Acórdão nº 1242/10.6YYPRT-A.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 09 de Julho de 2015
Magistrado Responsável | ABRANTES GERALDES |
Data da Resolução | 09 de Julho de 2015 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
I - Por apenso à execução que AA move a BB, CC, por si e como legal representante do seu filho, DD, veio apresentar reclamação de créditos para que sejam graduados antes do crédito do exequente, tendo em conta o privilégio resultante da hipoteca legal constituída sobre o imóvel penhorado, a sua anterioridade e a especial natureza do direito a alimentos.
Alegou que foi casada com o executado, casamento dissolvido por divórcio, no âmbito do qual foi homologado um acordo que previa que a reclamante assumia o compromisso de cuidar do filho do casal, DD, deficiente, que não pode prover ao seu sustento, pagando o executado a pensão de alimentos de € 1.250,00 mensais, actualizável.
Em 15-6-07, a reclamante registou hipoteca legal sobre dois imóveis do executado pelo valor máximo de € 375.000,00, sendo que um deles foi penhorado no processo.
O executado deixou de pagar a referida prestação de alimentos desde Julho de 2009.
Vem reclamar, pelo produto da venda, o pagamento do crédito, com privilégio em relação ao direito do exequente, quer pelo montante vencido, quer pelo montante de € 375.000,00, quer pelos juros.
O exequente impugnou a reclamação, alegando que é titular de um direito de retenção que foi reconhecido pela sentença que foi apresentada como título executivo, preferindo, assim, sobre a hipoteca invocada pela reclamante.
Por sentença foi reconhecido o direito de crédito da reclamante, mas foi graduado em segundo lugar, a seguir ao crédito do exequente com direito de retenção.
A reclamante interpôs recurso de apelação, mas a Relação confirmou a sentença.
A reclamante interpôs recurso de revista concluindo assim:
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Decorre dos factos considerados provados no douto acórdão da Relação, à luz dos dois novos factos documentalmente provados nos autos, mencionados de fls. 6 a 7 das precedentes alegações, em confronto com o ACUJ n° 4/2014, que o caso dos presentes autos não se enquadra no conhecido e debatido conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores que tem sido objecto de debate na doutrina e na jurisprudência, esta agora uniformizada nos termos do referido ACUJ, antes desenha um novo conflito entre, por um lado, um empresário industrial que pretendeu adquirir um pavilhão para a sua indústria e, do outro lado, um direito a alimentos a favor de um interdito por anomalia psíquica e incapacidade física total.
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De um lado, o direito de retenção alegado por um empresário, enquanto promitente-comprador de um pavilhão para a sua indústria e, do outro, a hipoteca registada sobre aquele pavilhão para garantir aquele direito a alimentos, desde data muito anterior à celebração do próprio contrato-promessa.
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Ainda, de um lado, um interesse meramente comercial daquele empresário e, do outro lado, o direito a alimentos enquanto direito essencial e integrante do direito à vida, à saúde e à habitação, consagrados nos arts. 24°, 64° e 65° da Constituição, e do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito com referência aos n°s 1 e 3 do art. 63° da Constituição.
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O conflito do presente caso, assim desenhado, transporta o direito de retenção consignado na al. f) do nº 1 do art. 755° do CC para uma nova dimensão de análise no sentido de saber se esse direito de retenção assiste ou não ao promitente-adquirente quando este for empresário industrial e nessa veste tiver adquirido o imóvel para a sua indústria.
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Na afirmativa, se esse direito prevalece ou não sobre a hipoteca registada desde data anterior ao contrato-promessa e, por maioria de razão, à sentença judicial que lhe reconhece o crédito, quando aquela hipoteca garante alimentos; na negativa a esta última questão, se a interpretação do art. 755°, nº 1, al. f), do CC, nesse sentido viola ou não a dignidade humana e o direito a alimentos enquanto parte integrante e indissociável do direito à vida consignados nos artigos da CRP anteriormente citados.
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A questão assim configurada, com a forte e específica componente de inconstitucionalidade referida, é verdadeiramente nova quer no âmbito da doutrina quer no seio da jurisprudência, enquanto os dois motores essenciais da interpretação e da aplicação do Direito. E assume ainda uma particular relevância jurídica para a interpretação e aplicação da norma do art. 755°, mº 1, al f), do CC, interpretação e aplicação até aqui confinadas ao clássico, conhecido e debatido conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores.
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Finalmente, estando em causa o direito a alimentos e, em particular, os alimentos devidos a um interdito plenamente (por anomalia psíquica e incapacidade física), vistos como parte integrante do direito à vida e à defesa e preservação da dignidade humana, o presente caso coloca-nos perante uma situação concreta de particular relevância social e perante uma questão nova no âmbito da já de si complexa questão da interpretação e aplicação da norma do art. 755°, nº 1, al. f), do CC, novidade a que acrescem os contornos especiais dos direitos constitucionais anteriormente invocados, nunca até hoje - ao que se saiba - aflorados na nossa ordem jurídica.
