Acórdão nº 503/18.0T8VNF.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Setembro de 2019

Magistrado ResponsávelROSA TCHING
Data da Resolução12 de Setembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2ª SECÇÃO CÍVEL I. Relatório 1. AA intentou ação de impugnação e de investigação de paternidade contra os réus, BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH, pedindo que seja declarado que o autor não é filho do réu BB e ordenada a eliminação deste facto do correspondente registo na Conservatória do Registo Civil de … e que seja reconhecido e declarado que o autor é filho de II e ordenado o averbamento deste facto no assento de nascimento do autor na Conservatória do Registo Civil de … .

Alegou, para tanto e em síntese, que nasceu em 01.04.1973 e foi registado como sendo filho do réu BB, marido da sua mãe, apesar de ter sido biologicamente procriado em resultado de relacionamento sexual da sua mãe com II.

Mais alegou que, na sequência do avolumar das dúvidas quanto à sua paternidade, solicitou ao Centro de Genética Clínica um exame a amostras de sangue suas e do 1º réu, tendo o respetivo relatório concluído « excluir este BB como pai de AA». 2. Citados, só o réu CC contestou, excecionando a caducidade dos direitos do autor, por, desde há muito, se mostrarem esgotados os prazos estabelecidos nos artºs 1842º, nº1, al. c) e 1817º, do Código Civil.

  1. Na réplica, o autor invocou a inconstitucionalidade material de tais normas, defendendo que o exercício dos direitos em causa, atenta a sua natureza pessoalíssima e fundamental, jamais pode ser cerceado por qualquer prazo condicionante, sendo imprescritível.

  2. Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que admitiu a cumulação das ações de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade no processo e, afirmando e a constitucionalidade da norma contida na al. c) do nº1 do art. 1842º do C. Civil, considerou estar decorrido o prazo de 10 anos nela estabelecido, pelo que julgou procedente a invocada exceção de caducidade, absolvendo os réus do pedido.

  3. Inconformado com esta decisão, dela apelou o autor para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão proferido em 18 de outubro de 2018 e com um voto de vencimento, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

  4. De novo inconformado com este acórdão, o autor dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem: «1 - A questão a dirimir na qual o presente recurso se centra reporta-se à sujeição (ou não) do direito de reconhecimento da paternidade a prazos de prescrição ou de caducidade, pugnando pois pela inconstitucionalidade material das normas - constantes dos arts. 1817° e 1842° do CCivil (na redacção introduzida pela Lei n° 14/2009).

    2 - O recorrente considera que o direito de qualquer cidadão a conhecer a paternidade é um direito imprescritível.

    3 - A natureza dos direitos fundamentais à efectiva identidade pessoal exige a sua vigência e a sua eficácia plenas em todo o ciclo de vida do respectivo titular, o que é incompatível com soluções limitativas, inibidoras da sua plena realização por critérios exclusivos de restrição temporal.

    4 - O direito de qualquer cidadão a conhecer a paternidade é um direito que -não pode, não deve estar, nem está sujeito a qualquer prazo, não podendo estar sujeito a qualquer limite temporal, sob pena de violação do direito à identidade pessoal verdadeira, consagrado no artigo 26 n° 1, CRP.

    5 - O reconhecimento do estado de filiação constitui um direito pessoalíssimo, indisponível e insusceptível de extinção pelo decurso do tempo, que pode (e deve) ser exercido sem qualquer restrição ou limitação, nomeadamente de ordem temporal.

    6 - A eventual sujeição de acções relativas a questões de paternidade a prazo de caducidade choca com o próprio direito natural, com o espírito dos mais elementares direitos humanos e com o direito de qualquer cidadão a conhecer as suas raízes, a sua filiação biológica, a sua identidade pessoal, em suma tudo o que está intimamente relacionado com a dignidade da pessoa humana - arts. 1, n° 1 e 26, n° 1 CRP.

    7 - O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, com dignidade constitucional, está intimamente ligado ao próprio direito à identidade biológica e pessoal, pelo que qualquer limitação ou condicionamento ao exercício do direito de conhecimento da origem genética consagrado no mesmo preceito constitucional constitui uma violação do princípio da dignidade da pessoa humana e uma violação da própria Constituição.

    8 - Mesmo depois das alterações introduzidas pela Lei n° 14/2009 de 1/4, o Supremo Tribunal de Justiça continuou a fixar jurisprudência (por exemplo, os Doutos Acórdãos de 25/3/2010 e de 8/6/2010) no sentido da tese da imprescritibilidade, afirmando que, para além de inconstitucionais, os prazos de caducidade, sejam eles quais forem, traduzem uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, mais precisamente ao direito à historicidade pessoal.

