Acórdão nº 2344/16.0T8PNF.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 31 de Janeiro de 2019

Magistrado ResponsávelHELDER ALMEIDA
Data da Resolução31 de Janeiro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1] I – RELATÓRIO[2] 1.

AA - DESIGN, S.A., veio intentar a presente acção declarativa de condenação contra a CAIXA BB DE ..., CRL e a CAIXA CENTRAL - CAIXA CENTRAL BB, CRL, a final peticionando sejam as Rés condenadas: a) - a reembolsar à A. o valor de 57.685,01€; b) - bem como a indemnizar a A. a título de juros computados à taxa comercial legal desde o dia 23/01/2016 até efectivo e integral pagamento, acrescidos de 10%.

Para tanto alegou - em síntese - a outorga com as Rés de um contrato de emissão de cartão de débito, sendo que por força do extravio desse mesmo cartão, ocorrido na noite de 19.01.2016, foram realizadas, no dia 20.01.2016, operações de pagamento não autorizadas pela A., no valor global de 58.767,98 €, o qual foi debitado na conta de depósitos à ordem a que estava associado o mesmo cartão.

Mais alegou que, sem qualquer atraso - porquanto imediatamente após ter tido conhecimento do facto -, avisou as Rés da ocorrência de tal extravio.

Do aludido montante de operações não autorizadas – prossegue - apenas lograram as Rés “recuperar” a importância de 1.072,82€, pelo que a A. regista uma perda de 57.685,01 €.

A utilização do cartão não foi efectuada com quebra de qualquer protocolo de segurança, nomeadamente do PIN, que não estava anotado em qualquer lado, antes e exclusivamente memorizado. O cartão de débito estava também assinado, pelo que as operações só foram possíveis por negligência dos operadores comerciais que aceitaram as operações de pagamento sem se certificarem da identidade do portador do cartão.

Ora – acrescentou - tal como resulta do edifício legislativo e contratual aplicável e invocado, a realização deste tipo de operações, salvo actuação fraudulenta ou um incumprimento deliberado do cliente, constitui um risco inerente ao serviço (de pagamento e de depósito bancário) prestado. No caso não se configura qualquer actuação fraudulenta da A. ou um incumprimento deliberado de qualquer das obrigações, nem tão pouco se pode imputar a si uma “negligência grave”, nomeadamente para efeitos do disposto no n.º 1[3] do artigo 72.º do DL N.º 317/2009, de 30 de Outubro.

  1. Contestou a 1ª Ré, concluindo ter havido negligência grave nos comportamentos da A. e do titular do cartão subtraído, ao não comunicarem atempadamente o desapossamento daquele e, bem assim, pelo facto de tal cartão não se achar assinado, o que determinou a impossibilidade de conferência de assinaturas e, assim, os levantamentos em apreço.

    Concluiu com a respectiva absolvição do pedido.

  2. Contestou a 2ª Ré em sentido semelhante à primeira, mais aduzindo que, enquanto Caixa Central, somente procede à emissão dos instrumentos de pagamento, actuando junto da marca (in casu, a VISA) em representação das Caixas. Donde o cartão de débito em apreço somente pôde ser atribuído à A. enquanto associada/cliente da Caixa BB de …, pelo que não lhe cabe responsabilidade alguma, tanto mais que não é parte no convocado contrato.

    Rematou, também, com a sua absolvição do pedido.

  3. Após a audiência de julgamento, foi proferida Sentença, a qual julgou a acção procedente, por provada, e, em consequência, condenou as RR. CAIXA BB DE ..., CRL e CAIXA CENTRAL - CAIXA CENTRAL BB, CRL: a) - a reembolsar/satisfazer à A. o valor de 57.685,01€ (cinquenta e sete mil, seiscentos e oitenta e cinco euros e um cêntimo); b) - acrescida aquela quantia de juros computados à taxa legal relativa às obrigações da titularidade de empresas comerciais, vencidos desde o dia 23/01/2016 até efectivo e integral pagamento, sendo-o a 2ª Ré ainda acrescida aquela taxa legal de 10%.

  4. Inconformada, a 2ª Ré, Caixa Central - Caixa Central BB, CRL interpôs recurso de apelação, o qual não foi admitido, com fundamento em intempestividade.

  5. Igualmente inconformada, a 1.ª Ré Caixa BB de ..., CRL interpôs também recurso de apelação, relativamente ao qual a 2.ª Ré veio apresentar requerimento de adesão, este por manifesta intempestividade também não admitido.

  6. Pelo Acórdão de fls. 379 e ss., foi o recurso de apelação atravessado pela 1.ª Ré julgado procedente e, por isso, revogada a decisão recorrida e ambas as Rés absolvidas do pedido.

  7. Por sua vez Irresignada, a A. interpôs o vertente recurso de revista, cuja alegação finaliza com as seguintes Conclusões: 1 - O Tribunal da Relação deveria ter rejeitado o recurso da matéria de facto impetrada pela Ré Caixa BB de …, porquanto a mesma, nas suas alegações da Apelação, não cumpriu o ónus de indicar quais os concretos meios probatórios (antes se referiu, em bloco, a toda a prova produzida) que impunham decisão diversa ao facto único cujo julgamento então impugnou (do facto M) - pelo que, ao admitir o recurso da matéria de facto, o Tribunal a quo violou o artigo 640.° do CPC.

