Acórdão nº 237/16.0T8STR.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Julho de 2018

Magistrado ResponsávelALEXANDRE REIS
Data da Resolução12 de Julho de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

AA intentou acção contra o Estado Português, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 60.000, para reparação dos danos não patrimoniais alegadamente decorrentes de erro grosseiro no exercício da função jurisdicional, em concreto, na decisão que o condenou como autor de um crime de roubo.

O R contestou, invocando que não ocorreu a prévia revogação da decisão condenatória por um tribunal superior e que o A, na sequência do decidido em recurso de revisão em que foram ouvidas duas testemunhas não arroladas no primeiro julgamento, veio a ser absolvido, mas com fundamento no princípio in dubio pro reo e não por se ter provado que não cometera o crime.

Foi proferido despacho saneador sentença, julgando improcedente a acção e, em consequência, absolvendo o R do pedido.

A Relação julgou improcedente a apelação interposta pelo A, confirmando, sem voto de vencido, a decisão proferida em 1ª instância.

O A interpôs revista excepcional desse acórdão, admitida pela competente Formação, tendo delimitado o objecto do recurso com conclusões em que suscita a questão de saber se invocara na acção fundamentos idóneos e suficientes para determinar o prosseguimento dos autos a fim de apurar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do R Estado, assente no erro grosseiro cometido na decisão que o condenou, na vertente da errada apreciação da prova produzida.

Nas suas contra-alegações, o R, para além de adversar os argumentos aduzidos no recurso, suscitou a questão de saber se o direito de indemnização exercido pelo A teria de ser fundado na prévia revogação pela jurisdição competente da decisão alegadamente danosa.

* Cumpre, pois, apreciar e decidir as questões enunciadas, para o que releva a matéria de facto considerada assente pela Relação.

* A questão suscitada pelo recorrente impõe uma breve averiguação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, assente no erro judiciário (de facto), em que assenta a pretensão a que o mesmo se arroga na acção.

A responsabilidade patrimonial do Estado por erro judiciário tem como fundamento constitucional o princípio que decorre directamente do disposto no artigo 22º da CRP e que veio a ser plasmado na lei ordinária, através dos arts. 12º e 13º da Lei 67/2007 de 31/12 (RRCEE), que estatuem: Art. 12º (Regime geral) «Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, …o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa».

Art. 13º (Responsabilidade por erro judiciário) «1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

».

Por sua vez, o aí aludido regime especial aplicável, por força do comando constitucional contido no art. 29º nº 6 da CRP ([1]), aos casos de sentença penal condenatória injusta vem previsto nos arts. 449º e seguintes do CPP e dele se extrai para o que aqui releva: - quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação é admissível a revisão de sentença transitada em julgado, embora não com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada (art. 449º).

- se a decisão revista tiver sido condenatória e o tribunal de revisão absolver o arguido, aquela decisão é anulada e o arguido restituído à situação jurídica anterior à condenação, atribuindo a sentença ao arguido indemnização pelos danos sofridos e mandando restituir-lhe as quantias relativas a custas e multas que tiver suportado (arts. 461º e 462º).

Assim se regulamentam as condições especiais de utilização do recurso de revisão, enquanto meio extraordinário de reapreciação de uma decisão transitada em julgado, a fim de se evitar uma sentença injusta e dar primazia à justiça material em detrimento de uma justiça formal, para o que se exige que sejam apresentados factos ou meios de prova novos, i. é, não ponderados no processo que conduziu à condenação e idóneos a gerar uma grave dúvida, não apenas uma qualquer dúvida, sobre a justiça dessa condenação.

Já a consagração da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário é a novidade introduzida pelo regime criado pelo citado RRCEE, assim assumindo como certa a ideia, hoje consensual, de que o Estado deve ressarcir os danos decorrentes de acto ilícito e culposo cometido no exercício da função jurisdicional por um dos seus servidores, tal como sucede com os provocados no âmbito das demais funções estaduais ([2]).

Todavia, os pressupostos da responsabilidade do Estado pelos danos causados por erro judiciário são bem diversos e mais exigentes do que os fundamentos para a revisão de sentença penal condenatória injusta e decorrente reparação ao abrigo do aludido regime especial plasmado nos arts. 449º e seguintes do CPP, que se quedam, numa situação como a em apreço, pelas graves dúvidas sobre a justiça da condenação, suscitadas por novos factos ou meios de prova.

Com efeito, a «particular compreensão constitucional da função jurisdicional do Estado, aliada à consagração do princípio da irresponsabilidade dos juízes – “os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo as excepções consignadas na lei” (artigo 218.º n.º 2 da Constituição) –, apontavam para a necessidade de criar uma legislação cuidada» ([3]) sobre a responsabilidade do Estado por erro judiciário, no quadro de um regime próprio, como logo patenteia o teor do dispositivo acima citado.

Esse regime específico próprio é justificado pela especificidade da função jurisdicional, face às diversas incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que sobressaem o sistema de recursos e da hierarquia das instâncias, que contribui para o sucessivo aperfeiçoamento das decisões, reduzindo substancialmente a possibilidade de uma sentença injusta.

Ora, tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso (cf. art. 14º do RRCEE) –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela «necessidade de contenção do direito à indemnização ou da imposição de limites que conduzam a esse resultado, por não ser de impor um maior sacrifício à generalidade dos cidadãos, traduzido em suportar financeiramente os encargos com as indemnizações» ([4]).

Realmente, como defende Gomes Canotilho ([5]), «sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer acto de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova» (sublinhado nosso). E daí que, acrescenta o mesmo Autor ([6]), «salvo os casos de dolo ou culpa grave, a ‘culpa do juiz’ tem de se integrar na ideia de ‘funcionamento defeituoso do serviço de justiça’», também sob pena de se pôr «em causa as dimensões fundamentais do ius dicere (autonomia e independência)» ([7]).

Como dissemos, a pretensão invocada na acção convoca os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, regulada nos termos gerais dos arts. 483º e ss do CC ([8]), conformativos de um regime que, como se sabe, impõe ao lesado a prova, quer do carácter ilícito da conduta geradora dos danos, quer da culpa do agente ([9]).

Quanto à ilicitude e ao erro judiciário de direito, numa primeira abordagem, não pode olvidar-se que há muito está abandonada a concepção do juiz passivo, de mero aplicador ou “boca” da letra da lei, pois que, ao invés, o juiz é instado a fornecer «soluções concretas, não meramente automáticas de aplicação da literalidade, geral e abstracta da lei e, como consequência, de modo a alcançar o desiderato da justiça material, alarga-se o âmbito de intervenção pessoal ou individualizado da actividade jurisdicional» ([10]).

É o que ensina Castanheira Neves ([11]): «(…) os códigos, em lugar de se poderem ter por qualquer raizon écrite, mostravam-se obras legislativas precárias condenadas a serem historicamente ultrapassadas cada vez com maior rapidez e irremediavelmente lacunosas. O “fétichisme de la loi écrite et codifiée” (Gény) cessou com o reconhecimento da distinção entre o direito e a lei, na intenção normativa, nos critérios hermenêutica-normativos, indispensável integração e no aberto desenvolvimento extralegal da normatividade jurídica — e do mesmo modo a jurisprudência, bem longe de ser “la bouche de la loi”, revelava-se antes um poderoso e indispensável protagonista na histórica constituição do direito. A metodologia jurídica deixou de se esgotar na interpretação e esta passou a ser fundamentalmente problemático-normativo e teleológica-material. O Direito compreendeu-se não...

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