Acórdão nº 916/18.8T8STB.E1.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Maio de 2019

Magistrado ResponsávelROSA RIBEIRO COELHO
Data da Resolução30 de Maio de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2ª SECÇÃO CÍVEL I – O Exmo. Magistrado do Ministério Público intentou contra AA e BB a presente ação declarativa com processo comum, pedindo que seja declarada a anulabilidade do negócio jurídico constante da escritura de justificação notarial celebrada em 31 de agosto de 2015, através da qual invocaram o direito de propriedade, adquirido originariamente por usucapião, do prédio rústico sito em …, freguesia do …, concelho de …, composto de terreno hortícola, com a área de 3500 m2, que confronta do norte com CC, do sul com DD, do nascente com Rua … e do poente com EE, inscrito na matriz predial sob parte do artigo 316, da secção G, anteriormente art.º 21 da secção G, a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 592, da referida freguesia.

Alega, para tanto, e em síntese nossa, que, através da escritura de justificação notarial, os réus desanexaram o prédio aí referido do prédio rústico com a área de 0,7000 ha, composto de cultura arvense (área de 0,4500 ha), pomar de laranjeiras, pomar de ameixeiras, pomar de damasqueiros e vinha com pomar de macieira (0,1500 ha), sendo tal fracionamento proibido e pelo art. 1376.º n.º 1 do CC e Portaria n.º 202/70 de 21.04, pelo que o negócio é anulável.

Os réus contestaram, pedindo a improcedência da ação.

Alegam, em síntese, que a ré mulher adquiriu o prédio por doação não titulada de seus pais, por volta dos anos 1969, altura em que estes procederam à divisão física do seu prédio rústico com a área de 7000 m2 em dois prédios distintos, com a área de 3500 m2 cada um; que desde então entraram na posse do prédio, habitando a casa nele implantada, aí desenvolvendo a exploração de produtos hortícolas para consumo familiar atuando os réus como seus donos, de forma contínua, pacífica, à vista de todos e sem oposição de ninguém; que à data do início da posse, a Portaria nº 202/70, de 21 de abril ainda não vigorava, sendo, por isso, inaplicável; a divisão do prédio feita em 1969 não violou qualquer dispositivo legal.

Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os réus do pedido.

Interposta apelação pelo Magistrado do M. P., veio a Relação de Évora a proferir acórdão que a julgou improcedente, confirmando a decisão da 1ª instância.

Ainda inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para este STJ, como revista excecional.

A Formação a que alude o art. 672º, nº 3 do CPC proferiu acórdão que admitiu a revista como excecional, considerando verificada a invocada contradição de acórdãos quanto à questão de direito consistente em saber se a “usucapião prevalece, ou não, sobre a norma constante do art. 1376º, nº 1 do C. Civil, que impede a divisão da propriedade rústica em parcelas de área inferior à unidade de cultura”.

Nas alegações apresentadas, o recorrente, pugnando pela revogação do acórdão impugnado, formula as conclusões que seguidamente se transcrevem, expurgadas da parte relativa à admissibilidade da revista: (…) II - A não realização de escritura pública de divisão ou doação de fracções de um imóvel tem como consequência que a posse sobre tais fracções se exerce de forma oculta, porque assim se impede que possa ser conhecida pelo interessado Estado, não sendo, pois, de considerar posse pública, nos termos do artº 1262º do CC.

III - A posse não pública ou oculta, não pode constituir fundamento para a usucapião, como resulta claramente do disposto no artº 1297º do CC, pelo que “os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública” – e assim, no caso dos autos, dado que a posse só se tornou pública com a celebração da escritura de justificação, em 2015, só então se iniciou o prazo para a usucapião, que obviamente, ainda se não completou.

IV – Os negócios jurídicos de divisão e doação celebrados verbalmente em 1969 são nulos por violarem disposições legais de carácter imperativo, nos termos das normas conjugadas dos artºs 280º, 294º, 295º, 1287º e 1376º do CC, bem como o artº 107º do Dec. nº 16 731 o qual já previa a sanção de nulidade para a sua violação.

V – Tais normas, impeditivas do fraccionamento de uma parcela com área inferior a ½ hectare, como sucede no caso dos autos, constituem obstáculo intransponível ao reconhecimento jurídico da usucapião, precisamente porque consubstanciam a existência das “disposições em contrário”, a que se refere o artº 1287º do CC.

