Acórdão nº 233/2000.C2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Junho de 2014

Magistrado ResponsávelMARIA CLARA SOTTOMAYOR
Data da Resolução17 de Junho de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na 1.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça: I - Relatório AA e mulher BB intentaram no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra CC, DD, Lda, Banco EE S.A.

como sucessor de Banco FF S.A., Banco GG S.A. e HH, pedindo a condenação de todos os Réus a reconhecer o seu direito de propriedade e posse sobre o imóvel identificado no art. 1.º da petição inicial; e a ver anulada a venda do mesmo prédio que teve lugar no dia 20/09/2000, nos autos de execução sumária, que sob o n.º 219/94 penderam pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior.

Alegam, para tanto, e em resumo: Que são donos e proprietários de determinado prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva da freguesia da ..., do concelho de Alcobaça, cuja posse lhes foi transmitida por contrato promessa de compra e venda outorgado em 8 de Junho de 1974 com a então proprietária II, a quem pagaram a totalidade do preço acordado para o negócio; que até àquela data de 8 de Junho de 1974, por si e antepossuidores, sempre a dita II esteve na posse, pública, pacífica e ininterrupta, do imóvel, agindo como sua dona e com essa convicção, nele tendo inclusivamente implantado uma casa de habitação, hoje em ruínas; a partir da data em que celebraram o dito contrato promessa prosseguiram os AA tal conduta possessória, ininterruptamente, à vista de todos, também na convicção de exercerem um direito próprio, pelo que, “se outro título não existisse”, adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio por usucapião, nos termos do art.º 1287 do CC; sucede, porém, que em execução sumária movida no Tribunal Judicial de Rio Maior pelo 3.º R. como exequente contra a 1.ª Ré como executada, em que foram credores reclamantes os 4.º e 5.º Réus, a 2.ª Ré adquiriu o dito imóvel por arrematação em hasta pública, obrigando os AA. a propor a competente acção de reivindicação para se verem restituídos ao seu legítimo direito de propriedade.

Citados apenas os Réus HH, Banco GG S.A.

e Banco EE S.A.

contestaram.

O primeiro excepcionou o caso julgado decorrente do julgamento definitivo e transitado operado nos embargos de terceiro oportunamente deduzidos na execução sumária em que o imóvel reivindicado pelos AA. foi vendido; e impugnou a aquisição derivada e os actos de posse do imóvel que estes invocam, concluindo pela procedência da excepção e improcedência da acção.

O segundo aduziu que, além de desconhecer os actos de posse invocados pelos AA., não se verificou inversão do título respectivo, pelo que aquela posse sempre foi em nome alheio, não podendo, por isso, conduzir à usucapião; que não tendo sido objecto de registo, a suposta aquisição pelos AA. sempre estaria arredada pela prioridade do registo da penhora que entretanto veio a ser lavrado.

Termina igualmente com a improcedência da acção.

Por último, contestou ainda o Réu Banco EE S.A., excepcionando o caso julgado formado pela decisão transitada proferida nos embargos de terceiro opostos pelos AA. na execução supra aludida; e, defendendo-se agora por impugnação quanto aos actos de posse que os AA. dizem haver praticado, afirma que estes nunca adquiriram por qualquer forma o imóvel em causa. Em consonância remata com a procedência da excepção de caso julgado ou, assim não se entendendo, com a improcedência da acção.

Os AA. replicaram sem, todavia, modificar o pedido e causa de pedir iniciais.

No despacho saneador foi dirimida e julgada improcedente a excepção do caso julgado.

Irresignado, desta decisão interpôs recurso o Réu BEE SA, recurso admitido como agravo, a subir com o primeiro que houvesse de subir imediatamente, com efeito meramente devolutivo.

A final foi a acção julgada totalmente improcedente e, em função disso, todos os Réus absolvidos dos pedidos.

Inconformados, desta sentença interpuseram novamente recurso os Autores, recurso este admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo. O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu da seguinte forma: «Pelo exposto, acordam: A – Conceder provimento ao agravo e, em função disso, julgar procedente a excepção de caso julgado e absolver todos os Réus da instância, nos termos conjugados os art.°s 494, al.ª i) e 493, n.°s l e 2 do CPC; B – Julgar prejudicado o conhecimento da apelação».

Inconformados os Autores recorrem de revista, apresentando as conclusões exaradas a fls. 773 a 781, e que aqui se consideram integralmente reproduzidas.

