Acórdão nº 4051/10.9TBPTM.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Setembro de 2018

Magistrado ResponsávelANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Data da Resolução18 de Setembro de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Relatório I – AA, residente em Portimão, intentou contra Companhia de Seguros BB, S.A.

, com sede em Lisboa, acção declarativa, com processo ordinário, a que foi apensada a que corria termos entre as mesmas partes pelo mesmo tribunal sob o n.º 4570/11.0TBPTB, alegando, em síntese, que: Celebrou com a ré três contratos de seguro do ramo vida e acidentes pessoais, com as coberturas ou garantias de morte (principal) e de invalidez total e permanente (complementar).

No dia 14 de Dezembro de 2009, na vigência desses contratos, foi colhido por um comboio, sofrendo em consequência a amputação dos dois membros inferiores e ficando afectado de invalidez total e permanente, situação coberta pelos seguros contratados.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir a condenação da ré a pagar-lhe: 1 - no âmbito do processo principal, o montante de €164 258,51 (cento e sessenta e quatro mil, duzentos e cinquenta e oito euros e cinquenta e um cêntimos), acrescido dos juros de mora desde a citação e até integral pagamento; 2 - na acção apensada, a quantia de €105 742,47 (cento e cinco mil, setecentos e quarenta e dois euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros vincendos até integral pagamento.

A ré apresentou contestação em que, depois de confirmar os contratos de seguro, sustentou que a situação do autor se encontra excluída do seu âmbito de cobertura, dado o acidente ter sido causado pela conduta temerária e grosseiramente negligente do próprio, que caminhou pela via-férrea e a atravessou, o que lhe estava absolutamente vedado, e, além disso, ser abusivo, nos termos do artigo 334.º do CC, a reclamação, com sucesso, de qualquer compensação por banda do autor, pugnando, desse modo, pela improcedência das duas acções.

Replicou o autor, sustentando que nunca pela ré lhe foram enviadas as referidas cláusulas gerais e especiais ou delas tomou conhecimento, de nada tendo sido esclarecido, pelo que não lhe podem ser opostas as referidas exclusões, as quais deverão antes ter-se por excluídas dos contratos celebrados.

Tendo o Mmº. Juiz considerado que se estava perante uma ampliação do pedido inicialmente formulado, assim foi admitida a pretendida desconsideração da cláusula de exclusão invocada pela contestante, mas apenas no que se refere aos autos principais (cf. despacho exarado em acta a fls. 162 destes autos).

Teve lugar audiência preliminar, tendo os autos prosseguido com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças que se fixaram sem reclamação das partes.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, na total improcedência da acção, absolveu a ré dos pedidos formulados.

Inconformado, apelou o autor, com parcial êxito, tendo a Relação de ... revogado a sentença e condenado a ré a pagar ao autor a quantia de €100 000,00 (cem mil euros), acrescida de juros de mora contados da citação até integral pagamento à taxa supletiva legal, no que respeita ao processo apensado, e a quantia de €160 653,05 (cento e sessenta mil, seiscentos e cinquenta e três euros e cinco cêntimos), acrescida dos juros vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, contados à taxa supletiva legal desde a data da citação e até integral pagamento, no que respeita aos contratos a que correspondem as apólices 15....9 e 15....2 objecto dos autos principais.

Agora inconformada, interpôs a ré recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as extensas, repetitivas e redundantes[1] conclusões que se transcrevem: I - A seguradora Ré aqui recorrente não pode conformar-se com o entendimento consignado no douto acórdão recorrido, por entender que o mesmo, entre o demais, incorre em desadequada interpretação e aplicação do disposto nos artigos , 46.º e 210.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril {doravante designado abreviadamente por "RJCS”) e 334.º e 762° do Código Civil, com referência ao estatuído no artigo 23.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 39780 de 21.08.1954.

II - Com efeito, sempre com o máximo respeito - e sem jamais olvidarmos que a concreta situação sub Júdice consubstancia uma infeliz tragédia - temos para nós que se impõe a revogação do douto acórdão proferido, devendo ter sido mantida a douta decisão proferida na 1.ª Instância, por ser a única que se mostra consentânea com as imposições legais aplicáveis.

III - Cremos que se poderão subsumir as questões objecto do presente recurso de revista, ao seguinte: 1) Saber se o Autor ora recorrido agiu de forma grosseiramente negligente ou temerária; 2) Saber se, face ao contrato de seguro e ao regime legal que lhe é aplicável, às normas jurídicas reguladoras da disciplina da boa-fé na execução dos contratos, mormente ao instituto do abuso de direito, esta actuação do recorrido, consabidamente causadora do evento danoso, constitui causa de exclusão da obrigação de indemnizar por parte da seguradora, aqui se incluindo também a análise sobre se o concreto evento dos autos observa todos os requisitos necessários para que possa, á luz do contrato e da lei ser configurável como um evento de caracter externo, súbito e imprevisível.