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Ao contrário do que se entendeu no acórdão recorrido, a diferente natureza das garantias - direito de retenção versus hipoteca - não releva dissossiadamente da natureza substancial do crédito que cada uma delas garante, razão pela qual aquelas, ainda que abstractamente consideradas, não o podem ser senão em função e por causa do crédito que garantem e da especial natureza deste.
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O direito a alimentos é um direito fundamental da pessoa humana, porque é integrante, simultaneamente: do direito à vida, na medida em que os alimentos são condição base e essencial para qualquer pessoa sobreviver e desenvolver plenamente as suas capacidades físicas, mentais e intelectuais, vivendo a sua vida com dignidade humana, e o que isso custa em termos pecuniários; do direito à saúde, porque compreendem, por um lado, o direito a uma alimentação saudável, enquanto base da protecção e salvaguarda da saúde, e, por outro lado, o direito a adquirir os medicamentos necessários para tratar a doença, e o que isso custa em termos pecuniários; e do direito à habitação, porque compreendem o que for necessário para fazer face a uma habitação minimamente condigna, em termos de conforto, no que isso custa em termos pecuniários; j) O direito a alimentos é, assim, um direito fundamental da pessoa humana, nas suas vertentes do direito à vida, à saúde e à habitação, consagrados: a nível universal, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, invocada a fls. 6 das precedentes alegações; a nível nacional, nos artigos 24° (direito à vida) 64° (direito à saúde) e 65° (direito à habitação) da CRP, invocados a fls. 7 das alegações precedentes; k) No caso concreto dos presentes autos - em que o beneficiário directo dos alimentos, filho do executado, é deficiente profundo e interdito por anomalia psíquica desde os 18 anos de idade, sendo, por isso totalmente dependente de terceiros para se deslocar, para se alimentar, para realizar a sua higiene, nunca tendo adquirido a linguagem e não se conseguindo deslocar sozinho nem com o auxílio da cadeira de rodas - os alimentos confundem-se com os próprios direitos fundamentais à vida, à saúde e à habitação do filho do executado e são absolutamente essenciais à preservação da sua vida com a dignidade humana possível, por serem essenciais a que possam ser-lhe preparadas e dadas as refeições e, assim, para que se alimente, para que possa ser cuidado na sua higiene pessoal, para que possa ser comprada a roupa que deve vestir, lavá-la, cuidá-la e vesti-lo, preservando-o do frio, e para que possam ser adquiridos e ser-lhe dados a tomar os medicamentos que a sua grave doença exige, para que haja quem o vigie, o acompanhe, o ocupe e ponha a dormir, todos os dias da sua vida e até que a sua morte ocorra.
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O direito a alimentos aqui em causa, com esse sentido e alcance, devidamente evidenciado nos autos, tem a sua consagração directa, como direito fundamental à vida, à saúde e à habitação, nos arts. 24°, 64° e 65° da CRP.
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Além disso, enquanto obrigação alimentar de raiz familiar, porque o credor dos alimentos é o filho e o obrigado é o pai, aqui executado, aquele direito encontra-se ainda constitucionalmente consagrado no art. 36°, n° 5 da CRP.
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Tal direito é um direito de nível superior em relação ao direito de crédito graduado em 1º lugar pela sentença recorrida, ou seja, o direito de retenção à restituição do sinal pago pelo promitente-comprador ao promitente vendedor.
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Entrando, como estão no presente caso, em colisão dois créditos igualmente garantidos por garantia real (num caso, o do crédito exequendo, o direito de retenção, e no outro, o do crédito a alimentos, a hipoteca legal) e em que um deles (o crédito exequendo) não é de alimentos, deve o crédito a alimentos ser graduado em 1° lugar, antes do exequendo.
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As instâncias fizeram uma aplicação estrita dos arts. 755º, nº 1, al. f), e 759°, n° 2, do CC, dando prevalência ao direito de retenção a favor de promitente-comprador industrial, de pavilhão para uso da sua actividade industrial sobre a hipoteca, registada anteriormente à celebração do contrato-promessa de que emergiu aquele crédito, que garante os alimentos e o crédito a este.
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Ao graduar o direito de crédito do exequente com prioridade sobre o anterior direito a alimentos reclamado pela ora recorrente, não só violaram a ratio legis e o âmbito de aplicação do art. 755°, nº 1, al f), do CC, tal como vêm fundamentados e delimitados pelo ACUJ n° 4/2014 deste STJ (no que respeita ao crédito garantido pelo direito de retenção, ao crédito resultante da promessa de compra de fracção no mercado da habitação pelo consumidor final, o que não sucede no caso presente), como pôs em causa o direito fundamental a alimentos nos termos em que o mesmo se mostra constitucionalmente previsto.
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Assim, o direito de retenção do exequente, nas suas concretas circunstâncias constitutivas, e...
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