    9 - Os motivos e os objectivos (como a segurança jurídica e a falibilidade das provas) que presidiram à criação de prazos de caducidade para acções como a dos autos revestem actualmente muito menores relevância e validade no confronto com a nova dimensão do "direito à identidade pessoal" e o "direito à integridade pessoal", considerando nomeadamente a evolução no domínio da genética e o movimento social e científico generalizado no sentido do conhecimento e averiguação das origens biológicas de cada um.

    10 - Também no direito comparado a regra é a da imprescritibilidade das acções, como no direito italiano (art. 270 CC), brasileiro (art.1606 CC), espanhol (art. 133 CC), alemão (art. 1600 CC) e de Macau (art.1677, n° 1).

    11 - O recorrente conclui pela inconstitucionalidade material das normas do art. 1817° e do 1842° do CCivil (na redacção introduzida pela Lei n° 14/2009) e pugna por não sujeitar direitos e acções como as dos autos a prazos de caducidade.

    12 - A Douta e vasta Jurisprudência (recente) supra-citada e transcrita sustenta de forma inequívoca e directa o entendimento e a pretensão do recorrente.

    13 - O prazo de dez anos não tem cabimento constitucional, uma vez que cerceia de forma injustificada um direito individual - o direito à história pessoal.

    14 - A paternidade biológica já não pode, hoje em dia, ser abafada e transformada numa espécie de paternidade clandestina, sem a tutela plena do direito, em violação do disposto nos n°s 1 e 3 do art. 26 CRP.

    15 - Comparando o regime fixado para a averiguação da paternidade e para a impugnação da paternidade no que aos prazos de caducidade diz respeito, com a impugnação da maternidade (art. 1807° CC) - prazo: a todo o tempo, com a impugnação de perfilhação (art. 1859° n° 2 CC) - prazo: a todo o tempo, com o direito do adoptado aceder ao conhecimento das suas origens (art. 6o do RGPA -Lei 143/2017) - prazo: não é fixado qualquer prazo, com a reclamação dum direito patrimonial (art- 309° CC) - prazo: 20 anos, com a reivindicação de propriedade (art. 1313° CC), prazo: não prescreve pelo decurso do tempo, forçoso é concluir que não estava na previsão nem no espírito do legislador constitucional, dificultar mais a possibilidade de impugnação e de averiguação da paternidade do que a possibilidade da impugnação da maternidade, nem do que a possibilidade de impugnação da perfilhação ou do que a possibilidade do adoptado ter acesso ao conhecimento das suas origens e muito menos do que a possibilidade de reclamação dum direito patrimonial ou do que a possibilidade da reivindicação de propriedade, donde resulta reforçado o entendimento que se vem explanando nas presentes alegações de que os prazos fixados nos mencionados arts. 1817° e 1842° são forçosamente inconstitucionais.

    16 - Resulta da comparação dos regimes da averiguação e da impugnação da paternidade com o regime da impugnação da maternidade, que a fixação do prazo de dez anos constante dos arts. 1817° e 1842°, é também inconstitucional por violação do princípio da igualdade em razão do sexo, disposto no artigo 13° n° 2 da CRP.

    17 - Contrariamente ao que sucede com direitos patrimoniais, os meios científicos actuais permitem estabelecer a paternidade com um grau de certeza quase absoluto - (99,99%).

    18 - Decorre do exposto que a fixação do prazo de 10 anos para instaurar acção de investigação de paternidade ou de impugnação de paternidade viola a exigência de proporcionalidade consagrada no artigo 18.°, n.° 2, da Constituição.

    19 - O douto acórdão sob recurso, pese embora se reconheça a riqueza de argumentação constante do mesmo, não esclarece como é que, constitucionalmente, se compatibiliza a opção de ser fixado um prazo de dez anos para efeito de exercer a impugnação e averiguação de paternidade, não se fixando qualquer prazo para efeitos da impugnação da maternidade nem para a impugnação da filiação ou para o exercício do direito do adoptado a conhecer as suas origens e, ainda mais relevante, não esclarece que resulte da Constituição uma opção em que se conceda mais protecção a direitos patrimoniais do que a direitos pessoais, sendo que o direito de qualquer cidadão saber quais as suas origens, constitui um direito pessoalíssimo.

    20 - Não se concebe que seja constitucionalmente defensável que existindo meios científicos que permitem estabelecer conhecer com um grau de certeza quase absoluto a paternidade, o exercício de tal direito tenha uma limitação temporal, e o direito de ver reconhecida a propriedade sobre um imóvel, cuja prova é muitíssimo mais falível, não tenha qualquer prazo de prescrição.

    21 - A comparação com o exercício de direitos reais evidencia o resultado perverso e atentatório da dignidade que a sujeição a prazos dos direitos que aqui se peticionam implica, face à imprescritibilidade da acção de reivindicação (conforme dispõe o art. 1313 CCivil) em sede de direitos reais, tornando ainda mais chocante e inadmissível que, invocando pseudo-argumentos como a segurança jurídica, se aceite ou se defenda a fixação de limites temporais para a investigação de paternidade.

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