Acórdão nº 85/14.2YFLSB de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Abril de 2015

Magistrado ResponsávelSANTOS CABRAL
Data da Resolução29 de Abril de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça O arguido AA veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Maio de 2014, proferido nos autos de recurso penal supra identificado, nos termos do artigo 437.º Cód. Proc. Penal. Alega que a solução nele adoptada se encontra em oposição com a constante do acórdão da mesma Relação, proferido a 21 de Novembro de 2013, no Processo n.º 22/10.3IDFUN.L1.

Em abono da sua tese refere que o litígio jurisprudencial se concretiza no facto de o acórdão fundamento considerar que, para efeitos do preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105.º do RGIT, «o recebimento da prestação tributária é… pressuposto essencial do crime…, sendo que o dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de protecção penal, por atipicidade do facto», enquanto o recorrido, adoptou solução contrária, decidindo que «o elemento típico “recebimento” não consta do tipo incriminador», e sendo «um crime de omissão pura, em que não se exige qualquer elemento de apropriação», «o pagamento do IVA liquidado e declarado à Administração Fiscal, é exigível assim que decorra o prazo para o efeito, tenha ou não o sujeito tributário recebido a quantia do cliente/devedor».

Na sequência processual adequada o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão proferido a 8 de Janeiro de 2015, decidiu-se pela oposição de julgados, determinando o prosseguimento do recurso.

Sinteticamente a questão que se coloca é definir se o agente que não entrega à administração tributária prestação tributária de IVA de valor superior a (euro) € 7.500 relativo a quantias que tenha liquidado, mas que não tenha efectivamente recebido, comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 do RGIT.

No que concerne o acórdão fundamento entendeu que, como o recebimento faz parte do tipo legal, só comete o crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105.º, n.º 1 e 2 do RGIT, quem não entregar ao Estado, no prazo legalmente fixado, o montante de imposto que efectivamente recebeu no concreto período em causa.

Por seu turno, o acórdão recorrido entendeu que comete o crime de abuso de confiança fiscal o arguido que não entregar à administração tributária prestação tributária deduzida nos termos da lei e a que estava legalmente obrigado, mesmo que não tenha efectivamente recebido tais valores, porquanto o recebimento não faz parte do tipo.

Em abono da posição que defende refere, em termos de argumentário, o acórdão fundamento: 1) O sujeito passivo tributário que liquida na factura e recebe o IVA é um fiel depositário da prestação tributária podendo, em cada declaração, apurar um saldo nulo de imposto a entregar, ou um saldo positivo que lhe seja favorável. O que o agente económico tem de entregar é o eventual saldo que, nessa contabilidade, exista a favor do Estado.

2) Não se encontra, no quadro do IVA, uma prestação tributária deduzida, cuja retenção (omissão de entrega), tal como se encontra prevista no artigo 105.º, n.º 1 do RGIT, seja merecedora de tutela criminal.

3) No âmbito do IVA, trata-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber nos termos dos artigos 19º a 25º do CIVA, mas não em qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha sido deduzido. Na concretização do direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária a prestação tributária que deduziram, mas, pelo contrário, apenas têm de fazer a entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito.

4) A norma a aplicar é o artigo 105.º, n.º 2, do RGIT, que estabelece uma extensão do tipo previsto no n.º 1 aos casos de não entrega de IVA que tenha sido recebido.

5) Se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, só existe desvalor da acção (omissão) quando o agente que, tendo efectivamente recebido o IVA, o liquidou, recebeu e detém omitida a sua entrega ao Estado.

6) Se a prestação tributária não chegou a ser recebida e retida não há possibilidade de cumprimento da obrigação de entrega, nem existe depositário legal, pelo que não pode haver quebra de confiança, nem conduta censurável.

7) A atribuição de dignidade penal à omissão de entrega de quantia não recebida significaria uma insustentável violação da proibição de punição de uma conduta sem culpa.

8) O crime de abuso de confiança fiscal tem como um dos seus elementos objectivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária.

9) Assim, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º n.º 1 e 2 do RGIT, quem não proceder à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado, do montante de imposto que efectivamente recebeu no concreto período em causa.

