Acórdão nº 1339/16.9T8FAR.E1.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 05 de Junho de 2018

Magistrado ResponsávelALEXANDRE REIS
Data da Resolução05 de Junho de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

AA e outros intentaram acção contra o Estado Português, pedindo a condenação deste a reconhecer o seu direito de propriedade sobre os prédios que indicam, alegando estarem preenchidos os requisitos para tanto impostos pelo art. 15º, nº 5, a), da Lei 54/2005, de 15/11, porque, em síntese, o direito a que se arrogam teve origem numa concessão régia outorgada em 21/7/1884, autorizando BB a enxugar, vedar e cultivar os terrenos, mantendo-se na posse de tal direito as pessoas que sucessivamente lhe foram sucedendo e que presentemente são os AA, tendo, agora, a “CC.” manifestado pretender tomar posse administrativa daqueles terrenos, sob a invocação de se tratarem de parcelas de domínio público marítimo.

O R contestou, invocando que a alegada concessão não transmitiu o direito de propriedade sobre o terreno, limitando-se a facultar os limitados poderes sobre um bem público definidos em tal acto (enxugar, vedar e cultivar os terrenos).

Foi proferido despacho saneador sentença, julgando improcedente a acção e, em consequência, absolvendo o R do pedido.

A Relação julgou improcedente a apelação interposta pelos AA, confirmando, sem voto de vencido, a decisão proferida em 1ª instância.

Os AA interpuseram revista excepcional desse acórdão, admitida pela competente Formação, tendo delimitado o objecto do recurso com conclusões em que suscitam a questão de saber se, nos termos do art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15/11 (na sua actual redacção dada pela Lei 34/2014, de 19/6), deve ser reconhecida a sua propriedade sobre os indicados terrenos, porque, sendo parcelas originariamente públicas de leitos ou margens, a concessão régia outorgada pelo Decreto de 21 de Julho de 1884, conjugada com o Alvará de 11 de Abril de 1815 (“Lei Agrária”) e a Lei de 24 de Novembro de 1823, desafectou-as do domínio público hídrico e constituiu um seu título aquisitivo válido.

Nas suas contra-alegações, o R sustentou que a “questão” da aplicabilidade do Alvará de 11 de Abril de 1815 (“Lei Agrária”) não poderá ser apreciada pelo STJ porque os recorrentes nunca a colocaram quer na 1ª instância, quer na Relação.

*Como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, o âmbito do recurso, para além dos eventuais casos julgados formados nas instâncias, é confinado pelo objecto (pedido e causa de pedir) da acção, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pela restrição feita pelo próprio recorrente, quer no requerimento de interposição, quer nas conclusões da alegação (art. 635º do CPC). Portanto, é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação da recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver.

E, por outro lado, os recursos são meios de obter a reponderação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso.

Porém, a expressão «questões», que se prende, desde logo, com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir, de modo algum se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia. Por isso, é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver. Ao Tribunal incumbe resolver as questões ou pretensões cuja apreciação lhes seja suscitada e, para o efeito, apenas se pode estribar nos factos essenciais que as partes tenham alegado, mas não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (arts. 5º e 608º do CPC).

Portanto, o problema da aplicabilidade aos factos assentes de determinadas normas ou diplomas legais, não sendo uma “questão” com o apontado significado, também não pode assumir a natureza de “novidade” no sentido alvitrado pelo R.

Cumpre, pois, apreciar e decidir a questão suscitada no recurso e acima enunciada, para o que releva a matéria de facto considerada provada pela Relação.

*São os próprios recorrentes a configurar a questão que submetem à apreciação do Tribunal como consistindo, no essencial, em saber se a concessão régia que invocam, outorgada pelo Decreto de 21 de Julho de 1884, constituiu um título de transmissão da propriedade sobre esses terrenos a favor do concessionário.

Os recorrentes sempre defenderam nos autos que a falada concessão teria desafectado os terrenos do domínio público hídrico e constituiu para o seu concessionário (e para os que lhe sucederam) um seu título aquisitivo válido. Agora, estribam tal tese na pretensa ideia de que teria sido o Alvará Régio de 11 de Abril de 1815 (“Lei Agrária”) e a Lei de 24 de Novembro de 1823 a proceder à desafectação do domínio público dos terrenos salgadiços cobertos pelo mar em favor daquele que os enxugou, vedou e cultivou, sendo que um tal aproveitamento dos terrenos, para conduzir à aquisição da respectiva propriedade, estaria sujeita a autorização governamental titulada por concessão régia. Ou seja, pretendem os recorrentes que o facto aquisitivo supostamente previsto na “Lei Agrária” – enxugamento, vedação e cultivo de terrenos salgadiços – estaria dependente da autorização para o efeito conferida ao particular por concessão régia e que a verificação desta condição encontrar-se-ia cabalmente comprovada nos autos.

Vejamos.

O evocado Alvará de 1815, com o intuito de «promover e animar a agricultura dos Reinos de Portugal e dos Algarves», concedeu isenção de «direitos, imposições e dízimos», por 10 anos, aos que rompessem charnecas e baldios incultos (de todas as Províncias do Reino à excepção do Minho «por estar bem cultivada»), por 20 anos, aos que abrissem «Paúes junto ao Tejo, e em toda a Estremadura» e, por 30 anos, aos que tirassem terras às marés, como sapais e areais em todos os rios e costas. Mais se estabeleceu que: os «Administradores dos Vínculos» poderiam, a partir de então «aforar as terras incultas a elles pertencentes com authoridade do Corregedor ou Provedor da respectiva Comarca, sendo depois confirmados os aforamentos pela Meza do Desembargo do Paço», sendo que «para que haja uma certa regra na formalidade destes emprazamentos, se determinará por Louvados o foro que deve ter huma geira, ou hastim de terras»; e, «para os mesmos Administradores dos Vínculos melhor poderem romper as terras incultas, ou aprovoitar as perdidas dos mesmos, poderão tomar dinheiro a juro com hypoteca nos bens vinculados».

Entretanto, pela Carta de Lei de 24 de Novembro de 1823, que revogou a Carta de 14 de Março do mesmo ano, foi mandado observar o disposto naquele Alvará de 1815 e ficou esclarecido, para além da natureza e alcance das isenções concedidas, que por terrenos incultos se entendia os que por espaço de 40 anos não tivessem sido aproveitados e que o benefício da “nova cultura” se estendia, então, a todas as Províncias «deste Reino e do do Algarve».

É certo que, como se viu, a concessão outorgada ao primitivo concessionário (Bazílio Castelbranco) pelo Decreto de 21 de Julho de 1884 se...

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