Acórdão nº 17/07.4GBORQ.E2-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 20 de Novembro de 2014

Magistrado ResponsávelRODRIGUES DA COSTA
Data da Resolução20 de Novembro de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

I. RELATÓRIO 1.

AA, identificado nos autos, veio, ao abrigo do disposto no art. 437.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de ... (... Subsecção da Secção Criminal), de 07/12/2012, proferido no processo n.º 17/07.4GBORQ, com fundamento em estar ele em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 04/05/2011, proferido no processo n.º 102/09.8GAAVZ, tendo ambos os acórdãos transitado em julgado e sido prolatados no domínio da mesma legislação.

Para tanto, alegou que, no acórdão recorrido «decidiu-se que o juiz, perante uma deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo, é susceptível de ser integrada na acusação, em julgamento, por recurso à racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, porquanto tal consubstanciar-se-á numa alteração não substancial dos factos, na medida em que a mesma não redunda em imputação de crime diverso», e no acórdão indicado como fundamento «decidiu-se que está vedado ao julgador, porquanto tal configuraria uma alteração substancial do art. 359.º do CPP, o aditamento à acusação de factos susceptíveis de integrar os elementos do tipo subjectivo necessários à existência de um crime».

2.

Foram juntas certidões dos acórdãos recorrido e fundamento, com nota do respectivo trânsito em julgado.

3.

Admitido o recurso, os autos subiram a este Supremo Tribunal, tendo a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, na vista a que se refere o art. 440.º n.º 1 do CPP, emitido parecer no sentido de não ocorrerem os pressupostos legais para o prosseguimento dos autos como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nomeadamente por não haver identidade das situações de facto, já que, no caso do acórdão recorrido, se considerou não haver omissão integral na descrição do elemento subjectivo do crime, ao contrário do que sucedeu no acórdão-fundamento, pelo que propôs a rejeição do recurso.

4.

Proferido despacho liminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência a que se refere o art. 441.º do CPP, na qual foi decidido, por acórdão, ocorrer oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento.

5.

Notificados nos termos do art. 442.º n.º 1 do CPP, vieram os sujeitos processuais apresentar as suas alegações, tendo o recorrente enunciado uma única conclusão do seguinte teor: Deve ser fixada jurisprudência no sentido – salvo obtido o consentimento do Ministério Público, do assistente e do arguido -, de estar vedado ao julgador, sob pena de violação dos artigos 2.º e 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), o aditamento à acusação de factos susceptíveis de integrar, total ou parcialmente, os elementos do tipo subjectivo necessários à existência de um crime, porquanto tal configuraria uma alteração substancial dos factos prevista no art. 359.º do CPP. A Sra. Procuradora-Geral Adjunta, por seu turno, formulou também, em síntese conclusiva, o seu parecer: Dando cumprimento ao que dispõe a norma do art. 442.º, n.º 2 do CPP, entendemos dever fixar-se jurisprudência no sentido da impossibilidade de integração pela prova produzida em audiência de julgamento, com recurso ao disposto no art. 358.º, do elemento subjectivo, em falta ou insuficientemente descrito na acusação, atinente ao tipo de ilícito incriminador imputado.

6.

A oposição de acórdãos foi já decidida na fase preliminar, tendo-se concluído na conferência pela oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

Porém, não tendo a referida decisão força de caso julgado formal, podendo a mesma questão ser reapreciada pelo pleno das secções criminais, como vem sendo decidido uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça, impõe-se proceder a tal reapreciação.

6.1.

No acórdão recorrido estava em causa um crime de injúrias em que a acusação particular deduzida pelo assistente e acompanhada pelo Ministério Público, quanto ao elemento subjectivo, continha apenas a seguinte factualidade: 13 – Os arguidos agem da forma descrita com o intuito de prejudicar o assistente.

14 – O assistente sente-se ofendido na sua honra e consideração bem como na sua reputação profissional.

Na sessão de julgamento, que teve lugar em 22.06.2010, procedendo à leitura pública da sentença, o Tribunal de 1.ª instância proferiu o seguinte despacho: Em face da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos: - O arguido AA sabia que as expressões referidas em 2. eram aptas a atingir a honra e consideração do assistente José Guerreiro e, ainda assim quis dirigi-las ao mesmo, como o fez.