Em suporte da sua tese chama à colação na área da jurisprudência:- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.01.2014, procº 49/08.5 IDAVR.C2, www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22.04.2013, procº 520/11.1 IDBRG.G1, www.dgsi.pt,- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18.03.2013, procº 412/11.4 IDGRG.G1, www.dgsi.pt;- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.03.2012, procº 1133/10.0 IDLRA.C1, www.dgsi.pt;- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29.02.2012, procº 1638/09.6 ID;LRA.C1, www.dgsi.pt;- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09.06.2005, procº 203/04-1, www.dgsi.pt;- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.12.2001, 01P3749, sumário disponível em www.dgsi.pt:- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.05.1999, procº 276/99; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02.07.1998, CJ, acórdãos do STJ, ano VI, tomo II, 1998, pág. 230. e da doutrina:- Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão Sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador, Coimbra Editora, 2006;- Alfredo José de Sousa, Infracções Fiscais Não Aduaneiras, 3ª edição, Anotada, Livraria Almedina Coimbra, 1998; Isabel Marques Silva, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, Vol. II, Economia, Finanças Públicas e Direito Fiscal, Almedina, Nullum Crimen, Nulla Poena, Sine Lege Praevia.;- Augusto Silva Dias, ainda no domínio do RIFNA, Os Crimes de Fraude Fiscal e de Abuso de Confiança Fiscal: Alguns Aspectos Dogmáticos e Político-Criminais.;- Américo Taipa de Carvalho, O Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra Editora.;- Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, 2008, Áreas Editora.;- Nuno Lumbrales, O abuso de confiança Fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias, Fiscalidade, nº 13/14.

Por seu turno o acórdão recorrido suporta-se nas seguintes premissas: 1) No IVA o arguido actua como substituto do devedor originário (adquirente dos bens ou serviços) sendo ele a pessoa a quem a lei impõe o dever de praticar actos tributários em nome do credor estatal.

2) Ao nível da interpretação literal do preceito incriminador em causa, o “recebimento” não consta do tipo incriminador como seu elemento típico.

3) Na lógica do sistema fiscal a dívida de IVA de um determinado período não tem de ser necessariamente paga pelas “forças financeiras” da empresa angariadas no período a que a dívida diz respeito, podendo sê-lo com o dinheiro recebido noutros períodos, anteriores ou posteriores, com crédito bancário, com venda de bens da empresa, com suprimentos dos sócios, etc.

4) O direito penal tributário não é “direito penal de justiça” no sentido de direito penal clássico em que está em causa a protecção das principais referências éticas e axiológicas da comunidade, mas direito penal secundário no sentido de que pretende sobretudo o reforço da garantia de execução das finalidades dos Estados modernos, sem particulares fundamentos axiológicos, como é o caso da cobrança de impostos.

5) A perspectiva de que o recebimento é elemento típico deste tipo legal de crime abre uma autêntica “caixa de pandora” relativamente à garantia daquelas finalidades.

6) E tal perspectiva não pondera que o IVA devido às finanças é uma relação dinâmica entre IVA cobrado aos clientes do contribuinte e o IVA pago pelo contribuinte aos seus fornecedores. Se existem situações em que o IVA liquidado não é recebido até à data do seu pagamento, elas coexistem com situações em que o contribuinte também não pagou IVA aos seus fornecedores. E tal como declara IVA liquidado aos seus clientes, mas não recebido, também abate nesse “deve” o “haver” dos montantes de IVA que os seus fornecedores lhe liquidaram e que ainda não pagou.

7) Uma vez que o recebimento não faz parte do tipo, ainda que não tenha recebido os valores deduzidos, comete o crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, o arguido que não entregar à administração tributária prestação tributária deduzida nos termos da lei e a que estava legalmente obrigado.

Fundamenta-se, em termos jurisprudenciais nas seguintes decisões; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.10.2012, procº 314/09.4 IDAVR.C1, www.dgsi.pt;- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21.09.2011, procº 142/09.7 IDCBR.C1, www.dgsi.pt;- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04.02.2009, procº 11036/2008 – 3, www.dgsi.pt;- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 01.10.2008, procº 0842659, www.dgsi.pt;- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.12.2006, procº 3360/2006-5, www.dgsi.pt;- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20.11.2006, procº 1796/06-2, www.dgsi.pt O Exº Mº Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou alegações concluindo que: 1- O IVA, como os demais impostos, constitui um dever fundamental do cidadão, sendo o contributo indispensável que possibilita concretizar a ideia redistribuição de riqueza e de solidariedade social acolhidas na Constituição.

2- O IVA visa tributar todo o consumo de bens materiais e serviços...

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