Acórdão nº 111/15.8JBLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Abril de 2018
Magistrado Responsável | MANUEL BRAZ |
Data da Resolução | 19 de Abril de 2018 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: O tribunal de 1ª instância proferiu acórdão decidindo, além do mais que aqui não importa, condenar o arguido/demandado AA: -a 18 anos de prisão, pela prática de um crime homicídio qualificado, previsto e punido pelos artºs 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal; -a 1 ano e 8 meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artºs 203º, nº 1, e 204º, nº 1, alínea a), do CP; -a 2 anos de prisão, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº 256º, nºs 1, alíneas a) e e), 3, do CP; -a 1 ano de prisão, pela prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artº 254º, nº 1, alínea a), do CP; -em cúmulo jurídico, na pena única de 19 anos e 6 meses de prisão; -a pagar, a título de indemnização: -a quantia de 30 000,00 €, acrescida de juros de mora, a cada um dos requerentes civis BB e CC; -a quantia de 30 000,00 € a DD; e -a quantia de 25 000,00 € a EE.
O condenado interpôs recurso para a Relação de Lisboa, que, por acórdão de 30/10/2017, o julgou parcialmente procedente relativamente à condenação pelo crime de homicídio qualificado, com fixação da respectiva pena em 14 anos de prisão, e à pena única, que fixou em 15 anos e 6 meses de prisão, mantendo no mais a decisão de 1ª instância.
Ainda inconformado, o condenado interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo e pedindo nos termos que se transcrevem: «1. Uma vez fixada a matéria de facto provada, em termos definitivos, o presente recurso, obviamente limitado a matéria de direito, pretende obter provimento apenas quanto à qualificação jurídica desses mesmos factos.
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Nomeadamente e com mais precisão à consideração da agravação pela alínea e) do nº 2 e 1 do artº 131º do Código Penal - motivo fútil - bem como ao cumulo jurídico das penas parcelares finais.
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Na verdade, a alteração efectuada pelo douto Tribunal da Relação quanto ao local aonde terão ocorrido ferimentos em ambos os contendores - ponto 11 e 11 c da alteração à matéria de facto - revela uma diferença essencial face à primeira instância, no que diz respeito às circunstâncias e causa da morte.
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Isto é, no exterior do veículo do ofendido ninguém viu qualquer faca ou qualquer movimentação da sua utilização.
Ao invés, todas as testemunhas concordam que a discussão e distúrbios ocorreram no interior da viatura.
Os vestígios hemáticos encontram-se tanto no exterior como no interior da viatura.
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O esfaqueamento que causou a morte foi efectuado transversalmente da esquerda para a direita o que, de acordo com o próprio relatório da PJ de fls. 751 e 479 a 481, se considera tal "elemento objectivo como compatível com a defesa de uma agressão por faca, num espaço fechado, no interior da viatura".
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No douto Acórdão recorrido realça-se que "os ferimentos pericialmente constatados nos membros superiores do arguido somente obtêm explicação no âmbito de uma disputa pela posse daquela (faca) ainda no interior da viatura" - fls. 43 do Acórdão recorrido.
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Daí que, e prosseguindo no douto Acórdão - não ter "resultado dúvida nenhuma de que a disputa pela posse da faca, cujos golpes acabaram por vitimar o Alcino ocorreram no interior da viatura deste (daí os toques de buzina e os pedidos de socorro da vitima, bem como os ferimentos nas mãos do arguido" fls. A3 do Acórdão recorrido.
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Mais à frente - fls. 44 verso - vem exarado no douto Acórdão recorrido, que "outrossim não se logrou apurar a quem pertencia a faca que comprovadamente serviu de arma agressora (tanto poderia ter sido transportada de casa para o carro da vítima, como poderia ter sido utilizada por esta como arma de defesa no seu trânsito nocturno como condutor de táxi) nem quem sacou da mesma com intuitos ofensivos".
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Assim sendo, parece adquirido que, pelo menos, houve disputa pela posse da faca, dentro do espaço fechado da viatura (ferimentos nos membros superiores - mãos - do recorrente).
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Em consequência, discorda novamente o recorrente da conclusão efectuada nas duas instâncias anteriores de que o homicídio resultou de um motivo fútil e da agravação inerente.
Com efeito, importa nestes casos separar devidamente os factos que motivaram a discussão, dos factos que originaram a morte.
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Isto é, no que à discussão se refere, concede-se que o motivo era fútil - divergência de € 70,00 num negócio de droga (que não era droga) entre os dois (o recorrente e também o ofendido).
Trata-se, pois, de divergências entre dois candidatos a traficantes (o ofendido era o comprador mas para fornecer, por sua vez, um seu cliente), pelo que o tal MOTIVO da discussão envergonha ambos.
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Todavia, quando se acaba na disputa pela posse da faca, o motivo atrás mencionado perde a relevância, na medida em que o que releva é a própria SOBREVIVÊNCIA.
No espaço fechado de uma viatura, a superioridade atlética de qualquer dos contendores deixa de ser relevante, uma vez que a posse da faca equilibra a acção de ambos.
