Acórdão nº 844/09.8TVLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Setembro de 2014

Magistrado ResponsávelMARIA CLARA SOTTOMAYOR
Data da Resolução30 de Setembro de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I - Relatório AA intentou e fez seguir contra BB, Lda a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo que a mesma seja julgada procedente por provada e se:

  1. Declare válida a resolução do contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula …-FH-…; b) Condene a ré a reconhecer que o referido veículo pertence à autora; c) Condene a ré na entrega definitiva à autora do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula …-FH-… e respectivos documentos.

    Para tanto, e em síntese, alegou ter financiado a ré, no exercício da sua actividade de financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis, na aquisição do veículo M... Sport, vendido pela M... … de Portugal Lda.

    Para garantia do reembolso do montante financiado de € 49.692,00 foi constituída uma reserva de propriedade a favor da vendedora registada, a M... … de Portugal, Lda, tendo esta lhe cedido, com o consentimento da ré, a titularidade da referida reserva de propriedade, registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a favor da autora. Mais alegou que, embora a ré tenha assumido a obrigação de pagar-lhe uma prestação mensal no montante de € 828,20 por um período de 60 meses, não lhe pagou a 2.ª prestação, nem efectuou mais qualquer outro pagamento.

    Adiantou ter interpelado a ré para pôr termo à mora e, posteriormente, devido ao silêncio desta, notificou-a por carta registada com aviso de recepção da resolução do contrato de financiamento. Finalmente, alegou que, não obstante a apreensão do veículo no âmbito duma providência cautelar, o mesmo não se passou com toda a documentação de molde a permitir a sua posterior venda.

    A ré foi citada editalmente, tendo o M. P., em sua representação por ausente em parte incerta, contestado a acção, pugnando pela improcedência desta e consequente absolvição.

    Em síntese, sustentou que o contrato celebrado nos presentes autos não foi um contrato de compra e venda a prestações, de alienação, mas antes um contrato de crédito. Não se justificando, assim, a condenação da ré a restituir à autora o dito veículo automóvel, nem existindo fundamento para que seja reconhecido o invocado direito de propriedade do mesmo veículo. Finalmente sustentou que a reserva de propriedade só é admissível em benefício do alienante, pois só este é que pode reservar para si o que já possui, ou seja, a propriedade da coisa.

    A autora replicou defendendo a improcedência da excepção deduzida e a condenação da ré conforme peticionado.

    Findos os articulados, o Mm.º Juiz a quo proferiu saneador-sentença cuja parte decisória é do seguinte teor: «Julga-se a acção parcialmente procedente, julgando o contrato celebrado entre as partes validamente resolvido pelo autor. No mais absolvo a ré dos restantes pedidos».

    Inconformada com tal decisão, a autora interpôs recurso que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

    O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão onde ficou exarada a seguinte decisão: «Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência: - Revoga-se a decisão recorrida na parte em que absolveu a ré dos restantes pedidos (condenação da ré a reconhecer que o referido veículo pertence à autora e condenação da ré na entrega definitiva à autora do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula …-FH-… e respectivos documentos); - Condena-se a ré a reconhecer que o referido veículo, financiado pela autora, pertence a esta e ainda a proceder à entrega definitiva à autora do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula …-FH-… e respectivos documentos.

    - Mantendo-se, no mais, o decidido.

    Custas a cargo da ré, em ambas as instâncias».

    Inconformada, interpõe recurso de revista a Magistrada do Ministério Público, em representação da Ré ausente, apresentando na sua alegação de recurso as seguintes conclusões: «1. A Autora é uma instituição de crédito e foi financiadora da Ré para a aquisição de um veículo de Marca M..., matrícula …-FH-….

    1. A Autora celebrou com a Ré um contrato de mútuo (art. 1142.º do C.C.), para financia a aquisição do referido veículo.

    2. A Autora inscreveu a seu favor a reserva de propriedade da viatura.

    3. Nos termos legais, a reserva de propriedade só pode ser estipulada, no âmbito do contrato de compra e venda, a favor e em benefício do alienante, operando como condição suspensiva do efeito translativo do contrato.

    4. Como forma de salvaguarda do vendedor, proprietário da coisa, e a favor do qual se constitui a reserva de propriedade, só se transferindo a mesma, em regra depois de pago integralmente o preço.