    2 - Discorda-se do Tribunal recorrido quando defende que o utilizador de um cartão bancário de débito, ainda que tenha a representação mental [como demonstrado no facto Q] de que o mesmo não tinha sido extraviado, tem a obrigação de cancelar o mesmo junto da instituição bancária, à cautela, quando se apercebe que outros documentos haviam sido extraviados, sob pena de agir de forma gravemente negligente, nos termos e para os efeitos do n.° 1 do artigo 72.° do RSP.

    3 - Pela própria natureza do conceito, a negligência grave não pode ser "preenchida" pela omissão de um acto de prudência ("cautela") que o utilizador do cartão considera desnecessário por estar convicto de que o meio de pagamento em causa não se extraviou.

    4 - Resulta do probatório que a Autora demonstrou que o extravio do cartão foi avisado sem qualquer atraso, porque imediatamente após ter tido conhecimento do mesmo (facto I), enquanto as RR, a quem cabia a alegação e prova de um comportamento gravemente negligente, nada lograram provar.

    5 - Ademais, nenhuma das RR demonstrou que a Autora tivesse tido efectivo conhecimento do extravio do instrumento de pagamento em momento anterior ao da comunicação - o que a ocorrer, constituiria a tal atitude temerária e indesculpável de que fala o Acórdão.

    6 - Igualmente não lograram as Rés provar - e esse o cerne da sua defesa exceptiva - que o cartão de débito não estava assinado, e que, com isso, o cliente violou o artigo 67.° do RSP.

    7 - O RSP estabelece que o risco de utilização do cartão é inerente ao prestador de serviços no caso de operações de pagamento não autorizadas, resultando que, via de regra (vide art.° 83° do RSP) é o banco responsável por operações não autorizadas pelo utilizador - o que, de resto, é consonante com o regime do depósito bancário.

    8 - Como especificidade deste regime dos pagamento electrónicos salienta-se a que é ao depositário e / ou o prestador de serviços que incumbe demonstrar a culpa (na modalidade de negligência grave grosseira nos termos do RSP) do utilizador do meio de pagamento sob pena de ter de assumir a perda de valores sacados através da realização de operações não autorizadas pelo cliente.

    9 - No caso concreto ambas as instâncias deram como não provada a única alegação deduzida em sede de defesa exceptiva “3 o cartão de débito utilizado não se encontrava assinado no seu verso pelo utilizador autorizado pela A", pelo que a solução a dar ao caso dos autos só podia ser a inversa àquela que foi adoptada pelo Tribunal recorrido.

    10 - Do probatório ressalta a constatação de que o utilizador do cartão de débito ilicitamente utilizado não só não sabia que o mesmo estava entre os objectos extraviados em Londres, como, pela positiva, estava convencido de que o mesmo -como aliás habitualmente ocorria (facto N) - não estava na "carteira" que se encontrava dentro da "mala a tira-colo" e que se extraviou em Londres.

    11 - Sendo o cartão nominativo, as operações só foram possíveis por negligência dos operadores comerciais que aceitaram as operações de pagamento sem se certificarem da fidedignidade da assinatura e da identidade do portador do cartão, demonstrado que ficou que foram realizadas mais de uma dúzia de operações de pagamento não autorizadas pela Autora no dia 20/01/2016, no valor global de 58.767,98 € através da aposição de assinatura que não correspondia à do utilizador do cartão de débito em causa (facto R e novo facto U).

    12 - Pelo que o risco deve correr por conta dos operadores comerciais, e, em primeira linha, pela entidade que disponibiliza o meio de pagamento ilicitamente utilizado (sem prejuízo do direito de regresso que esta tenha, p.e., junto da VISA ou do lojista, atentos os benefícios e culpa que existirão na esfera dessas entidades).

    13 - Certo é que, ao contrário do decidido em segunda instância a Autora avisou, sem qualquer atraso (porque imediatamente após ter tido conhecimento do facto), as Rés da ocorrência de tal extravio (facto N e Q).

    14 - A circunstância de o utilizador do cartão não ter cancelado o cartão logo após o extravio do mesmo não foi motivada por um mero "desapercebimento" ou "distracção", antes teve origem numa representação (equivocada) de um facto (de que o cartão de débito em causa não se encontrava entre os bens extraviados, pois tinha ficado em Portugal, como aliás, era habitual - conforme facto N e Q).

    15 - E tanto assim foi que ficou demonstrado que diligentemente cancelou o cartão de crédito (cf. facto G) porque representou que, esse sim, como habitualmente, estaria entre os bens levados em viagem, e, por isso, poderia ter sido extraviado.

    16 - Uma vez que o utilizador do cartão estava convicto de que o cartão não se encontrava entre os objectos extraviados, mas a milhares de quilómetros, em Portugal, as concretas "circunstâncias do ocorrido" não faziam prever que a utilização abusiva do cartão fosse provável, antes impossível, ao contrário do que entendeu o Acórdão recorrido.

    17 - Ou seja, estando o utilizador do cartão de débito convicto de que o mesmo não havia sido extraviado (ao ponto de que cancelou o cartão de crédito e o de débito não) não se pode qualificar o seu comportamento como eivado de uma "imprudência e temeridade...

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