- O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

- Tais factos configuram uma alteração não substancial dado o disposto nos art.°s 358.° n.° 1 e al. f) do artigo 1º CPP, pelo que se comunica a referida alteração ao arguido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.°, n.° 1 do CPP." Diz o acórdão recorrido que: Ciente do teor do despacho supra, o Ex.mo Mandatário do arguido disse "nada ter a requerer e prescindir do prazo de preparação de defesa" — cfr. acta de fls. 550 e 551.

Colocado ante a questão, levantada pelo arguido recorrente, de a acusação ser omissa quanto ao elemento subjectivo do crime e de o tribunal não poder integrar essa omissão, sob pena de violar a estrutura acusatória do processo penal, o direito de defesa do arguido e as regras dos artigos 18.º e 32.º da Constituição da República, o tribunal “a quo” (Tribunal da Relação de Évora), na confirmação da posição adoptada pela 1.ª instância, veio a fundamentar assim o seu entendimento: Assim, para que exista culpabilidade do agente no cometimento de um facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência, como claramente se alcança do estatuído no citado artigo 13°, do Código Penal.— In casu apenas o dolo nos importa. "Costuma a doutrina apontar dois elementos essenciais para a sua existência: um intelectual, outro volitivo ou emocional. O primeiro traduz-se no conhecimento dos elementos e circunstâncias descritas nos tipos legais de crime, sendo costume distinguir entre o conhecimento material desses elementos e o conhecimento do seu sentido ou significação.

O segundo traduz-se numa especial direcção da vontade (...) consiste, justamente, numa certa conexão do facto com a personalidade do sujeito, numa certa posição do agente perante o facto." - cfr. Prof. Eduardo Correia, ob. supra citada, pág. 367 e 375. Isto é, o elemento intelectual do dolo resume-se, por um lado, à representação ou previsão pelo agente do facto ilícito com todos os seus elementos integrantes e, por outro, à consciência de que esse facto é censurável e o elemento volitivo ou emocional do dolo traduz-se na especial direcção da vontade, qual seja a de realização do facto ilícito previsto pelo agente.— Vale o que se deixa exposto por se afirmar que, diferentemente do entendimento expresso pelo recorrente, não estamos no caso em apreço perante alteração substancial dos factos vertidos na acusação. E não estamos porque a comunicada alteração dos factos não teve por efeito nem a imputação de crime diverso do constante da acusação, no sentido em que se não alterou o juízo base de ilicitude, nem o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ao agente do crime acusado, o recorrente.— Não se refuta que a estrutura acusatória do processo penal português impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n° 358/04, de 19.05, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos). Não se refuta também que a terminologia usada na acusação (e acima transcrita) não foi a mais completa, designadamente no tocante ao elemento intelectual do dolo. Dela não consta a fórmula, ainda que estereotipada, de que o autor dos factos objectivamente relatados "tinha conhecimento de que o seu comportamento era proibido e punido por lei", fórmula que proporciona "conforto" mesmo quando se alicerça, como é regra, apenas na experiência da vida e da normalidade do seu devir. Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.02.2005, proferido no processo 0445385, disponível in www.dgsi.pt/itrp. "A afirmação de actuação com conhecimento da proibição [elemento intelectual do dolo], surge como «indispensável sempre que o ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. Já assim não é relativamente aos tipos de ilícitos velhos de séculos, cuja ilicitude de todos é conhecida, como v.g., o homicídio, as ofensas corporais, o furto, as injúrias, em que é contrário à experiência e à realidade da vida pôr em dúvida se o agente sabe que é proibido matar, ofender corporalmente, desapropriar, injuriar, etc". Não se refuta ainda, no ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, ob. supra mencionada, pág. 381, que "O sentido da ilicitude, em razão da qual é formulada a acusação, tem de ser referida na acusação e têm de ser indicados os factos, sujeitos à prova na audiência, donde resulte a consciência pelo arguido da ilicitude do seu comportamento. (...) Os factos naturalísticos descritos na acusação só têm relevância enquanto têm uma significação de desvalor jurídico, constituem um comportamento criminoso pressuposto da sanção, mas o comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objectiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objectivamente ilícitos.".— Porém, a deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo (e é de...

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