Acórdão nº 17/14.8TBVZL.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 27 de Setembro de 2018

Magistrado ResponsávelMARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Data da Resolução27 de Setembro de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

I – Relatório 1. AA instaurou a presente ação declarativa com processo comum contra BB, CC e DD, pedindo que: a) – Seja reconhecida a sua qualidade de herdeira de EE; b) – Seja declarada a ineficácia dos contratos de compra e venda referidos nos arts. 25º, 27º e 69º, da p.i.; c) Seja declarada a invalidade da hipoteca constituída pelos 2º e 3º réus a favor da Caixa FF sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1…4, e inscrito na matriz sob o art. 516º, ordenando-se o cancelamento das hipotecas ou demais ónus que incidam sobre o prédio, a favor da FF;[1] c) – Seja ordenado o cancelamento dos registos de aquisição a favor dos réus; d) – Sejam os réus condenados a entregar à autora os bens objeto dos contratos de compra e venda referidos na p.i..

Subsidiariamente, caso se venha a verificar uma impossibilidade legal de restituição dos bens à herança, designadamente por serem os réus merecedores da tutela consagrada no art. 291º, CC, pediu a condenação dos réus a pagar-lhe, a título de indemnização, uma quantia de montante igual ao valor dos ditos imóveis.

[2] Para tanto, alegou, em síntese, que: Em 2.6.2008 faleceu, no estado de viúvo e sem testamento, EE, pai da autora.

O falecido deixou dois filhos, um dos quais, por escritura pública outorgada em 25.7.2013, repudiou a herança.

A autora é, portanto, a única herdeira do seu pai.

A ré BB, com quem o falecido EE viveu nos últimos anos da sua vida, aproveitando-se do seu estado de dependência e de fragilidade física e psicológica, dele obteve duas procurações, com as quais logrou efetuar a venda a si própria de inúmeros prédios de que aquele era titular, uma das quais precedida de “justificação”. Porém, o preço de tais vendas, ainda que inferior ao valor real dos prédios, não chegou a ser pago.

Posteriormente, a ré BB vendeu aos demais réus três dos prédios que, nos termos atrás referidos, havia adquirido a EE.

Atendendo, porém, ao montante do preço declarado nas escrituras e ao facto de o mesmo não ter sido efetivamente pago, é de considerar que as transações em causa foram efetuadas de forma contrária aos fins da representação concedida àquela ré e com abuso dos seus poderes, sendo que também não foram ratificadas pelo representado.

Por outro lado, num dos casos, a compra e venda foi realizada após a morte do mandante, ou seja, já depois de caducado o mandato conferido por EE à ré BB.

Acresce que o segundo réu e a terceira ré agiram de má-fé, pois, muito embora tivessem sido avisados de que a presente ação iria ser instaurada, tal não os impediu de celebrar o contrato de compra e venda aqui posto em causa.

2.

Os réus contestaram, pedindo que a ação fosse julgada improcedente.

2.1.

Em sua defesa, a ré BB alegou, em síntese, que: Viveu com EE, em união de facto, desde 1992 até à data do seu óbito.

Os negócios em causa nesta ação foram celebrados através de procuração e com respeito pela vontade do falecido EE, tendo sido pago o correspondente preço.

2.2.

Por sua vez, os réus DD e CC alegaram, em resumo, que: Para a aquisição dos imóveis, recorreram à mediação de uma empresa imobiliária e a crédito bancário, desconhecendo a existência de qualquer vício que pudesse afetar a validade da sua aquisição pela anterior proprietária.

Também nunca foram informados da existência de qualquer processo judicial, visando impugnar os atos translativos da propriedade dos imóveis.

Em qualquer caso, alegaram que a anulação do negócio não lhes é oponível, dado que a presente ação não foi instaurada nem registada no prazo de três anos posteriores à conclusão do negócio em causa, tendo os réus, por seu turno, registado a sua aquisição em data anterior à da propositura e do registo desta ação.

Subsidiariamente, e para o caso de a ação proceder, deduziram reconvenção pedindo a condenação da autora a pagar-lhes a quantia que se venha a liquidar posteriormente, correspondente ao valor das obras e das despesas que efetuaram nos prédios que adquiririam, bem como o reconhecimento do direito de retenção sobre os imóveis até que se encontre pago tal montante.

3.

Na réplica, a autora alegou que eventuais obras realizadas pelos reconvintes terão tido lugar após a instauração da presente ação, sendo certo que era do conhecimento geral que os negócios em questão iriam ser impugnados judicialmente. Com tal fundamento, pediu a improcedência da reconvenção.

4.

A autora requereu a intervenção principal provocada da Caixa FF, a favor de quem se mostra registada hipoteca sobre o prédio urbano adquirido pelos réus, alegando que a nulidade da compra e venda desse imóvel determinará, necessariamente, a invalidade da hipoteca constituída pelos 2º e 3º réus.

5.

Por despacho de fls. 258-260, foi admitida a intervenção principal provocada da Caixa FF. Na contestação apresentada, a FF alegou ter celebrado com os réus um contrato de mútuo, garantido por hipoteca constituída sobre imóvel em discussão nesta ação. Mais alegou desconhecer os demais factos relatados nos autos.

