Acórdão nº 1390/05.4TDLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 04 de Novembro de 2015

Magistrado ResponsávelSANTOS CABRAL
Data da Resolução04 de Novembro de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a decisão de primeira instância que decidiu: Condenar o arguido BB como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência p.p no artº 148º/1/3 do C.P com referência ao artº 144º al a) e b) do C.P na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano subordinada ao cumprimento de pagar dentro desse prazo a quantia de 2.500,00 euros ao demandante AA, por conta de parte da indemnização que lhe foi atribuída.

Relativamente à acção cível: Condenar o arguido e demandado BB a pagar ao recorrente uma indemnização cível, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal em vigor desde a notificação para contestar, até efectivo e integral pagamento, sendo que a indemnização foi repartida do seguinte modo: - 100.000,00 € a título de danos não patrimoniais; - o montante de 51,09 € por mês, a título de danos patrimoniais sofridos pelo demandante, contados desde 1.10.2004 e até que o demandante necessite de fazer tal despesa com a aquisição do medicamento “Testogel”; - 250.000,00 € para compensar a perda de rendimentos e a perda de aptidão para os auferir, a que serão deduzidas todas aquelas quantias que o demandante já recebeu ou venha a receber a título de pensão por invalidez, a concretizar mediante simples cálculo aritmético, ficando o demandando obrigado a pagar apenas a diferença entre esses valores, os quais serão a liquidar em execução de sentença, nos termos do artº 609º/2 do C.P.

O Estado Português demandado foi absolvido do pedido de indemnização cível contra ele deduzido e acima referido.

