Acórdão nº 882/14.9TJVNF-G.G1.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Abril de 2019
Magistrado Responsável | GRAÇA AMARAL |
Data da Resolução | 02 de Abril de 2019 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça, I – relatório 1. AA, nos termos do artigo 146º, nº1 e 2, alínea b) e 148º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) propôs acção de verificação ulterior de créditos contra BB, Lda., declarada insolvente em 20-01-2015, a Massa Insolvente da BB, Lda. e Credores da Insolvente da BB, Lda, formulando os seguintes pedidos: - ser declarada a resolução dos contratos-promessa de compra e venda celebrados a 10-8-2006, dos quais fazem parte o aditamento de 2-3-2014; - ser-lhe reconhecido o direito a receber a quantia de € 335.000,00 a título de restituição em dobro do montante prestado a título de sinal e respectivos juros de mora vencidos, sempre acrescido de juros vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento, devendo tal crédito ser graduado no lugar privilegiado que lhe compete, nos termos dos artigos 755º e 759º do Código Civil; - ser-lhe reconhecido o direito a receber a quantia de € 45.000,00 a título de indemnização por benfeitorias realizadas na fracção em causa, sempre acrescido de juros vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento; - ser-lhe reconhecido o direito de retenção sobre as fracções autónomas correspondentes a duas habitações do tipo T2, identificadas pelas letras … e …, situadas respectivamente, nos blocos … e …, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …- fracções … e …, inscritas na respectiva matriz urbana sob os artigos … e …, para garantia do seu crédito de € 335.000,00 e bem assim dos respectivos juros de mora vincendos; - ser admitido, verificado e graduado no lugar que lhe competir, atento o direito real de garantia existente, o crédito ora reclamado, sempre acrescido de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
Fundamentou a acção no incumprimento, pela sociedade devedora BB, Lda. de dois contratos promessa de compra e venda relativos a dois imóveis (fracções … e …, inscritas na matriz urbana sob os artigos … e …) pelo preço, respectivamente de €100.000,00 e €90.000,00, celebrados em 04-09-2006 e 30-07-2007.
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A credora CC, SA e a Massa Insolvente deduziram contestação pugnando pela improcedência da acção.
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Proferido despacho saneador com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova e realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo as Rés do pedido.
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Inconformado, apelou o Autor, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães (por acórdão de 04-10-2018) julgado parcialmente procedente a apelação, declarando resolvidos os contratos-promessa de compra e venda celebrados, reconhecendo ao Autor o direito a receber a quantia de €335.000,00, a título de restituição em dobro do montante prestado a título de sinal e respectivos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até efectivo e integral pagamento, crédito a graduar sem direito de retenção sobre os mesmos.
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O Autor veio interpor recurso de revista formulando as seguintes conclusões (transcrição): “1ª. Estando provado que em relação a contrato promessa que tem por objecto duas fracções autónomas e que devia ser cumprido pela promitente vendedora até final de Janeiro de 2014, cabendo à mesma promitente a marcação da escritura; estando provado que a propriedade horizontal de que as fracções prometidas vender fazem parte foi constituída em 2010; estando provado que essas fracções autónomas foram penhoradas em 2013, motivo por que a promitente vendedora nem sequer marcou a escritura em 2014; estando provado que, em Janeiro de 2014, em lugar de marcar a escritura, a promitente vendedora antes declarou que “não tinha condições económicas que lhe permitissem desonerar o imóvel da hipoteca constituída a favor da entidade bancária”, ocasião em que fez um aditamento ao contrato, entregando as chaves das fracções que prometeu vender para que o promitente adquirente as acabasse porque “não tem disponibilidade financeira que lhe permita sequer a conclusão da obra”; constando dos autos que a insolvência foi requerida pelo próprio credor hipotecário, é inequivocamente seguro de concluir que o incumprimento era, desde o final de Janeiro 2014, impossível.
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De facto, estando a promitente vendedora em agonizantes dificuldades financeiras, não é concebível que alguma vez estaria em condições de cumprir a promessa de transmissão, livre de ónus e encargos, da propriedade das duas referidas fracções autónomas, sendo de concluir que, neste caso, a fixação de um prazo pelo outro contraente seria um acto inútil, uma pura perda de tempo - expressão retirada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2005, acima citado 3ª. Em face de um incumprimento definitivo anterior à insolvência, não há que ponderar a respeito da qualidade de consumidor por aplicação do Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, tirado a propósito de um incumprimento posterior a uma insolvência, pois que vigora, “tout court”, o disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 755.º, do Código Civil.
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Para os efeitos da aplicação do Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, consumidor é "a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional", ou seja que não destina os andares à revenda - expressão retirada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Maio de 2014 -sem deixar de fora “o promitente-comprador que, tendo embora arrendado o imóvel prometido comprar, não desenvolve qualquer actividade profissional ou empresarial relacionada com o mercado imobiliário” - expressão retirada do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Janeiro de 2015 - pois que dele se excluem apenas “aquele que adquire bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis.” - expressão retirada do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Março de 2017.
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Estando provado que o promitente adquirente de duas fracções autónomas, que é uma pessoa singular, beneficiou da entrega antecipada das fracções para as poder concluir pois que estavam inacabadas; estando provado que deu de arrendamento uma delas, donde decorre que concluiu essa fracção; estando provado que ao receber as fracções clausulou com o promitente alienante que podia para as fracções pedir água, luz e gás, é de concluir que as fracções autónomas não se destinavam a revenda, antes ao uso, próprio ou por cedência do gozo (arrendamento); convicção que sai reforçada pela circunstância de uma das fracções, como se provou, ter sido efectivamente dada de arrendamento.
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Tendo em vista a aplicação do Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, quando o tribunal entender que para a decisão relativa à verificação do direito de retenção, importa apurar se o reclamante se dedica ou não a uma qualquer actividade, e não o tendo o reclamante alegado factos a esse respeito, deve o mesmo tribunal, no uso do poder-dever que resulta das disposições da alínea b), do n.º 2, do artigo 590.º e do artigo 6.º, ambos do Código de Processo Civil, determinar a notificação para aperfeiçoamento da reclamação; da igual modo e detectando-se essa insuficiência no Tribunal da Relação, deve este, no uso do poder-dever da alínea a), do n.º 2, do artigo 662.º, do mesmo Código, determinar a ampliação da matéria de facto; e, num caso como noutro, sempre iluminados pelos princípios do acesso à justiça, da cooperação, do dever de auxílio e da boa fé processual, dos princípios antiformalista, pro actione e do in dúbio pro habilitate instantiae (cf. artigos 4.º, e 6.º a 8.º do Código de Processo Civil).
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E, se isto é assim em geral, é-o por maioria de razão quando, afinal de contas, o que está em causa é um requisito (o de o bem se destinar a um consumidor) que não consta do texto da lei (alínea f), do n.º 1, do artigo 755.º), antes foi acrescentado por jurisprudência (ainda que bem e iluminada pelo espírito do legislador).
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De resto, “Se a parte não foi bem patrocinada e o articulado apresentado é tecnicamente imperfeito e impreciso, mas ainda assim não é inepto, por nele estarem indicados de forma intelegível os factos essenciais que suportam a pretensão e as razões de direito em que a mesma se funda, tem o julgador o poder-dever de auxiliar aquela parte, para que as deficiências técnicas do seu patrocínio não comprometam irremediavelmente os seus direitos ao acesso à justiça e a uma igualdade substancial. Nessa medida, o julgador deve apelar à cooperação e boa fé processual de todos os intervenientes processuais...
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