07 terá que entender-se como sendo o dolo eventual, em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta, não se abstendo porém de a empreender, e conformando-se com o seu resultado - Maia Gonçalves, Cód. Penal Português, 1982.

  15. A arguida agiu com dolo directo - a autora do facto ilícito age com o intuito de atingir o resultado ilícito da sua conduta, que de antemão representou e quis (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4° Ed., pág. 382). 21.

  16. Não estamos perante um acidente de viação, mas de um homicídio voluntário praticado com um automóvel, como poderia ter sido por qualquer outro instrumento que produzisse o mesmo fim.

  17. A companhia de seguros nunca seria responsável por qualquer indemnização às Assistentes/Demandantes, na medida em que tal situação cai fora do âmbito de cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

  18. A conduta da arguida nunca poderia ser reconduzida ao conceito de acidentes de viação dolosamente provocado, pois que não constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena e não esperada (inesperada), ou, do seu plano e perspectiva, fortuita.

  19. “Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo; os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais; os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel.” – Cfr. Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo 07A197, in www.dgsi.pt.

  20. Refere Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", 3ª ed., vol. I, pág. 556, que fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam: os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo; os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais; os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel XXII. No caso concreto está em causa uma ocorrência voluntariamente provocada pela condutora de um veículo, mas não em condições aparentemente típicas de circulação, e nessa medida a sua actuação não se coaduna com o conceito jurídico de “acidente dolosamente provocado”.

  21. Se o legislador quisesse abranger situações como a dos autos jamais poderia utilizar o termo acidente: é que em tais situações o evento danoso tem tudo menos carácter acidental - trata-se de um acto que foi querido, que foi propositadamente praticado, ou seja, não se trata, de modo algum, de um acaso repentino e pontual, meramente fortuito ou contingencial.

  22. Sempre tal interpretação estaria vedada pelo próprio espírito do ordenamento jurídico português: é que aceitar que os seguros obrigatórios de responsabilidade civil automóvel cobrem os danos resultantes de todos e quaisquer actos criminosos, por mais torpes e dolosos, tudo desde que na sua prática sejam utilizados, por qualquer forma, veículos automóveis, seria aceitar a celebração de negócios ostensivamente contrários à ordem pública e aos bons costumes, o que levaria à sua nulidade, nos termos do n.º 2 do art.º 280.º do Cód. Civil.

  23. Veja-se, por todos, neste sentido, o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/03/2007, proferido no âmbito do processo n.º 07A197, disponível in www.dgsi.pt.

  24. Violou o douto acórdão recorrido, pelo menos, o estatuído no artigo 15º, n.º 2 do DL 291/2007, e o artigo 280º, n.º 2 do C.C.

Termos em que, em face do vindo de alegar, impõe-se a revogação do douto Acórdão recorrido, substituindo-se por outro em que julgue a Demandada parte legítima, confirmando a douta decisão proferida em primeira instância, com todas as...

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