Acórdão nº 937/12.4JAPRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Dezembro de 2014

Magistrado ResponsávelISABEL SÃO MARCOS
Data da Resolução17 de Dezembro de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1.

No 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira e no âmbito do processo comum nº 937/12.4JAPRT, o arguido AA foi julgado e condenado, por acórdão de 03.09.2013, pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, números 1 e 4, alínea b), do Código Penal, na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão e de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, números 1 e 2, alíneas g) e j), do Código Penal, na pena parcelar de 21 (vinte e um) anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.

Mais foram julgados parcialmente procedentes os pedidos de indemnização civil deduzidos pela demandante “P...,...,SA” e pelos demandantes BB e CC e, em consequência, o arguido AA condenado a pagar-lhes, respectivamente, as quantias de € 81.029,46, acrescida de juros à taxa legal, desde a sua notificação do pedido deduzido até efectivo e integral pagamento, e de € 2.873,00, a título de danos patrimoniais e € 90.000,00, a título de danos não patrimoniais, em ambos os casos acrescidos de juros à taxa legal, desde a data da condenação até efectivo e integral pagamento.

  1. Inconformado com esta decisão, o arguido AA interpôs recurso, de facto e de direito, para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 09.05.2014, julgando improcedente o recurso, confirmou integralmente o acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira.

  2. Ainda irresignado com o assim decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, o arguido AA interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo extraído, da motivação que apresentou, as seguintes conclusões: «I. O Recorrente não se conforma com o acórdão ora recorrido por entender que o carácter genérico da decisão lhe vedou o exercício do seu direito fundamental de verdadeira reapreciação da matéria de facto por aí não ser realizada uma análise crítica dos depoimentos e da prova documental indicados pelo Recorrente para sustentar o seu pedido de modificação da matéria de facto da qualificação jurídica. O Tribunal a quo não procedeu a uma correcta reavaliação da matéria de facto procurando a Sua própria convicção, violando o disposto nos arts. 428.° e 431.° do CPP e não assegurando nesta parte o duplo grau de jurisdição.

    II.Tendo sido impugnada a prova nos termos do art. 412.°, n.º 3 do CPP e cumprindo-se os requisitos aí impostos, ao Tribunal da Relação do Porto incumbia uma verdadeira reapreciação das provas para a formação da sua convicção acerca dos factos impugnados, vertendo-a no acórdão, o que não aconteceu, violando o disposto nos artigos 428.° e 431.°do CPP e o princípio constitucional do duplo grau de jurisdição incluído na parte final do n.º 1 do art. 32,° da CRP, devendo ser, nessa parte, revogado e reenviado ao Tribunal da Relação para que aí se realize um efectivo controlo da matéria de facto e da prova produzida, o que não consta vertido no acórdão recorrido.

    1. O Recorrente invoca a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 428.° e 431.° do CPP, tal como aplicada pelo Tribunal a quo, no sentido de que, uma vez impugnadas as provas nos termos do n.º 3 do artigo 412.°do CPP, o exercício por parte do Tribunal da Relação do poder de cognição da matéria de facto basta-se com afirmações genéricas de não modificação dessa matéria sem uma efectiva reapreciação dos elementos probatórios indicados pelo Recorrente e demais elementos de prova existentes no processo, por violação do princípio do duplo grau de jurisdição vertido no art. 32º, nº 1 da CRP, Sem prescindir: IV. O acórdão do TRP ora recorrido violou ainda o disposto no art.º 132.°, nºs 1 e 2, al. j), do CP por não estarem preenchidos os pressupostos da qualificação do homicídio citados naquele normativo. O acórdão em crise justifica a premeditação de forma genérica por remissão aos motivos elencados no acórdão da 1.ª instância e com base na invulgaridade de uma embalagem de Fairy de 950ml e de uma faca de cozinha adquirida dois dias antes do crime. Sucede que, do facto dado por provado sob o nº 39 do acórdão da 1.ª instância não resulta inequívoca e expressamente como provada a persistência da intenção de matar por mais de 24 horas. Na verdade, atenta a natureza e finalidade do instrumento em questão - uma faca de cozinha normalmente usada nas lides domésticas - e o non liquet inerente ao momento em que a faca foi levada para o local do crime, não é possível concluir que a faca foi adquirida com o propósito de matar, nem que esse propósito se prolongou por mais de 24 horas. (Em tudo idêntico, veja-se: Ac. STJ de 07.11.2011 Proc. 830/09.8PBCTB.C1.S1).

    2. Por outro lado, o tipo qualificado do crime de homicídio previsto no art.º 32.° do CP traduz um especial tipo de culpa, exigindo, em primeiro lugar, a comprovação de que das circunstâncias inerentes à prática do crime resulta uma maior censurabilidade ou perversidade do agente, o que também não resulta dos factos dados por provados.