IV - Entendeu-se na douta decisão proferida na 1.ª Instância que "o A. com o seu comportamento, agiu de forma grosseiramente negligente, temerária mesmo, ao proceder a deslocação a pé ao longo da via férrea e atravessá-la em lugar não destinado para o efeito, não podendo ignorar os riscos em que semelhante comportamento o fazia incorrer, e sem que o condutor do comboio tivesse podido fazer algo para evitar o acidente".

V - Diversamente, o Venerando Tribunal da Relação a quo, considerou que, sendo embora inegável que o Autor não deveria ter efectuado a travessia naquele concreto local, o mesmo adoptou cuidados - cfr. alínea 20 dos factos provados - que só não terão sido idóneos a evitar o sinistro porque para o mesmo concorreu um outro evento, que teve por inesperado, e que se mostrou suficiente para afastar a culpa grave.

VI - A conduta protagonizada pelo Autor aqui recorrido e que, inelutavelmente, deu causa ao evento dos autos, é um comportamento que, aos olhos dos critérios legais, consubstancia uma actuação temerária em alto e relevante grau, provável e adequada a causar o evento que, lamentavelmente, veio a ocorrer.

VII - Na verdade, o simples facto de o Autor aqui recorrido se ter deslocado a pé ao longo da linha férrea que, depois decidiu atravessar, não pode deixar de ser visto como uma actuação que consubstancia em si, de forma notória e perante o senso comum, uma conduta grosseiramente negligente que todo o homem médio sabe que é susceptível de levar à ocorrência de situações, como a dos autos, com consequências gravíssimas.

VIII - Como se salientou e julgou indiciariamente provado o Venerando Tribunal da Relação de … no douto acórdão do recurso de apelação interposto pelo Autor ora recorrido da decisão do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória (processo n.º 4051/10.9TBPTM-A.E1, (processo n.º 4051/10.9TBPTM-A.E1, de 12.07.2012, Relator Jaime Pestana, apenso aos presentes autos e cuja cópia se anexa) - constituindo ademais facto notório e do conhecimento generalizado, "o piso da linha é em cascalho, dificultando a progressão" (vide páginas 5 e 10 daquele douto aresto).

IX - E acrescendo que, como o próprio Autor confessou no artigo 12.º da petição inicial, ser aquele, na altura do acidente, "portador de uma mala com documentos", o que, de igual modo, lhe não facilitaria o caminhar e o transpor da via férrea.

X - Sendo ainda de realçar, e sempre com o máximo respeito por diverso entendimento, que, ao invés do que se verteu no douto acórdão recorrido, atenta a concreta configuração da linha férrea - que para além de observar os requisitos que habitualmente caracterizam uma linha férrea, se mostra bem evidenciada nas fotografias juntas aos presentes autos - o facto de o Autor aqui recorrido ter ficado com um pé preso na linha era um evento que, atentas as circunstâncias em causa, se podia legitimamente esperar.

XI - É que caminhar ao longo da linha e atravessá-la são condutas manifestamente perigosas, não só pelo facto de, a qualquer momento, por ali poder surgir um comboio em circulação, mas também pela própria configuração e piso da linha que é por demais idónea a provocar quedas, tropeções e mesmo a situação dos autos, i.e., pés presos na linha.

XII - Sendo um comportamento que é, de forma objectiva, grosseiramente negligente.

XIII - Com efeito, é do mais elementar senso comum que a circulação pedestre nas linhas de caminho de ferro é um comportamento, que para além de proibido, é de altíssimo risco.

XIV - Na verdade, "um bom pai de família", que é um homem inteiramente abstracto, colocado nas mesmas circunstâncias externas em que procedeu o recorrido, teria procedido de forma diferente, desde logo não procurando o "atalho" e caminhando ao longo da linha férrea, e muito menos, atravessando a mesma em lugar não destinado para o efeito.

XV - Caminhando e atravessando a linha férrea naquelas circunstâncias, o recorrente aceitou o risco inerente, que não ignorava.

XVI - Numa linha férrea os comboios não surgem do nada e os peões têm de contar com o seu surgimento na medida em que, claro está, a linha férrea é o único e adequado local para que os comboios possam circular.

XVII - E não se diga, como faz o douto acórdão recorrido, que este risco ficou minimizado e que se afastou a culpa grave do Autor aqui recorrido pelo facto de este, antes de iniciar a travessia se ter certificado que não circulava nenhum comboio, pois, na verdade, como se veio a verificar, o Autor acabou por ter sido colhido pela verificação de outro dos riscos previsíveis e inerentes ao atravessamento da linha - o de ficar com o pé preso na linha.

XVIII - Risco este igualmente de senso comum, em virtude da concreta configuração da mesma.

XIX - Era, pois, expectável e previsível, que naquele concreto local ocorresse um acidente...

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