Sabido que, salvo as questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões da Recorrente, as questões a decidir são as seguintes: 1 - Nulidade processual prevista no art. 201.º do CPC, por violação do direito ao contraditório previsto no art. 3.º do CPC; 2 - Nulidade do acórdão recorrido, nos termos das alíneas b), c) e d) do art. 668.º do CPC; 3 - Excepção peremptória do caso julgado; 4 - Alteração da matéria de facto e das respostas dadas aos quesitos n.ºs 1 a 4, 7 e 9 a 17, ou, em alternativa, o reenvio do processo para o tribunal recorrido.

5 - Violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso à justiça (arts 13.º e 20.º e 202.º, n.º 2 da CRP).

II - Fundamentação de facto São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância: 1. No âmbito da execução sumária que, sob o n.º 219/94, correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Rio Maior, em que é executada a 1.ª Ré CC, foi nomeado à penhora o seguinte prédio: - Prédio urbano sito em ..., freguesia de ..., concelho de Alcobaça, composto de rés-do-chão para habitação, com quatro divisões, com a superfície coberta de 57 m2, dependência com 42 m2 e quintal e logradouro com 800 m2, a confrontar do Norte com JJ, do Sul com KK, do Nascente com caminho Público, e do Poente com LL, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo n.º 615, e omisso na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça [A)].

  1. A 2.ª Ré, DD, Lda, adquiriu por arrematação em praça o referido prédio, nos autos de Carta Precatória n.º 225/2000, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, extraída da execução sumária referida em A) [B)].

  2. O prédio descrito em A) foi nomeado à penhora no âmbito da identificada execução sumária pelo 3.º Réu Banco FF, SA [C)].

  3. Tendo os 4.º e 5.º Réus, Banco GG, SA e HH, reclamado créditos na referida execução sumária [D)].

  4. A habitação referida em A) encontra-se em ruínas desde data não apurada [3.º].

    III – Fundamentação de direito 1) e 2) Nulidade processual por violação do princípio do contraditório (arts 3.º e 201.º do CPC) e nulidades do acórdão recorrido nos termos das alíneas b), c) e d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC O acórdão recorrido concedeu provimento ao agravo intentado pelo Réu Banco EE, julgando procedente a excepção de caso julgado e considerando prejudicado, em consequência, o conhecimento da apelação interposta pelos autores.

    A questão do agravo prende-se com o problema de saber se com a decisão que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelos agora autores, na execução sumária para pagamento de quantia certa que no Tribunal Judicial de Rio Maior o então exequente Banco FF, S.A., hoje Banco EE, S.A., moveu à aqui Ré, CC, se formou caso julgado material. Este, como excepção dilatória, obstaria à prolação da decisão de mérito na presente acção, determinando a correspondente absolvição dos Réus da instância.

    Entendeu o acórdão recorrido que se verificava entre a decisão proferida nos embargos de terceiro, já transitada, e a presente acção, identidade de partes, de causa de pedir e de pedido, declarando a procedência da excepção de caso julgado material e não conhecendo do mérito da apelação.

    No recurso de revista, alegam os recorrentes que o facto de o tribunal recorrido ter declarado a procedência da excepção de caso julgado e de não ter conhecido das questões colocadas na apelação constitui uma decisão surpresa susceptível de gerar uma nulidade processual por violação do direito ao contraditório (arts 3.º e 201.º do CPC) e nulidades do acórdão recorrido por falta de fundamentação, oposição entre os fundamentos e a decisão, bem como por omissão e excesso de pronúncia (alíneas b), c) e d) do art. 668.º do CPC).

    Vejamos: 1.

    Nos termos do art. 201.º, n.º 1 do CPC, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

    Segundo o art. 3.º, n.º 3 do CPC, «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».

    Os recorrentes invocam ter sido violado o princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões surpresa.

    Deve esclarecer-se, em primeiro lugar, que se tem entendido que o art. 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado na Alemanha, país donde dimanou e tem longo historial, verificando-se importantes diferenças de regime entre o Código de Processo Civil português e o alemão.

    O direito ao contraditório (Rechtliches Gehör), no direito alemão constitui um direito fundamental, baseado na dignidade da personalidade humana[1], e está consagrado no artigo 103.º, I, da Constituição Alemã, onde se afirma: «Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos».

    Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139, n.º 2 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil alemão), deles resultando que o legislador germânico confere ao direito ao contraditório uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa, até porque entre nós não existe preceito correspondente ao...

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