Acórdão nº 5043/16.0TSTB.E1.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 11 de Abril de 2019
Magistrado Responsável | ILÍDIO SACARRÃO MARTINS |
Data da Resolução | 11 de Abril de 2019 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - RELATÓRIO O autor, Município de … intentou acção declarativa de mera apreciação negativa com processo comum contra a ré Santa Casa da Misericórdia de …, pedindo que seja reconhecido não ter a ré adquirido, por usucapião, a propriedade do prédio urbano, com a área coberta de 396,10 m2, a área descoberta de 310,50 m2 e logradouro com a área de 85,6 m2, composto por edifício de alvenaria, coberto com telha, destinado a balneário público com dois anexos, situado na Rua …, na freguesia de …, do concelho de …, que confronta do Norte e do Poente com cerca do Convento de …, do Sul com Convento de … e, do Nascente com Rua do …, inscrito na matriz predial urbana o artigo 1.833, da freguesia de … .
Alegou que a ré nunca exerceu uma posse jurídica com virtualidades usucapientes sobre tal prédio, devendo, como tal, ser ordenado o cancelamento da abertura de descrição e inscrição do direito a favor da ré, que promoveu na Conservatória do Registo Predial de …, com base na justificação notarial lavrada a 5 de Fevereiro de 2013 que, assim, impugna.
A ré contestou, excepcionando a ilegitimidade material do autor uma vez que reconhece não ser o proprietário (ou titular de qualquer outro direito real) do imóvel nem pretender reivindicar tal direito, pelo que não é interessado nos termos preconizados pelo artº 100º do Código do Notariado, carecendo, por isso, de legitimidade substancial ou material para estar em juízo, pelo que a ré deve ser absolvida do pedido.
Por impugnação, alegou, em suma, que desde 1919 foi construído um balneário no imóvel, edifício que foi depois doado à ré em 1922, que vem exercendo todos os actos materiais inerentes ao exercício do direito de propriedade sobre o edifício e o terreno onde se encontra implantado. O próprio Estado nunca manifestou qualquer oposição à conduta da ré, tendo mesmo reconhecido a sua propriedade do imóvel e nunca reclamando desta a entrega do imóvel. O Município autor solicitou à ré autorização para ocupar o edifício para os fins referidos no artigo 38º da petição inicial, ou seja, para ser ocupado e utilizado pelos serviços administrativos do Museu e como depósito de alguns bens do seu espólio. A ré nunca manifestou uma conduta compatível com a de mero detentor Termina pedido a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.
Replicou o autor alegando, em suma, que não contesta ser a ré proprietária do edifício do balneário …, enquanto benfeitoria construída em terreno alheio, mas tal não significa que detenha a posse jurídica do terreno onde o edifício está implantado o balneário e várias outras construções situadas na chamada cerca pequena do Convento de …, que a ré não alega serem de sua propriedade; a questão da legitimidade substancial ou processual já foi dirimida há muito, sendo pacífico o entendimento de que a legitimidade é sempre atinente à causa, o que implica a absolvição da instância e não do pedido.
O autor tem a concessão do conjunto do Convento de … por 20 anos, prorrogável, pelo que tem um interesse directo em impugnar a aquisição da propriedade por usucapião, terminando como na petição inicial.
No despacho saneador foi o autor julgado parte ilegítima e a ré absolvida da instância.
O autor interpôs recurso de revista per saltum e o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 28.06.2017, concedeu provimento ao recurso e declarou o autor parte legítima, ordenando o prosseguimento dos autos (fls 125 a 141).
Foi proferida sentença que julgando a acção procedente: - Declarou a inexistência, pela Ré Santa Casa de Misericórdia de …, IPSS, do direito de propriedade, por usucapião, sobre o prédio urbano, com a área coberta de trezentos e noventa e seis vírgula dez metros quadrados, a área descoberta de trezentos e dez vírgula cinquenta metros quadrados, e logradouro com a área de oitenta e cinco vírgula seis metros quadrados, composto por edifício de alvenaria, coberto com telha, destinado a balneário público com dois anexos, situado na Rua …, na freguesia de …, do concelho de …, que confronta do Norte e do Poente com cerca do Convento de …, do Sul com Convento de … e, do Nascente com Rua …, inscrito na matriz predial urbana o artigo 1.833, da freguesia de … .
