Acórdão nº 1/16.7T8ESP.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 06 de Novembro de 2018

Magistrado ResponsávelMARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Data da Resolução06 de Novembro de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, I – Relatório AA intentou ação judicial contra BB e mulher, CC, pedindo que estes sejam condenados: a) a reconhecerem à A um direito de “servidão de passagem” exclusiva, adquirido por usucapião, sobre a faixa de terreno identificada no artigo 12.º da petição inicial; b) a absterem-se de, por qualquer meio, “limitarem o direito de passagem da A” sobre a referida parcela de terreno, “nomeadamente” de abrirem a porta na parede poente do seu prédio e de saírem para o caminho por essa porta, de se debruçarem nas janelas e de colocarem roupas a secar no exterior ou outros bens; c) a não praticarem atos suscetíveis de impedirem ou de restringirem o “exercício do direito de passagem” da A pela mesma faixa de terreno.

Para o efeito, a A alegou que é proprietária dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e sob n.º ..., cujo acesso sempre pressupôs, tanto pelos sucessivos proprietários e possuidores dos mesmos como, atualmente, pela A, a utilização de uma tira de terreno com cerca de 30 metros de comprimento e de largura variável. Alegou que tendo essa banda de terreno sempre consistido no único modo de aceder àqueles prédios, há mais de sessenta anos que tanto a A como os seus ante-possuidores passam pelo caminho constituído por essa faixa, em exclusividade, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de exercer um direito próprio e de não lesar direitos alheios. Por isso se terá constituído, conforme o o art. 1547.º do Cód. Civil, por usucapião, um direito de servidão de passagem. Essa faixa confronta com o prédio dos RR que, sem qualquer título que o permita, decidiram abrir na parede lateral do seu prédio uma porta e duas janelas que dão para o caminho, construções que põem em causa o direito da A e visam impedi-la de aceder aos seus prédios pelo caminho.

Os RR contestaram a ação, propugnando a improcedência total do pedido. Defendendo-se por exceção, alegam que a questão ora trazida a juízo já foi anteriormente decidida no processo n.º 60/09.9TBESP. Nesta ação, proposta contra os RR, a A pediu que lhe fosse reconhecido o “direito de propriedade” sobre a parcela de terreno que ora menciona e os RR fossem condenados a “tapar as janelas e a porta” abertas na parede nascente do seu prédio e a absterem-se da prática de “atos que ofendam ou perturbem o seu direito de propriedade”. O pedido da A de reconhecimento do direito de propriedade foi então julgado improcedente, tendo o tribunal entendido que, em virtude da sua localização e posição, assim como da configuração dos edifícios que a ladeiam, a parcela de terreno em apreço reúne as condições para ser usada, e foi usada, quer pela família da A e pelos seus antecessores, quer pelos RR e seus antecessores, sem que qualquer das partes possa reivindicar para si um estatuto de exclusividade, próprio do exercício de poderes de facto correspondentes ao direito de propriedade. Na presente ação, a A omite o que ficou decidido na anterior e introduz três alterações: antes arrogava-se a “propriedade” da referida tira de terreno, agora reclama para si o “uso exclusivo”; antes pedia a condenação dos RR a taparem as janelas e a porta e a altearem o muro, agora pretende que os RR não saiam pela porta para o caminho, não se debrucem nas janelas, nem coloquem roupas a secar no exterior, ou outros bens; antes requeria que os RR se abstivessem da prática de atos que ofendam ou perturbem o “direito de propriedade”, agora exige que se abstenham de praticar atos que impeçam ou limitem o exercício do “direito de passagem”. Deste modo, o efeito prático ou fim pretendido nas duas ações pela A é o mesmo, pelo que não se pode escapar ao efeito positivo de caso julgado (força e autoridade do caso julgado).

Em reconvenção, os RR pediram a condenação da A, entre outras coisas, a reconhecer-lhes o direito de “aceder e passar pelo caminho” e a remover imediatamente o portão de acesso ao caminho e o pilarete de suporte do portão implantado debaixo do beiral do telhado dos RR.

A A respondeu à exceção, sustentando que existe uma diferença substancial entre as duas ações: enquanto na anterior estava em causa a propriedade do caminho, nesta discute-se um direito de servidão de passagem sobre o caminho; que os RR não deduziram reconvenção na ação anterior, pedindo o reconhecimento de qualquer direito exclusivo sobre o caminho e que a decisão da ação assentou exclusivamente na discussão sobre o direito de propriedade invocado pela A, pelo que não se verifica a tripla identidade que é pressuposto do caso julgado. Acrescenta ainda que o caso julgado não abrange os factos decididos na outra ação nem a fundamentação do tribunal, pelo que os mesmos podem de novo ser discutidos.

