Acórdão nº 2100/11.2T2AGD-A.P2.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Junho de 2019

Magistrado ResponsávelFERNANDO SAMÕES
Data da Resolução19 de Junho de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Processo n.º 2100/11.2T2AGD-A.P2.S2[1] * Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]: I. Relatório AA, residente na ..., deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa, em processo comum, que lhe foi movida por BB, residente na ..., pedindo a extinção da execução, na parte que lhe respeita, decretando-se o levantamento das penhoras ordenadas.

Para tanto, alegou, em síntese, que: A sua responsabilidade pelo pagamento de dívidas da herança aberta por óbito de seu pai, CC, já foi consumida pelo pagamento de outros encargos da herança que em muito excedem o valor do seu quinhão hereditário.

Após a partilha, a herança dissolve-se e deixa de ter existência jurídica, por integração dos bens que a compõem no património pessoal dos herdeiros.

Os credores da herança poderão ainda exigir o cumprimento dos seus créditos directamente aos herdeiros, mas a responsabilidade pelas dívidas da herança mantém-se estritamente limitada ao valor dos bens que cada um dos herdeiros recebeu por sucessão.

Assim, o valor dos bens herdados por cada um dos herdeiros determina-se pela divisão do valor global dos bens da herança pela quota-parte que cabe concretamente ao herdeiro, nos termos da lei ou do testamento, não relevando, para este efeito, o valor patrimonial dos bens móveis ou imóveis adquiridos pelo herdeiro através da partilha, mas apenas o valor a que ele teve direito por sucessão, pois tudo o que exceda a sua quota-parte da herança é adquirido por transmissão onerosa decorrente do pagamento de tornas aos restantes herdeiros.

Como já suportou o pagamento de dívidas da herança de valor superior ao que recebeu por sucessão, entende, assim, que nada mais lhe pode ser exigido.

O exequente/embargado contestou, alegando que não resulta da sentença que serve de título executivo que a responsabilidade dos herdeiros de CC, incluindo o oponente, tenha ficado limitada ao valor da quota que cada um recebeu, sendo antes solidária a sua condenação no pagamento da indemnização ao exequente, e que existem na herança bens mais do que suficientes para satisfazer o seu crédito, pois para aferir o valor dos que integram a quota de cada herdeiro deve atender-se ao valor real dos bens à data da morte do autor da herança. No caso concreto da partilha da herança deixada pelo pai do oponente, os valores declarados pelos interessados na escritura são anormalmente baixos, sem a mínima correspondência com os valores reais dos bens à data em que foram herdados, pelo que o oponente age em claro abuso de direito e, subsidiariamente, sendo a partilha um negócio simulado no que respeita aos valores dos bens adjudicados aos herdeiros.

Dispensada a realização da audiência preliminar e elaborado despacho saneador, foi apreciada parcialmente a pretensão do oponente quanto à extensão da responsabilidade do herdeiro por encargos da herança após a partilha, tendo-se decidido que a responsabilidade é na exacta medida da proporção da quota que ao herdeiro coube na herança (cfr. fls. 163 a 165).

Dispensada a selecção da matéria de facto, prosseguiram os autos para audiência de discussão e julgamento, à qual se procedeu, após o que foi proferida sentença que julgou a oposição improcedente.

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3 de Dezembro de 2013, foi anulada essa sentença a fim de se proceder à avaliação dos bens que integram o património deixado por óbito de CC, por forma a que se apurasse o valor total do património hereditário para então se determinar o valor real do quinhão do apelante à data da partilha, e não à data da abertura da sucessão como havia sido interpretado na sentença censurada.

Realizadas as diligências tidas por convenientes, foi proferida nova sentença, onde foi exarada decisão que, julgando parcialmente procedente a oposição à execução, ordenou que a execução prosseguisse os seus ulteriores termos para a cobrança da quantia de € 39.221,44, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação do oponente para os termos da acção declarativa, bem como acrescida da sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A, nº 4, CC, desde o trânsito em julgado da sentença dada à execução.

Inconformado, apelou o exequente/embargado BB para a Relação do Porto que, por acórdão de 23/10/2018, julgou a apelação improcedente confirmando a sentença recorrida.

Continuando irresignado com esse acórdão, o exequente/embargado dele interpôs recurso de revista excepcional para este STJ, a qual foi admitida pela “Formação”, por acórdão de 11/4/2019, de forma definitiva (cfr. art.º 672.º, n.º 4, do CPC), com base no fundamento invocado – a al. a) do n.º 1 do citado art.º 672.º.

O recorrente apresentou as suas alegações com as conclusões que, apesar de extensas, aqui se transcrevem: «A. O presente recurso é interposto ao abrigo da al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, por estar em causa, no entender do Recorrente, "uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".