    5. A Autora é terceira relativamente ao contrato de compra e venda do veículo.

    6. Nunca tendo sido dona da viatura, não podia reservar para si a propriedade da mesma.

    7. Já que a constituição da reserva a favor de um sujeito jurídico pressupõe a titularidade por este da propriedade da coisa, titularidade que o alienante mantém em reserva, durante a execução do contrato, sendo o comprador titular de um direito real de aquisição.

    8. A reserva de propriedade constituída a favor do alienante não incide sobre a essência do contrato de compra e venda, apenas operando sobre o efeito translativo do mesmo, ou seja, sobre a transferência da propriedade do vendedor para o comprador, sendo a transmissão da propriedade diferida para momento posterior.

    9. Pelo que a cedência pela vendedora M... da reserva de propriedade de que era titular à Autora, não tem como corolário que a Autora adquira a propriedade da coisa.

    10. O acórdão recorrido sufraga o entendimento de que a reserva em causa é permitida, atento o princípio da liberdade contratual.

    11. Mas o princípio da liberdade contratual, sendo muito amplo entre nós, está balizado por limites, precisamente aqueles que a lei lhe impõe, nos termos do art. 405.º, n.º 1 do CC.

    12. Assim sendo, a reserva de propriedade inscrita a favor da Autora/financiadora é injustificável e foi feita à revelia da lei, sendo nula.

    13. Face ao exposto, julgando válida a reserva da propriedade do veículo M..., com matrícula …-FH-…, a favor da financiadora da aquisição, e tendo condenado a Ré a entregar tal veículo e os respectivos documentos à Autora e a reconhecer que o mesmo lhe pertence, o douto Acórdão recorrido efectuou incorrecta interpretação dos normativos legais aplicáveis, e designadamente, dos arts 15.º, 18.º, n.º1, 19.º e 21.º do DL 54/75, e dos arts 405.º, n.º 1, 408.º e 409.º do Código Civil.

      Termos em que deverá ser revogado, repristinando-se a sentença proferida na primeira instância, e absolvendo-se a Ré dos pedidos formulados pela Autora nas alíneas b) e c) da petição inicial, assim se concedendo a revista.» AA PLC apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões: A.

      Contrariamente ao alegado pela Apelante, a reserva de propriedade foi constituída no âmbito de um contrato de alienação, nomeadamente no âmbito do contrato de compra e venda do veículo, celebrado entre a M... Portugal (vendedora) e a ora Apelante (compradora), conforme resulta claro do contrato junto domo Doc. 1 na Petição Inicial e da Certidão Narrativa junta sob. Doc. 2 no mesmo articulado.

      1. Dispõe o n.º 1 do art. 409.º do Código Civil: "Nos contratos de alienação é licito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento".

      2. A redacção do referido artigo é clara e inequívoca: a reserva de propriedade pode ser condicionada ao cumprimento das obrigações da outra parte (normalmente o pagamento do preço por parte do comprador) ou até à verificação de qualquer outro evento.

      3. Eventuais limitações como a alegada pela Apelante – que a reserva de propriedade apenas pode ser constituída em benefício do alienante – não resultam nem da Lei, nem, no presente caso, da vontade das partes.

      4. O conceito de "qualquer outro evento" permite abarcar realidades como sejam a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário originário, nada impedindo, por isso, a constituição, tal como foi efectuada, de uma reserva de propriedade a favor da entidade que financiou a aquisição do veículo automóvel, pela reservatária originária do mesmo.

        F.

        Tal conceito permitirá inegavelmente enquadrar “as obrigações emergentes de um contrato de financiamento em que o próprio vendedor tenha outorgado, ou de cujo clausulado resulte para ele um interesse relevante” (Acórdão da Relação de Lisboa n.º 7622/00 de 26 de Julho de 2000 - não publicado).

      5. O interesse relevante no presente caso resulta claro do esquema de aquisição descrito nos autos que permite observar que a vendedora e a mutuante são entidades que, embora distintas, se encontram comercialmente associadas, e que a comercialização de veículos quando não é feita a pronto pagamento, apenas é possível existindo o financiamento do capital necessário pela ora Apelada, tendo, consequentemente, a vendedora do veículo todo o interesse no cumprimento integral pela Apelante do contrato de financiamento celebrado com a Apelada.

      6. É também este o entendimento constante do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 06.05.2010, onde é relatora a Exma. Desembargadora Carla Mendes, disponível em www.dgsi.pt: "É na relação pagamento integral do preço da coisa vendida/transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominii encontra a sua razão de ser e daí que é perfeitamente admissível a constituição de reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência de propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o...

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