Findos os articulados, foi proferida decisão, na qual, nos termos “dos arts. 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea i), e 578.º, todos do Cód. Processo Civil”, se julgou “verificada a autoridade de caso julgado” e absolveram-se “os réus … da instância”.

A A interpôs assim recurso de apelação, refutando a existência de caso julgado por inverificação dos respetivos pressupostos. A Recorrida contra-alegou, defendendo a ausência de fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção da decisão.

Os Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto acordaram “em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, julgando improcedente a excepção arguida pelos réus a propósito do caso julgado”.

Não se conformando com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do art. 629.º, n.º 2, al a), os RR interpuseram recurso de revista, terminando as respetivas alegações com as seguintes CONCLUSÕES: “1ª – Salvo melhor opinião, o douto acórdão recorrido não trem razão quando decidiu não haver ofensa de caso julgado pois tal ofensa é clara e, por isso, o douto acórdão viola o caso julgado já formado e ao mandar prosseguir o processo afecta a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias e a estabilidade e certeza das relações jurídicas quanto à parcela de terreno em apreciação.

  1. – No Pº 60/09.9TBESP que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de ..., por sentença de 9/05/2013, que consta dos autos e foi junta com a contestação (cuja autenticidade não foi impugnada e aceite por todos) confirmada pelo Tribunal da Relação foi discutida e indagada e decidida a controvérsia das partes quanto à faixa de terreno denominada servidão de passagem.

  2. – Não podia o Tribunal da Relação desvalorizar a discussão nesse processo e a decisão acerca da matéria de facto e questões jurídicas, não acatando as questões comuns constantes dessa primeira acção — ofendendo assim o caso julgado já estabelecido.

  3. – O efeito prático ou fim pretendido (utilização e posse exclusiva do caminho/faixa de terreno e proibição dos RR usarem a porta e janelas abertas para lá) nas duas acções é o mesmo. Com a diferença mínima na argumentação usada (mudando apenas o nome ou qualificação jurídica): no processo anterior invocava a propriedade do caminho e agora invoca a posse e uso exclusivo desse mesmo caminho. Todavia o que é peticionado e os direitos pretendidos pela autora de gozo pleno e exclusivo do uso e fruição correspondem ao direito de propriedade constante do artigo 1305º do Código Civil.

  4. – Dispõe o nº 3 do artigo 5º do CPC que «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito» e, no caso, o douto acórdão ateve-se à nova alegação da autora quando devia ter procedido a diferente subsunção ou qualificação jurídica da questão em apreciação pois o efeito pretendido pela autora em ambos os processos é o mesmo.

  5. – Assim, estando já discutido e decidido, na acção anterior, que os RR fruíram a faixa de terreno há 20,30, 40 e mais anos de forma pública, pacífica e contínua, sempre convencidos que têm um legitimo direito próprio a usarem a faixa de terreno, não pode agora o tribunal voltar a apreciar o mesmo direito e deferir o pedido da autora a retirar aos RR esse direito já reconhecido — ofensa positiva de caso julgado 7ª – Estando já discutido e decidido na anterior acção que a porta e janelas do prédio dos RR voltadas para a faixa do terreno já lá existem desde tempos imemoriais e que já existiam quando os RR compraram o seu prédio em 10/05/1989 (o marido da autora só adquiriu os prédios posteriormente em 1993) não pode agora o tribunal voltar a apreciar o mesmo direito e deferir o pedido da autora para os RR não abrirem a porta, nem se debruçarem nas janelas — ofensa positiva de caso julgado.

  6. – Não está em causa, nesta acção, o exercício de qualquer servidão predial de passagem porque: a) A autora não formula qualquer pedido de reconhecimento de servidão predial de passagem — o pedido não é o encargo de um prédio em benefício de outro mas uma servidão de passagem pessoal e exclusiva em benefício da autora (quando a lei portuguesa não admite servidões pessoais), ou seja, formula um pedido ilegal e impossível. b) Não identifica o prédio serviente por força do artigo 1543º do Código Civil — o que é essencial e necessário para o cumprimento do disposto nos artigos 3º, nº 1, alínea a), 2º, nº 1, alínea a), 8º-A, nº 1, alínea b), 8º-B, nº 3, alínea a) do Código de Registo Predial após 2008. c) Não intenta a acção, em litisconsórcio necessário, também contra o proprietário do prédio serviente — o que constitui motivo de ilegitimidade nos termos do artigo 33º do CPC. d) Não alega o animus da posse como titular de um direito de servidão de passagem para justificar a usucapião e...

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