    3. Acresce que, o acórdão ora recorrido violou ainda o art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo na decisão do preenchimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito do crime de abuso de confiança qualificado, cujo elemento central do tipo objectivo de crime é a apropriação de coisa móvel que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade. No caso em apreço, o juízo de apropriação pelo Arguido das quantias correspondentes às diferenças entre os relatórios de gestão e a contabilidade realizado pelo Tribunal a quo resultou unicamente de prova indiciária que é contrariada pela prova documental e testemunhal identificada na motivação do recurso que não foi criticamente apreciada pelo Tribunal da Relação. Pugna-se, por isso, pelo reenvio para o Tribunal da Relação para que aí se reaprecie efectivamente a prova produzida quanto à prática do crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art. 205.°, n.º 1 e 4, al. b) do CP., e se venha a absolver o Recorrente deste crime.

    4. De toda a prova produzida nos autos e indicada nos artigos 44.º a 192.º da motivação do recurso para o TRP não deveria ter resultado um juízo condenatório pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p, pelo artº. 205.°, n.º1 e 4, al. b), do C.P. por não existir prova directa dos elementos do tipo objectivo e subjectivo de ilícito do crime de abuso de confiança qualificado e a prova indiciária não excluir hipóteses eventuais e divergentes, conciliáveis com a existência do facto indiciante (cf. Ac .do TRP, de 28.01.2009, Proc. n.º 0846986).

    5. No mínimo, o julgador deveria ter sido sobressaltado pela dúvida acerca dos factos impugnados pelo Recorrente que deveria ter sido assumida no acórdão recorrido e no acórdão de primeira instância e não foi. Não se trata de uma "dúvida hipotética, abstracta ou de mera hipótese sugerida pela apreciação da prova feita pelo Recorrente", trata-se de uma efectiva dúvida acerca da apropriação das quantias em causa ou da entrega de parte dessas quantias a título não translativo por não existir prova directa de tais factos e porque as ilações que o julgador tirou de factos conhecidos para firmar vários factos desconhecidos não tiveram por base um nexo preciso, directo e conforme às regras da experiência que permitisse a exclusão de outras conclusões com igual grau de verosimilhança (arts. 349.º e 351.º C.C. e art. 125.° CPP).

    6. Num Estado de Direito, as presunções judiciais têm que ser cautelosas, sendo extremamente perigoso extravasar-se os limites da prova e condenar-se com base em presunções judiciais que permitem a existência de uma diversidade imensa de versões dos mesmos factos. E não se tratará da simples dúvida sobre a exactidão do caso concreto, mas mais do que isso, a dúvida razoável irremovível acerca da eventual entrega ao arguido das quantias em causa pelo Eng. CC, ora para que realizasse pagamentos, transferências e depósitos que lhe ordenava - documentalmente comprovados nos autos como exposto e especificado na motivação do recurso declarado improcedente -, ora a título translativo, como gratificação pelo trabalho que prestava, não só para a P..., mas também para a T..., V..., M... e B..., empresas do mesmo grupo, de que o arguido não era funcionário, encontrando-se nos autos vários documentos comprovativos de que também trabalhava para estas.

    7. Por último, quanto à medida da pena, os fundamentos do acórdão recorrido são genéricos, não fazem uma efectiva análise/apreciação da factualidade dada por provada, nem da fundamentação do acórdão da primeira instância no que respeita à medida da pena e violam o disposto no arts. 40.°, 70.º, 71.º, 72.º, nº1 e nº2, 73.º, 77.º, nº1, do CP.

    8. Em primeiro lugar e antes do mais, o Recorrente considera inconstitucional o princípio da mínima intervenção do tribunal de recurso - invocado na página 115 do acórdão recorrido - por violação do disposto nos arts. 20.º e 32.º da CRP. A interpretação do invocado princípio no sentido de que o quantum da pena aplicada pela primeira instância só deve ser alterada se a "mesma se revelar manifestamente desproporcionada" viola genericamente o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e, em concreto, as garantias de processo criminal constitucionalmente previstas no art. 32.º da CRP.

    9. Todas as operações de fixação da exacta medida da pena são aplicação de factores jurídicos específicos e não discricionários, sendo, por isso, sindicáveis, e tanto a violação das regras da experiência, como a mera desproporção, não necessariamente manifesta como referido pelo TRP, justificam o controlo pelo tribunal de recurso do quantum da pena aplicada.

    10. As exigências de prevenção, na sua dupla dimensão geral e especial, e o limite inultrapassável da culpa do Recorrente impõem a redução da medida da pena aplicada tendo em consideração os factos 80 a 108 dados por provados em primeira...

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