- Ordenou o cancelamento da abertura da descrição e inscrição do direito de propriedade a favor da Ré Santa de Misericórdia de …, IPSS, efectuado na Conservatória de Registo Predial de …, com base na escritura pública de justificação notarial de 9/09/2013.
A ré recorreu da sentença e a Relação de Évora, no seu acórdão de 02.10.2018, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
Não se conformando com aquele acórdão, dele recorreu a ré, nos termos do disposto nos artigos 629º nº 2 alª c) e 672 alª b) do CPC, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
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O acórdão recorrido integrando o conceito de dupla conforme previsto no nº 3 do artº 671º do CPC, princípio seria insusceptível de recurso B) Porém, tal preceito exclui os casos em que o recurso é sempre admissível, sendo um desses casos, nos termos da al. c) do nº2 do artº 629º do CPC, prolacção contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.
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O acórdão recorrido contraria a doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/1996 publicado no Diário da Republica II série de 24/6/1996, que considera que “O corpus faz presumir a existência do animus“, entendimento que o acórdão sob impugnação não acolheu, sendo, pois admissível a revista nos termos da alª c) do nº 2 do artº 629º do Código do Processo Civil.
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Do acórdão recorrido sempre caberia revista excepcional, nos termos da alª b) do nº 2 do artº 672º do CPC, tendo em atenção o objecto do pleito, um imóvel que foi destinado a balneário público de 1926 a 1952, e que integra o património cultural da cidade de … e as partes na causa.
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Sempre foi pacificamente aceite na cidade a sua propriedade por parte da Santa Casa da Misericórdia e o não reconhecimento de tal propriedade por oposição do Município de …, revela-se com impacto social na cidade pois a conflitualidade decorrente da decisão judicial sob impugnação, fazendo prevalecer a posição menos aceite na sociedade pode determinar reacção social ou desconforto da população em relação a ambas as instituições.
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Afigura-se assim estar preenchido o requisito da alª b) do artº 672º nº 2 do CPC para, caso não se entendesse ser admissível revista, ser admissível revista excepcional, não obstante a “ dupla conforme”.
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O acórdão recorrido confirmou a sentença de 1ª instância que declarou a inexistência pela ré Santa Casa da Misericórdia de … do direito de propriedade por usucapião, sobre o prédio dos autos e que corresponde ao prédio onde se encontrava instalado o Balneário … na sequência de acção intentada pelo Município de … a impugnar e escritura de justificação notarial em que a ora recorrente se arroga proprietária por usucapião, decorrente da posse pública pacífica e de boa-fé de tal prédio.
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Resulta dos autos, e sempre foi aceite pelo autor Município de … que o edifício do Balneário foi doado à Santa Casa da Misericórdia inacabado, que terminou a sua construção, o equipou e o manteve em funcionamento até ao momento em que foi encerrado.
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Impugna o autor que o terreno em que foi implantado o edifício do balneário era terreno do Estado e que a posse exercida pela Santa Casa da Misericórdia seria uma posse precária, uma mera detenção.
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A escritura de justificação impugnada na acção, versando embora sobre todo o imóvel, teve por objectivo possibilitar o registo da propriedade a favor da justificante do edifício já anteriormente de sua propriedade e o registo da propriedade do terreno em que o mesmo se encontrava implantado, por em seu entender o ter adquirido por usucapião.
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Reconhecendo o autor Município que a Santa Casa da Misericórdia é o seu adquirente originário e que teve a posse jurídica do mesmo “ enquanto benfeitoria construída em terreno alheio”.
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Ora, o acórdão recorrido, mesmo em relação ao edifício (balneário), veio a considerar que tendo a ré actuado durante todo o tempo como uma detentora, sem intenção (animus possidendi) de agir como titular do direito de propriedade, não exerceu posse com animus de proprietário.
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Conclusão que se afigura incompatível com a doação dada como provada nos autos e bem assim com o efeito jurídico de tal negócio jurídico transmissão da propriedade da coisa e também com a própria aceitação da propriedade do edifício por parte do autor Município de … .
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Não se afigura existir qualquer dúvida quanto à propriedade plena do edifício do Balneário, sendo certo que o...
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