Acórdão nº 2592/16.3T8SNT.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 07 de Junho de 2018

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução07 de Junho de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1.

Município da AA intentou, em 03/03/2016, acção declarativa destinada a impugnar a escritura de justificação notarial, contra BB e CC, pedindo que: (i) Seja considerado impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura lavrada no Cartório Notarial do Barreiro, a cargo do Notário DD, em 20 de Novembro de 2015, exarada a folhas 34 a folhas 35 verso, do livro número 336 A, das notas deste cartório, referente à aquisição pelos RR., por usucapião, de um lote de terreno para construção, com a área de 260,35 m2, denominado por lote trinta e cinco, sito na ..., concelho da AA; (ii) Seja declarada nula ou ineficaz esta mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação; e (iii) Se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base neste documento. Alega, em síntese, que os factos justificados na referida escritura são falsos e não podem levar à constituição de uma situação de posse a favor dos RR. e, consequentemente, não podem servir para sustentar a aquisição originária por usucapião de um prédio que integra a propriedade do A.. O lote 35, com a área total de 260,35m2, objecto da escritura, integra o loteamento municipal com o número de Processo 34.953/09 e resultou da anexação de dois prédios, descritos na petição inicial.

O lote objecto de justificação está implantado, em parte, no prédio do Município e esse prédio foi retirado da antiga Estrada Militar, a qual só foi desafectada do domínio público e registada no domínio privado municipal em 21/09/2005, data até à qual esteve, portanto, fora do comércio jurídico, ou seja, há cerca de 10 anos o lote 35 integrava uma parcela do domínio público. Em nenhum momento foi requerido ao A. o licenciamento de qualquer obra a edificar no referido lote 35, pelos RR. ou por outros em seu nome, ou sequer pelos RR. foi, fundamentadamente, reclamada a propriedade junto do A. do referido lote 35. O lote 35 integrou até há cerca de dez anos o domínio público, razão pela qual estava fora do comércio jurídico e não se pode afirmar que o referido prédio entrou na posse de EE e de FF em 1975, sendo falsas estas declarações, porque integrava a antiga Estrada Militar, pelo que não há o corpus nem o animus para se verificar uma situação de posse. Os RR. não podiam ignorar que aquele lote de terreno não lhes pertencia, integrando antes o domínio público, não podendo actuar e ter a convicção de ser proprietários do referido prédio, não sendo assim possuidores, mas meros detentores.

Os RR. contestaram, aceitando que o lote 35 integra o loteamento municipal, mas o mesmo resulta de uma AUGI cujo processo de reconversão correu sob os termos 34953/09 pela iniciativa da Câmara Municipal da AA, ou seja coube ao Município executar a operação de loteamento, realizando uma intervenção urbanística nos prédios de modo a legalizar as parcelas que já existiam, delimitadas no terreno com construções clandestinas edificadas há mais de trinta anos, que culminou naquele referido processo. A casa objecto dos presentes autos está reconhecida no Quadro Urbanimétrico e foi construída na parcela de terreno designada pelo lote 35, ocupada em 1975, pelos tios dos RR., EE e FF, que iniciaram a construção da mesma e a foram fazendo ao longo dos anos, tendo sido o seu tio que executou os trabalhos para o ramal com vista ao fornecimento de energia eléctrica pela EDP com a autorização da Câmara de ...; foi ainda o tio quem pagou o ramal para abastecimento de água junto dos serviços municipalizados; e foi a sua obra de construção da casa, que habitava, que foi objecto de embargos, em 1984, quando já tinha sido construída até à segunda laje. Não obstante tal embargo, a obra continuou e a casa foi inscrita na matriz predial. A partir de 1986, os RR. continuaram e concluíram a casa, mediante venda verbal e o convite de nela passarem a habitar em conjunto com os seus tios até à morte destes, tendo acabado a construção da casa. Foram os RR. quem, desde 1986, conservou a casa e o seu logradouro, murando-o, desmatando-o, plantando e cuidando das árvores, passando a agir como moradores e proprietários do terreno e da construção erigida, pagando as comparticipações nas despesas com a Comissão de Administração da AUGI e os projectos de arquitectura e especialidades da moradia para serem entregues na Câmara Municipal da AA.

Não há domínio público do lote 35 porque, se assim fosse, não era passível de reconversão, sendo certo que na própria planta de loteamento estão definidas as áreas para domínio público. Os RR. pretendem obter licença de construção da sua casa, construída no lote 35, a qual ajudaram a construir e na posse da qual entraram há mais de vinte anos sendo considerados por todos como proprietários, desde 1986, e antes pelos seus tios, desde 1975.