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Admitindo-se que a faca possa ter sido usada inicialmente pelo ofendido - como se fez no Acórdão recorrido - será da mais elementar justiça e a prudência impõe que, pelo menos, não se considere uma eventual defesa perante uma faca como MOTIVO FÚTIL.
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Isto é, se é certo que a Defesa não pode provar a legitima defesa nem o excesso de legitima defesa (porquanto a única prova que pode oferecer são as declarações do recorrente) parece da MAIS ELEMENTAR PRUDÊNCIA que - tal como refere o Acórdão recorrido a fls. 61 - "em face do desconhecimento de qual o sujeito que transportou a faca para o local do crime e se houve ou não luta pela posse da mesma, designadamente, se a vítima tentou primeiramente agredir o arguido e se este posteriormente logrou retirar aquela arma à vítima, ferindo-se em consequência nos membros superiores" - se não deve, pelo menos, condenar pela agravação da alínea e) do nº 2 do arte 132º do Cód. Penal.
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Na medida em que, desconhecendo-se os factos acima descritos também se terá que desconhecer se houve ou não legítima defesa ou excesso de legítima defesa, valendo aqui o princípio "in dúbio pro reo".
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Acresce que os actos do recorrente que se seguiram à verificação da morte permitem, isso sim, concluir que o mesmo ficou perturbado psiquicamente, próximo mesmo do estado de choque.
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Na verdade, um assassino frio e implacável nunca teria reagido com um passeio de 300 Km para o norte do país com um cadáver nauseabundo na bagageira.
As regras da experiencia comum indicam; isso sim, que o tal assassino frio e implacável, se veria livre do cadáver na primeira oportunidade.
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E a primeira oportunidade estaria logo à saída de Lisboa num qualquer ermo, numa qualquer floresta dos subúrbios, enterrado ou debaixo do matagal.
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E um assassino frio e implacável não usaria o veículo do ofendido sujo de sangue por todo o lado, fazendo-o seu e com intenção de o continuar a usar como se de seu se tratasse.
Pois não é verdade que foi graças a continuar com o veículo do ofendido que o recorrente foi descoberto? E descoberto de uma forma, se não infantil, pelo menos de demente.
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Sendo ainda o recorrente de nacionalidade venezuelana e portuguesa aquilo que o assassino frio e implacável faria seria dirigir-se para Espanha (e não para norte) e ali meter-se num avião para a Venezuela, onde se acha a sua família.
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Para além de tudo isto, a caracterização de personalidade e caracter do recorrente que se retira do relatório social e matéria de facto provada nos pontos 44 a 64 do Acórdão e primeira instância, não inculca a ideia de um assassino frio e implacável que mata por motivo fútil.
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Matéria essa de factos provados que não inculcam a ideia de um assassino frio e implacável.
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Tal como os antecedentes criminais referidos nos pontos 65 e 66 do Acórdão de primeira instância, permitem verificar a pequeníssima gravidade dos crimes ali mencionados - desobediência e tráfico para consumo, ambos extintos com o pagamento de multa e o trabalho a favor da comunidade.
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Antecedentes criminais e características de personalidade, carácter e vivência exterior que permitem indicar o presente crime de homicídio como um mero caso pontual e que não se repetirá.
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Ainda quanto à questão do furto do veículo, continua a não ser tão simples assim a condenação por "furtum rei".
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Na verdade, o facto de o recorrente ter substituído as placas de matrícula não permite, por si só, a conclusão pela existência de intenção apropriativa.
Na medida em que tal substituição de placas visaria tão-somente servir uma utilização mais duradoura - concretamente, uma ocultação de cadáver até à sua entrega às autoridades, juntamente com a restituição do veículo.
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Sendo certo que nem o tempo (menos de 24 horas) nem a distância percorrida (300 Km) relevam para afastar a intenção de mera utilização, achando-nos "ainda em pleno "furtum usus".
Note-se que seria de todo em todo enorme estupidez o simples pensamento de apropriação definitiva do veículo, intrinsecamente ligado a um homicídio.
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Aliás, as regras da experiência comum e a mera lógica conduzem, isso sim, a conferir credibilidade às declarações do recorrente, segundo os quais o mesmo pretendia tão-somente ganhar algum tempo (e encontrar-se com a namorada a residir no norte de Portugal) antes de se entregar, COM VEÍCULO E CADÁVER ÀS AUTORIDADES.
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Porquanto, repete-se, se a sua intenção fosse a de se eximir à acção da Justiça seria mais lógico, obviamente, desfazer-se do cadáver e veículo. (o que não fez durante 24 horas).
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Assim sendo, a Defesa, com o devido respeito por orientação diferente, conclui e pretende que o recorrente seja condenado por "furtum usus" e não "furtum rei".
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O recorrente pretende pois que seja condenado por homicídio simples, p.p.p. artº 131º do Cód. Penal, em pena próxima do seu limite mínimo, não superior a 10 anos de prisão.
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O recorrente pretende ainda que seja condenado pelo crime de furto de uso de veículo p.p.p. artº 208º do Cód Penal em pena não superior a 6 meses.
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