O recorrente centra a razão da sua discordância na absolvição do Estado do pedido formulado oferecendo as seguintes conclusões: a. O douto acórdão do Tribunal da Relação, quando considera que o pedido cível não faz referência ao posto militar da testemunha Paulo Alves ou à ordem dada por este ao assistente, incorre em erro, porquanto no art. 30 daquele requerimento (primeiro, do pedido cível), o assistente dá por reproduzido o que alegara quanto à acusação do assistente e, no art, 13 desta, faz expressa menção do posto de marinheiro consignado à testemunha Paulo Alves e, no art. 16 da mesma acusação, alega que se tratou de uma ordem a que não podia deixar de obedecer. Sendo ambos marinheiros, a referência ao dever de obediência de um grumete se aplica também testemunha, pois se trata de facto instrumental; b. Naquele sentido, o douto acórdão recorrido, reconhece mesmo que o ofendido "foi chamado para ser confrontado com a arma de fogo pessoal do arguido", na sequência de uma conversas entre o arguido e a testemunha "por haver a suspeita de que o ofendido não gostava de armas" (itálico nosso). Mas não contempla a questão suscitadas no recurso por lapso na apreciação do pedido cível - lapso esse que afecta a decisão quanto à prova e ao direito aplicável; c. Contrariamente ao expendido no douto acórdão, foi suscitada no pedido cível (art. 65) e na acusação do assistente (art. 14), como foi discutida em julgamento na primeira instância, conforme requerimento deduzido pelo assistente a 25/10/2013, referência citius 3233365, pelo que o uso de munição derrubante, na linguagem popular, ou expansiva, na terminologia técnica, foi devidamente suscitado e deve ser objecto de decisão; d. O douto acórdão considera, certamente por lapso, que aquelas menções e discussão não foram feitas pelo que não se pronunciou sobre a matéria - omissão que inquina a decisão quanto aos factos provados e ao julgamento de direito; e. O douto acórdão não se pronuncia sobre as restantes questões de facto, refugiando-se no entendimento conclusivo e carecente de factos de que não se tratou de uma situação de exercício das funções e por causa delas, brocardo que corresponde a uma concepção do direito administrativo clássico que restringia os actos de gestão pública, na prática, aos hoje inconsequentes actos definitivos e executórios, posta em crise por Marcelo Caetano, Direito Administrativo, I, § 190, o que constitui uma violação das regras da prova, que fere de nulidade o douto acórdão; f. É apenas com a especificação dos factos e com os respectivo elenco devidamente provado e condensado que é possível fazer-se a subsunção ao direito aplicável, sobretudo numa área tão complexa como a da responsabilidade do Estado, que pode sustentar-se numa variedade de institutos distintos; g. Quanto ao direito, o douto acórdão está em contradição com os seus fundamentos, pois entende que não há responsabilidade do Estado por ter omitido a sua função de fiscalização, "quanto ao uso de armas de fogo por militares, já que foi por este criada legislação especifica para o efeito, cabendo depois às hierarquias militares, cuidar da sua aplicação prática e impor o respeito da mesma às várias hierarquias militares" (itálico nosso, com a devida vénia); h. A responsabilidade por falta de vigilância não se esgota na produção da lei (que autoriza a arma a militares) e do regulamento (que impede a sua entrada no quartel), pelo contrário deve traduzir-se na efectiva fiscalização e no fazer respeitar daquela lei e regulamento. A culpa in vigilando nasce precisamente da falta de vigilância impostas pela lei e pelo regulamento; i. Tais matérias são fundamentais para a boa decisão da causa, pelo que o douto acórdão incorre em omissão de pronúncia, por não se pronunciar em concreto sobre os factos que deveriam ter sido levados ao factos provados e que interessam à boa decisão da causa, em especial os constantes das conclusões a), b), c), e), f) e g) das conclusões das alegações de recurso; j. Igual nulidade decorre da contradição da fundamentação quando se reconhece que a entrada e uso de armas na unidade deveria ter sido vigiada pelas chefias, o que não foi feito, mas se desresponsabiliza o Estado por ter aprovado as normas que tal comportamento exigiam - transferindo para funcionários não identificados a desorganização que o próprio Estado instaurou ao permitir que simples praças usassem armas de extrema violência, sem assegurar que os seus agentes cumprissem e fizessem cumprir tais disposições regulamentares; k. Mostra-se violado o disposto no art. 369, nº 1, c) do CPC e no art.615, n° 1, c) e d), do NCPC, enquanto omissão de pronúncia, nulidade que deve ser suprida; l. Em consequência devem declarar-se provados os factos constantes das alíneas a), b), c), e), f) e g) das conclusões das alegações de recurso; m. Não tendo o STJ poderes para se pronunciar sobre a matéria de facto, deve o processo ser reenviado para o Tribunal da Relação, a fim de serem colhidos os factos necessários à boa decisão da causa; n. A questão da responsabilidade do Estado ao tempo da lei 48051 de 1967, mostra-se devidamente debatida na doutrina e jurisprudência constitucional e administrativa, considerando-se, tal como alegado nas alegações de recurso, que é directamente aplicável o disposto na Constituição da República, mormente no art. 22, sendo inconstitucionais as interpretações que ofendam a Constituição; o. Da matéria de facto provada e a provar, conforme alegado, apura-se que o arguido introduziu no quartel a arma pessoal, que comprou pelo facto de a lei o autorizar a tanto, por duas vezes: uma para dar tiros, tendo pedido autorização ao oficial de dia, e outra no dia do incidente dos autos. Daquela matéria consta também que o arguido não sabia que a arma deveria ter sido deixada na portaria ou casa de armas e que não a poderia levar para o cote ou caserna; p. Tal entendimento mostra-se suportado nos depoimentos de todos os marinheiros ouvidos e no depoimento de oficiais instrutores, que referiram que não era dada instrução sobre os cuidados a ter com as armas pessoais no quartel. É também certo que não havia vigilância alguma à entrada no quartel e que ninguém interrogava da presença de armas pessoais, nem informava da proibição de as deter no quartel; q. Foi por tal motivo que o arguido a usou no cote e que o marinheiro CC a manuseou com ele, sem ter consciência daquela proibição, que desconhecia. Por tal motivo chamou o ora ofendido à presença deles; r. Aplica-se no caso o disposto no art. 10 do Código Penal, pelo que a omissão de vigilância por parte das chefias militares dos cuidados a ter com a entrada de armas no quartel constitui omissão relevante para efeitos da responsabilidade do Estado; s. Não se provou que o arguido aja agido por dolo ou com manobras dissimulatórias, antes estava na ignorância dos deveres, por falta de informação e de formação sobre as normas regulamentares, tendo incorrido numa falta de cuidado grave. Num juízo de prognose negativo, se a proibição fosse conhecida do arguido ou do marinheiro Paulo Alves, a arma não estaria no quartel, o ofendido não teria sido chamado à proximidade dela e o acidente não teria ocorrido; t. Donde, se compreende a causalidade entre o crime, os danos e a omissão de vigilância do Estado, cometida através dos seus agentes. Pois se o Estado não é sujeito penal, é sujeito de responsabilidade cível.

u, Tal facto é agravado pela circunstância de a lei, permitir que simples marinheiros, praças, pudessem comprar e usar, transportar e manusear armas de fogo, ainda por cima de calibre não autorizado aos civis, municiadas com projecteis expansivos. A extensão e gravidade dos danos deve-se tão só à natureza e calibre da arma, como às características da munição. Donde, o Estado deve responder pelos danos a que a sua conduta deu directamente causa; v. Tal responsabilidade é tanto pelo risco, atenta a perigosidade do meio empregue, como pelo contrato militar que sujeitou ofendido e arguido à falta de vigilância, como pela falta de vigilância em si própria, corno o é por actos de gestão, na medida em que o Estado, no âmbito dos seus poderes legislativos e regulamentares, concedeu uma arma a um privado em atenção à sua qualidade de praça militar e na medida em que não fiscalizou e se...

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