  1. De facto, no acórdão de que ora se recorre, o Tribunal da Relação do Porto decidiu confirmar a sentença de 1ª instância, entendendo que o Recorrido AA é titular de um quinhão hereditário correspondente a 1/6 do valor do acervo hereditário, independentemente do pagamento de tornas, C. O que perfaz, de acordo com aquelas instâncias, o montante de € 214.342,94, sendo por este valor, no entender daquela instância, que se deve aferir a responsabilidade daquele herdeiro pelas dívidas da herança.

  2. Com efeito, de acordo com a segunda instância, "a título hereditário o apelado integrou no seu património a quantia de € 214.342,94, e não a quantia de € 1.025.170,00".

  3. Conclui, nessa medida, o Tribunal da Relação que “é esse o limite da sua responsabilidade, pois o restante valor integrou o seu património em contrapartida de tornas, já pagas ou não" (realce acrescentado).

  4. Para chegar às conclusões a que chega, a Relação do Porto interpreta incorrectamente os princípios que enformam o Direito Sucessório português e, de um modo particular, as normas constantes dos artigos 2068.º, 2069.º, 2071.º e 2098.º do Código Civil, bem como do artigo 32.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.

  5. O acórdão recorrido labora, pois, em pressupostos errados e que não têm substrato ou correspondência no texto e na ratio da lei: H. Por um lado, a argumentação esgrimida pelo acórdão de que se recorre pressupõe que a distribuição equitativa dos quinhões, em caso de pluralidade de herdeiros, não depende do pagamento de tornas.

    I. Por outro lado, baseia-se no entendimento de que o facto de um herdeiro pagar encargos em excesso, sem que exista qualquer acordo subjacente, pode ser oposto aos credores, limitando a responsabilidade desse herdeiro perante os credores.

  6. Ora, estas interpretações e assunções colidem frontalmente com a letra e com a ratio daquelas normas jurídicas.

  7. Contendem, além disso, com matérias que foram objecto ainda de um reduzido tratamento jurisprudencial e que, nessa medida e atentas as consequências nefastas que a interpretação em causa comporta, carecem e justificam um maior aprofundamento e clarificação jurisprudenciais.

    L. Com efeito, a prevalecer uma interpretação neste sentido, permite-se um desvio inaceitável à regra constante do artigo 2068.º do CC, nos termos do qual "a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados" (realce acrescentado); M. Uma inadmissível excepção ao âmbito da responsabilidade do herdeiro, prevista no artigo 2071.º do CC; N. Desvirtuando ostensivamente o regime que o legislador pretendeu instituir ao prever, no n.º 1 do artigo 2098.º, que "efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança".

  8. Vem, além do mais, legitimar uma divisão que não respeite a igualdade dos herdeiros, fazendo com que os credores fiquem menos garantidos com a sucessão do que previamente à morte do de cujus.

  9. Contrariamente ao que se defende no acórdão da Relação do Porto de que ora se recorre, o regime da responsabilidade dos bens da herança pelas dívidas da herança pretende, do ponto de vista dos credores, garantir que não existe diferença para estes últimos entre ser ressarcido antes ou após a sucessão.

  10. E uma vez feita a partilha, o regime legal pressupõe que a divisão do património do de cujus tenha sido feita de forma equitativa entre os herdeiros, de modo que seja indiferente para o credor ser pago pela quota-parte de cada um dos herdeiros, ou pela herança como um todo.

  11. Tal só sucede, porém, quando os bens são de diferente valor, se houver lugar ao pagamento de tornas.

  12. Se o objectivo que preside à partilha é a igualação dos quinhões hereditários e não houve pagamento de tornas, os quinhões não são iguais.

  13. E se não são iguais, a responsabilidade dos herdeiros também não pode ser idêntica! U. Como se determina no artigo 2068.º, n.º l, o que responde pelas dívidas da herança são os bens da herança - a partilha dos bens nunca poderá pôr esta regra basilar em crise.

    V. Estas questões, além de inéditas, têm ainda a alarmante possibilidade de dar azo, ou legitimar, futuros abusos como o que sucedeu no caso que subjaz aos presentes autos.

  14. Para se eximirem das suas responsabilidades perante os credores, os herdeiros atribuem frequentes vezes ao património a adjudicar um valor muito inferior ao real (e com o qual os primeiros contavam quando o mesmo estava nas mãos do devedor originário, ou seja, do autor da herança), diminuindo assim, como que por magia, o "valor" das suas quotas e, consequentemente, a sua respectiva responsabilidade.

    X. A acrescer, e para limitar - ainda mais - a sua responsabilidade, apoderando-se e escondendo património de uma execução pelos credores, adjudicam a maior parte do património do de...

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