Acórdão nº 893/09.6JDLSB-A.L1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 20 de Novembro de 2014

Magistrado ResponsávelOLIVEIRA MENDES
Data da Resolução20 de Novembro de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

* Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça O Ministério Público, representado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Lisboa, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, do acórdão daquela Relação de 3 Dezembro de 2013, proferido no Processo n.º 893/09.6JDLSB-A.L1, no qual figura como arguido AA, que decidiu ser inadmissível o recurso interposto pelo Ministério Público de despacho que não aplicou medida de coacção por ele proposta.

Em sentido oposto indicou o acórdão do mesmo tribunal de 19 de Junho de 2013, proferido no Processo n.º 1370/10.8JDLSB-A.L2-3, o qual decidiu nada obstar à admissão de recurso interposto pelo Ministério Público de despacho que não aplicou as medidas de coacção por ele requeridas.

* Em conferência concluiu-se pela admissibilidade do recurso, face à oposição de soluções relativamente à mesma questão de direito no domínio da mesma legislação, tendo-se ordenado o seu prosseguimento.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, nas suas estruturadas e fundamentadas alegações, formulou as seguintes conclusões[1]: «7.1.

A controvérsia doutrinária que se desenhou a propósito da dimensão normativa a conferir ao art. 219.º Código de Processo Penal, na sua versão originária introduzida pelo DL n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, veio num primeiro momento a ser dirimida legislativamente pela revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, por um lado com a nova redacção introduzida no n.º 1, que limitou a possibilidade de recurso ao arguido e ao Ministério Público em benefício do arguido, e por outro com a introdução do n.º 3 desse preceito que, como corolário lógico dessa limitação, expressamente passou a prever a irrecorribilidade de decisão que indefira, revogue ou declare extinta medida de coacção.

7.2.

A solução normativa assim firmada veio, porém, a ser objecto de contundentes observações críticas por parte significativa da doutrina, quadro em que na revisão subsequente, introduzida pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, decidiu o legislador proceder à alteração do mencionado art. 219.º, em cuja nova redacção se regressou a uma versão em tudo coincidente com a que vigorava antes da revisão de 2007 e se eliminou aquele n.º 3, que era precisamente o segmento normativo que, de forma expressa, tinha passado a consagrar a irrecorribilidade das decisões que indeferissem a aplicação, revogassem ou declarassem extintas medidas de coacção.

7.3.

Ora, e tendo desde logo em conta o comando normativo que, em matéria de interpretação, decorre do n.º 3 do art. 9.º do Código Civil, não pode deixar de concluir-se que o legislador de 2010, nomeadamente ao eliminar a redacção que expressamente vedava o recurso, só pode ter agora optado pela tese contrária. Visou portanto pôr termo ao regime da irrecorribilidade das decisões tal como estava previsto na redacção da Lei 48/2007.

7.4.

De resto, ciente da controvérsia doutrinária anterior (em contraposição, aliás, com a unanimidade da jurisprudência) por um lado, e bem assim das observações críticas apontadas à solução firmada na revisão de 2007 por outro, mal se compreenderia que o legislador, ao abandoná-la na revisão de 2010, regressando praticamente à formulação normativa originária, pudesse ter tido outro desiderato que não passasse pelo acolhimento da anterior orientação jurisprudencial que, pacífica e uniformemente – e também já então com o aplauso de parte significativa da própria doutrina –, vinha apontando no sentido da recorribilidade.

7.5.

Neste sentido, e entre outros autores, aponta o Sr. Conselheiro Maia Costa, que na anotação, de sua autoria, feita a propósito da actual redacção do citado art. 219.º do CPP, incluída no “Código de Processo Penal Comentado”, edição Almedina, 2014, págs. 902 e 903, escreve que, citamos «[…]A Lei n.º 48/2007, de 29-08, veio “resolver” o problema [sobre a supra enunciada querela doutrinária], estabelecendo no n.º 3 a irrecorribilidade das decisões que indeferissem, revogassem ou declarassem extintas as medidas de coacção. Contudo, face à revogação dessa norma pela Lei n.º 26/2010, de 30-08, retorna-se ao texto inicial, podendo pôr-se novamente a dúvida sobre a recorribilidade de tais decisões. No entanto, não é indiferente o facto de o legislador ter revogado a redacção que expressamente vedava o recurso, o que, conjugado com a regra do art. 399º, princípio geral da recorribilidade de todas as decisões, leva decididamente a optar pela posição que admite o recurso das decisões em referência». O recurso pode incidir quer sobre a decisão que aplicar, mantiver ou substituir, como sobre a que indeferir, revogar ou declarar extinta uma medida de coacção. Contudo, neste último caso, o recurso não segue o regime deste artigo, mas sim o regime geral dos artigos 399º e segs., não “beneficiando” assim do prazo de 30 dias nele estabelecido».