6.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedentes quer a ação quer a reconvenção: I) – Reconheceu a autora como herdeira de EE; II) - Declarou ineficazes os negócios celebrados por escritura pública, identificados nos pontos 7.17, 7.19 e 7.24 dos factos provados, com exceção do ato de justificação da aquisição; III - Declarou nula a hipoteca constituída a favor da Caixa FF sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1…4, inscrito na matriz sob o artigo 3…7, registada mediante a ap. 1483 de 2014/01/17; IV) – Determinou o cancelamento das inscrições do registo predial efetuadas com base nas escrituras e título suprarreferidos, com exceção da referente ao ato de justificação da aquisição, bem como da hipoteca mencionada no artigo anterior; V) - Condenou a autora a pagar aos réus CC e DD a quantia de EUR 17.593,81, a título de benfeitorias por estes realizadas nos imóveis que adquiriram; VI) - Condenou os réus CC e DD a entregar à autora os imóveis identificados em tais escrituras, reconhecendo-lhes o direito de retenção sobre os imóveis adquiridos por via da escritura mencionada no ponto 7.24 dos factos provados até que lhes seja paga a quantia de EUR 17.593,81; VII) – Condenou a ré BB a entregar à autora os demais imóveis identificados nas escrituras mencionadas nos pontos 7.17 e 7.19 dos factos provados.

7.

Inconformados com a sentença, dela apelaram a Caixa FF, SA e os réus. A autora, por sua vez, interpôs recurso subordinado, tendo o Tribunal da Relação de … proferido acórdão com o seguinte dispositivo: “(…) Concede-se provimento ao recurso interposto por BB, Ré, decretando a “inexistência, nas escrituras púbicas ora em apreço, de actuação da recorrente com abuso de representação, confirmando-se os plenos efeitos das mesmas”; “Igualmente, concedendo provimento ao Recurso de CC e DD, réus, alterando-se a matéria de facto, excluindo-se “dos factos dados como provados os factos 7.23 e 7.26 e aditando-se o facto “foi vontade do representado atribuir à sua representante, ré BB, aqueles prédios, sem que o haja, naquelas circunstâncias, feito depender de directa e adrede forma, valor e correspondente entrega àquele”, por, assim, se haver provado que “a Ré BB agiu na circunscrição dos poderes que lhe foram atribuídos, por isso, também, declarando válido o negócio celebrado por esta com os Réus apelantes, que se absolvem do pedido”; “Nega-se provimento, com base nas razões expostas, ao recurso da Caixa FF, SA, Interveniente Principal, bem como provimento se nega ao RECURSO SUBORDINADO, interposto pela Autora AA, quanto a estes, se mantendo, na dimensão e abrangência do peticionado, a decisão.”.

8.

Inconformada com o assim decidido, veio a autora interpor recurso para este Supremo Tribunal, dizendo, em conclusão: 1. A matéria de facto apurada justifica o pedido na ação e a sentença de procedência, de ineficácia das três vendas em causa: as compras da BB, ambas, por abuso de representação, e a segunda, de 2008, também por representação sem poderes; a compra de CC e DD por afectada do vício derivado das precedentes.

2. Em causa, essencialmente, uma situação em que o finado, velho, incapaz e doente, passou procuração à concubina e esta vendeu a si própria os bens todos do mandante, por preço de um décimo do valor de mercado, que aliás não pagou, sendo a segunda venda posterior à morte do dominus.

3. É patente no caso o abuso de representação, por falta de contemplatio domini, guiando-se a procuradora pelo seu interesse em exclusivo, com prejuízo manifesto do interesse do mandante (art. 268.2, C.Civil).

4. Como é patente, ainda, quanto à segunda venda, posterior à morte do mandante, a falta de poderes de representação da procuradora (art. 269.-, C.Civil), por o mandato caducar com a morte (arts. 265º-1,1174º-a), 1175º).

5. A procuração, com efeito, não caducaria se fosse passada no interesse do procurador, mas não basta para tal a declaração no documento, é preciso ainda uma relação subjacente que vincule o mandante a uma prestação em favor do procurador, relação que não foi alegada nem provada.

6. A alteração da matéria de facto, no caso dos autos, não briga com estas conclusões: a) A eliminação do facto 7.23 (A procuradora quis, não comprar, mas receber os bens gratuitamente) é irrelevante, tal como era irrelevante e sem interesse o facto para o caso; b) A eliminação do facto 7.26 (A procuradora sabia que prejudicava o mandante, ao fazer as compras pelos ditos preços e sem os pagar) é igualmente irrelevante, posto que a conclusão decorre cristalina do quadro factual do contexto; c) O facto aditado (o finado quis atribuir os bens à procuradora, independentemente do meio utilizado, do valor envolvido e do pagamento do mesmo) é também ele irrelevante, já que tal vontade multímoda não é reconhecida pelo ordenamento, fora do quadro de um negócio específico, nem o facto pode servir para sanar, por via gratuita, um negócio oneroso inquinado na sua essência.

7. O...

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