Pugnam pela improcedência da acção, o que implica a demonstração da veracidade do que consta na escritura de justificação notarial, consolidando-se o registo de aquisição por parte dos RR.

A fls. 131 foi proferida sentença que julgou a acção procedente, e, em consequência, decidiu: “

  1. Considera-se impugnado, para todos os efeitos legais o facto justificado na escritura lavrada no Cartório Notarial do Barreiro, a cargo do Senhor Notário DD, em 20 de Novembro de 2015, exarada a folhas 34 a folhas 35 verso, do livro número 336 A, das notas deste cartório, referente à aquisição pelos RR., por usucapião, de um lote de terreno para construção, com a área de duzentos e sessenta vírgula trinta e cinco metros quadrados, denominado por lote trinta e cinco, sito na ..., concelho da AA, não se reconhecendo os RR. como proprietários do prédio descrito em A).

  2. Declara-se nula ou ineficaz a escritura de justificação notarial referida em A), por forma a que os RR. não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação; C) Ordena-se o cancelamento de quaisquer registos operados com base nestes documentos.” Não se conformando com a decisão, dela recorreram os RR. para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 168 foi a apelação julgada procedente, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se os RR. dos pedidos.

  1. Vem o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões: 1) O douto acórdão incorreu, salvo o devido respeito, em manifesto erro de interpretação das normas aplicáveis, uma vez que não se encontram preenchidos os pressupostos da aquisição por usucapião.

    2) A constituição da posse depende da verificação cumulativa de dois elementos: o corpus - o simples poder ou actuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor - e o animus - a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa.

    3) É certeira a afirmação do tribunal de primeira instância quando diz que essa intenção ''não pode ser confundida com a mera convicção de se ser titular do direito", para depois concluir que os Recorridos nunca tiveram o animus necessário à constituição da posse.

    4) Os Recorridos nunca foram mais do que meros detentores ou possuidores precários, visto que não actuaram com a intenção de agir como beneficiários do direito de propriedade.

    5) Mais do que isso, ao contrário do que afirmou o douto acórdão recorrido, não é suficiente para constituir a inversão do título da posse a circunstância de os tios dos Recorridos terem ignorado, em 1984, a ordem de embargo do Recorrente e terem continuado a construção da casa.

    6) Como refere a jurisprudência versada na matéria, para que haja inversão do título da posse é necessário que haja uma oposição directa e frontal, que seja inequívoca, pelo que não será com uma mera indiferença perante uma ordem de embargo que se poderá considerar que os tios dos Recorridos tenham preenchido este requisito.

    7) Assim, o acórdão recorrido violou as normas colhidas nos artigos 1265º e 1290º do CC, assim como os artigos 1287º, 1251º,1253º, alínea a), também estes do CC.

    8) Sem prescindir, e apenas por mera cautela de patrocínio, caso se considere que se verificou a inversão do título da posse pelos tios dos Recorridos, sempre se dirá que os Recorridos não podem juntar a sua posse à posse dos seus tios. Não o podendo fazer, à data da escritura não se encontrava ainda decorrido o prazo de usucapião aplicável in casu.

    9) De acordo com o artigo 1º da Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913, o prazo de prescrição aquisitiva aplicável é de 30 anos.

    10) A luz do artigo 1256º do CC, a acessão da posse (i) é facultativa, (ii) exige que haja duas posses contínuas e homogéneas (iii) e depende da existência de um vínculo jurídico entre o novo e o antigo possuidor, 11) De uma banda, se é facultativa, deve ser expressamente invocada por quem dela quer beneficiar. Em bom rigor, nunca os Recorridos invocaram a acessão da posse na escritura de justificação.

    12) De outra banda, se tem de haver um vínculo jurídico entre possuidores providos de posses contíguas e homogéneas, esse vínculo não pode deixar de ser válido.

    13) Uma vez que os Recorridos e os tios dos Recorridos acordaram, verbalmente, a venda do prédio, este negócio jurídico está eivado de nulidade por preterição da forma legal aplicável (cf. artigos 220º e 875º do CC), logo, sendo inválido, não pode ser fundamento da acessão da posse - tal como já se pronunciou a jurisprudência (cfr. de entre muitos outros citados, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-04-2011, proc. nº 956/07.2TBVCT.GLS1) e a maioria da doutrina (v.g. ANTUNES VARELA/PIRES DE LIMA; DURVAL FERREIRA; FERNANDO PEREIRA RODRIGUES; MANUEL RODRIGUES; SANTOS JUSTO; OU DIAS MARQUES).

    14) A acrescer, com o devido respeito, o Tribunal a quo errou, também ao dizer que é por referência à data da entrada...

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