7.6.

Outra interpretação deixaria por explicar, aliás, a possibilidade de o Ministério Público recorrer de uma decisão que tivesse substituído uma medida de coacção por outra de menor gravidade e não pudesse impugnar a decisão que pura e simplesmente a revogasse ou não aplicasse. Estar-se-ia, pois, perante evidente contradição valorativa ao admitir-se a hipótese de ser sindicável, pela via do recurso, uma decisão que tivesse substituído a prisão preventiva por exemplo pela obrigação de apresentações periódicas, e se negasse idêntica garantia a uma decisão que, em idênticas circunstâncias, a tivesse revogado.

7.7.

A norma do n.º 1 do art. 219.º do CPP não é um desvio à regra geral da recorribilidade regulada no art. 399.º. Trata-se apenas da previsão de um regime específico destinado a imprimir especial celeridade no conhecimento do recurso interposto de decisões proferidas em sede de aplicação de medidas de coacção, atento o seu carácter provisório e os fins a cuja tutela se destinam (acautelar sobretudo a eficácia do procedimento), e ponderando sempre que elas não deixam de afectar direitos, liberdades e garantias dos respectivos visados, do mesmo passo que não deixam também de contender com a garantia da presunção de inocência, tudo princípios estruturantes do Estado de Direito e com tutela constitucional expressa.

7.8.

Não pode por isso, no apontado quadro, revestir o citado segmento normativo a natureza de norma excepcional, motivo pelo qual não é sequer passível de interpretação com base no argumento “a contrario sensu”.

7.9.

A derrogação do n.º 3 do art. 219.º do CPP também resulta de uma interpretação do n.º 1 do mesmo preceito, conjugado com o regime geral da recorribilidade previsto no art.º 399.º, sem necessidade por isso da sua inclusão expressa na norma revogatória constante do artigo 4.º da Lei n.º 26/2010.

7.10.

Na verdade, e como decorre aliás da própria “nota” emitida pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, convocada no aresto recorrido, “os números 3 e 4 do artigo foram incluídos no novo n.º 1, pelo que não constam de norma revogatória expressa”. Isto é, a matéria que era regulada nos nºs 3 e 4 do artigo em causa (não o respectivo conteúdo) passou a estar contida, regulada, no novo número 1, o que redundou na revogação tácita daquele n.º 3, tornando assim desnecessária e inútil a sua inclusão na norma revogatória. 7.11.

No que diz respeito ao n.º 6 do art. 389.º e ao n.º 3 do art. 391-E do CPP, a técnica legislativa utilizada na citada Lei n.º 26/2010 não pode ser chamada à colação para efeitos de comparação com a usada na alteração do artigo 219.º, porquanto a matéria naqueles regulada passou agora a estar densificada através do aditamento de dois novos preceitos: o art. 389.º-A, que passou a regular autonomamente a sentença em processo sumário; e o art. 391.º-F, que passou a regulador, por remissão para o art. 389.º-A, a sentença em processo abreviado.

7.12.

Ora, e ao contrário do que sucedeu com o novo preceito contido no n.º 1 do art. 219.º, cuja redacção implicou a eliminação dos anteriores n.ºs 3 e 4, ficando a respectiva previsão, na parte não incluída, tacitamente revogada, no caso dos anteriores n.º 6 do art. 389.º e n.º 3 do art. 391.º-A, a sua não revogação expressa redundaria numa sobreposição de segmentes normativos a prever a mesma matéria.

7.13.

Não colhe também a favor da tese da irrecorribilidade a convocação do argumento do denominado princípio da actualidade em sede de aplicação de medidas de coacção. Isto pela simples e singela razão de que nas situações, simetricamente opostas, de interposição de recurso de decisão que tenha aplicado medida de coacção, também o tribunal do recurso a aprecia com base nos fundamentos aduzidos e nas circunstâncias existentes no momento da prolação do despacho recorrido.

7.14.

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