VI - Tendo o acórdão recorrido considerado que o acto de fraccionamento ocorreu na data da divisão e doação verbais realizadas em 1969, deveria então ter apreciado se esses actos de fraccionamento violavam as normas proibitivas do mesmo, vigentes nessa data – o artº 107º do Decreto nº 16 731 - o que não fez.

VII - Quer a divisão, quer a doação realizadas nos autos não enfermam apenas de um vício de falta de forma, mas igualmente de um vício material ou substancial, dado que ambas violam a proibição de fraccionamento prevista no artº 107º do Decreto nº 16 731, de 13/4/1929, vigente no ano de 1969, uma vez que criam parcelas com área inferior à legalmente permitida em tal norma – constituindo, em consequência, negócios jurídicos feridos de nulidade.

VIII - O artº 1287º do CC não exige a existência de qualquer “norma excepcional taxativa” a excluir expressamente a usucapião – exige simplesmente que exista uma disposição em contrário, impeditiva de que a posse conduza ao reconhecimento da usucapião – e essa norma existe e já existia à data da divisão e doação verbais – o artº 1376º do CC e o artº 107º do Dec 16 731.

IX - A jurisprudência do STJ tem vindo a entender que não pode ser reconhecida a usucapião em situações de violação de disposições urbanísticas, bem como de normas da propriedade horizontal, sendo certo que se trata de áreas em que não existe igualmente qualquer “norma excepcional taxativa” a excluir a usucapião – pelo que tal entendimento é inteiramente transponível para as situações de fraccionamento ilegal, dado que, face a uma parcela com área inferior à legalmente permitida, estamos perante uma fracção que não tem condições de constituir uma unidade independente e distinta, sendo legalmente impossível a sua constituição como prédio autónomo.

X - Tal como sucede com uma fracção não independente no domínio da propriedade horizontal, também a parcela de prédio rústico ilegalmente fraccionado não pode ser susceptível de aquisição por usucapião, atento o disposto nos artºs 280º, 294º, 295º, 1287º,1302º e 1376º do CC.

XI - Aceitando-se, no caso dos autos, que o fraccionamento ocorreu na data do acto de divisão material, em 1969, por força da jurisprudência uniforme do STJ, é à legislação vigente nessa data – o artº 107º do Dec. 16 731 – que deverá atender-se, tanto para a definição das áreas permitidas, como para o regime de nulidade aí previsto - pelo que a posse dos RR sobre a parcela em causa não poderá ser reconhecida como conduzindo à usucapião, por violar o disposto em tal norma e nos artºs 280º, 294º, 295º, 1287º e 1376º do CC.

XII - Dispondo o artº 1287º do CC, que a usucapião opera, “salvo disposição em contrário”, deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do artº 1376º nº 1 do CC, que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.

XIII - Adoptando-se o entendimento de que o fraccionamento ocorre na data da divisão material/verbal, então o regime de nulidade que nessa data vigorava impõe que se considere tempestiva a acção proposta para além dos 3 anos posteriores a essa divisão verbal, dado que a nulidade é invocável a todo o tempo, nos termos do artº 286º do CC – pelo que a presente acção foi tempestivamente instaurada e a referida nulidade se não mostra sanada.

XIV - Afirmar a prevalência da usucapião sobre a proibição de fraccionamento significa manifestamente esvaziar de conteúdo o disposto no artº 1376º nº 1 do C. Civil, tornando-o na prática letra morta, face a uma mera decisão dos proprietários de dividir “de facto” um terreno cuja divisão a lei proíbe, bastando-lhes assim aguardar que o decurso do prazo da usucapião venha “legalizar” um acto cometido com violação de norma legal imperativa.

XV – O reconhecimento da usucapião com violação da proibição de fracionamento constitui, salvo melhor opinião, o reconhecimento de uma situação de abuso do direito, nos termos previstos no artº 334º do CC, uma vez que se mostra totalmente ilegítimo o exercício de um direito – a aquisição por usucapião – quando o titular não actua de boa-fé e antes visa obter um resultado que sabe perfeitamente que a lei lhe proíbe.

XVI - Se se considera que a usucapião não pode operar no caso de fracções de propriedade horizontal não autónomas por violação do artº 1417º do CC, por igualdade de razão deverá considerar-se que igualmente não opera a usucapião no caso de prédios rústicos fraccionados com violação do disposto nos artºs 1306º e 1376º do CC.

XVII...

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